Opinião

Lições do Haiti e da Libéria

Sousa Jamba

Jornalista

Se a História serve para dar-nos lições, nós africanos, temos dois países cuja trajectória deveria servir como dois grandes exemplos a não seguir. O Haiti, nas Caraíbas, é a primeira nação negra na História a ganhar a sua independência. Em 1804, depois da revolta dos escravos, que começou em 1789, os escravos africanos venceram o exército francês e proclamaram a República do Haiti. Esta foi a primeira república negra!

12/03/2021  Última atualização 08H44
Em 1847, na África Ocidental, fundou se a nação da Libéria, a sua elite composta por ex-escravos vindos dos Estados Unidos. A Libéria é tida como a segunda república negra.
Estes dois países têm sido uma desgraça. O Haiti têm o nível de analfabetismo mais elevado de qualquer país no hemisfério ocidental. Lá, encontra-se o nível de pobreza que não existe em muitos países africanos. Até recentemente, o Haiti foi um bom exemplo da má governação, corrupção e um tipo de nepotismo arrepiante. Sim, há quem insista que o Haiti não prosperou porque aqueles que defendem a supremacia da raça branca fizeram tudo para sufocar o que seria o grande orgulho dos negros. Nos Estados Unidos, onde a rebelião dos negros horrorizou a elite branca do Sul que tinha escravos, vários mitos foram propagados sobre o êxito da revolução liderado por Toussaint l’Ouverture. Falava-se, então, de um pacto com o Diabo,  muitos brancos nos Estados Unidos continuam a defender esta tese, da aliança entre os líderes negros e o Diabo.

A Libéria só superou os vários impedimentos relacionados com a má governação com a ascensão da Dra. Helen Sirleaf Johnson, que fez tudo para erradicar os males do passado. Num país com líderes tão ineptos e corruptos, a Dra. Johnson não só ganhou o Prémio Nobel da Paz em 2011, mas também o Prémio Mo Ibrahim, que é dado a líderes africanos que deixam o poder tendo melhorado consideravelmente a condição do seu país. Há vários livros escritos sobre a Libéria — e todos enfatizam a incompetência da elite afro-americana que, até 1980, dominou aquele país.

Na Libéria, os afro-americanos formaram uma elite que oprimia os nativos. Em 1980, o sargento Samuel Doe matou o Presidente William Tolbert, acabando a predominância dos afro-americanos. A Libéria conheceu, então, décadas turbulentas, que poderemos retratar num outro dia. Em todo caso, há, na Libéria, uma cultura que surge no sentido de incluir todos na governação.
A verdade é que o Haiti e a Libéria não sofreram apenas de interferência estrangeira — havia, também, o factor chave que impedia o desenvolvimento dos dois países, nomeadamente a má aliança entre as elites que governavam e o resto da população. Em ambos casos, a afirmação da liberdade e da autodeterminação tinham sido defendidas por elites negras. No caso do Haiti, foram os negros emancipados ou então aqueles de raça mista que tinham tido acesso à educação na França, que começaram a questionar  o statu quo.

Uma vez no poder, as elites no Haiti e na Libéria perderam-se por completo. Entre 1957 a 1971, o Haiti foi liderado por um médico, François Duvalier, que figura entre os piores ditadores na História. Quando  Duvalier ascendeu ao poder em 1957, ele defendia a filosofia se "noirisme” — ou "negritude.” Isto era uma versão da negritude que era diferente de outras figuras como o Aime Cesaire ou Leopold Sedar Senghor, que defendiam uma afirmação da cultura africana mais abrangente. Duvalier insistia num paroquialismo que dava supremacia ao Voodoo, religião africana que os escravos tinham levado para as Américas. Duvalier foi mestre em manipular a crença dos haitianos para reforçar o seu poder — ele se apresentava como o grande defensor dos negros. Na realidade, o seu regime,  o topo, dependia muito de famílias das elites que eram altamente privilegiadas. Algumas destas famílias eram mestiças — "café au lait”, como se dizia na altura. Duvalier,  conhecido como Papa Doc, tinha ao seu lado a Simone Duvalier, oriunda de uma família mista de renome.

A elite que rodeava Duvalier passou a controlar a economia do país. Os seus filhos eram formados em França ou Estados Unidos, que está apenas a uma hora de voo. Duvalier preferia um público iletrado. E ele sempre, do nada, aparecia com inimigos. Foi o próprio Duvalier que,  às vezes, promovia um nacionalismo negro que excluía. Ele espalhava sorrateiramente a ideia de que os mulatos do Haiti pretendiam oprimir a maioria negra e ele era a única salvação. Vários intelectuais, de todas raças, alguns fortemente influenciados pela a ideologia Marxista, tentaram derrubar Duvalier. Em 1971, ele morre e passa a ser substituído pelo  seu filho, Jean Claude Duvalier, na altura com dezanove anos.

Eu tinha catorze anos em 1980 quando li num jornal zambiano sobre a extravagância do casamento de Jean Claude Duvalier e  Michelle Bennett, filha de uma das grandes famílias haitianas formada nos Estados Unidos. Num  país tão pobre, a extravagância do casamento chocou o resto do mundo: vestidos caríssimos vindos de Paris,  jóias vindos de Nova Iorque,  aviões alugados para trazerem convidados da Europa. Esta elite parecia ter muito pouco em comum com aquela que, em 1804, deu tudo para o fim da Escravatura. Em Fevereiro de 1986, o povo estava bem farto com os Duvaliers. Vários protestos forçaram o ditador a exilar-se na França.
Hoje há um consenso no Haiti de que as elites devem  ajudar no desenvolvimento do país, em vez de iludirem-se na bolha do privilégio.

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