Diz-se que constitui um gesto de fraqueza o exercício de se queixar aos entes e e organizações estrangeiros sobre os problemas da nossa terra, para depois receber como resposta a exortação óbvia segundo a qual “as soluções devem ser encontradas entre vós mesmos”, da mesma maneira como as sucessivas iniciativas externas para acabar com a guerra se comprovaram ineficazes.
Mário é um amigo de longa data. Tornamo-nos como irmãos, desde que uma inesperada ida ao hospital fez com que nossos caminhos se cruzassem. Ladeados um do outro no banco do hospital, ele abriu-se comigo dizendo que se algo de mal lhe acontecesse, que fosse dizer à sua Maria, que a amava.
A minha reacção foi, naturalmente, de espanto. Nunca o tinha visto de lado nenhum e de repente me chega com uma conversa como se estivesse nas últimas...Era só o que me faltava. Em plena segunda-feira, eu atrapalhado por faltar ao serviço e ainda a tentar perceber porque as lombrigas estavam tão inquietas desde o almoço de sábado, chega-me um sujeito com as suas malambas!
Bom, ouvi-o, fingindo prestar-lhe toda a atenção do mundo. Ele parecia precisar, bem mais do que eu, com o meu desarranjo, que não havia meios de parar, mesmo experimentando todos os fármacos, receitas caseiras e até uns milongos de uma vizinha, que tinha fama de resolver casos impossíveis.
Mas aquela expressão de pânico misturado com desespero no rosto do Mário fez com que, momentaneamente, me esquecesse do maldito desarranjo que me apoquentava. Parece que ouvi-lo fez desencadear os efeitos dos medicamentos, folhas e os milongos da vizinha das causas impossíveis. Tanto que precisei de ir novamente ao médico para reverter a situação.
O meu kamba Mário é um sujeito às direitas. Humilde e trabalhador honesto. Amigo dos seus amigos. Pessoalmente nunca tive razões de queixa. Só quando ele tem que ir ao médico e eventualmente precisa de tirar sangue, aí eu passo-me… Ele tem ataques de pânico, fica pálido quando vê uma agulha e piora quando tem perto de si aquelas batas brancas dos médicos.
Passei a compreendê-lo melhor aquando do nosso primeiro encontro em que fez aquela declaração, como se estivesse prestes a ser apresentado a um batalhão de fuzilamento e eu, coitado de mim, seria o portador da mensagem à sua amada Maria.
O Mário e a Maria formam um bonito casal. Eles complementam-se. Mário é corpulento, tem um ar que põe medo, mas um coração de manteiga. Incapaz de tomar decisões difíceis ou que impliquem prejudicar alguém. Maria compensa essa falha no casal. É ela quem comanda. Como se diz na gíria, ela veste as calças e fala grosso, lá em casa.
Mas o Mário não é nenhum bonhonho. Especialistas aconselham a ter-se atenção e muito cuidado com pessoas como o Mário. Pessoas de paz, tranquilas na sua zona de conforto, aparentemente inofensivas, mas têm sempre um limite que a ninguém se aconselha estar por perto para conhecer.
A Maria faz de homem da casa, mas, estranhamente, em anos, nunca lhe vi faltar ao respeito ao marido. Os vizinhos também passaram a lidar bem com a situação pouco ortodoxa do casal.
Por norma, pessoas como o Mário são alvos preferenciais de estigas e toda a sorte de epítetos indirectos (e até mesmo directos daqueles vizinhos mexeriqueiros e curibotas), pois não é comum que seja a mulher a dar ordens na casa, controlar as contas e ter sob seu controlo o cartão multicaixa do marido.
Muitas coisas não se encaixavam na vida desse casal, que vive ainda hoje num regime conjugal tipo estamos "…na London”, no cantar sublime da nossa querida Ana Maria Branco, a Nani. Um dia soube porque aquela situação era perfeitamente tolerada pela vizinhança e porque Maria, apesar de aparentemente vestir as calças, jamais desrespeitava o seu homem.
Como dizia, Mário não é nenhum bonhonho e foi um vizinho assanhado que teve o azar de, numa brincadeira, despertar a fera no seu interior e revelar para o bairro inteiro o "outro vizinho Mário” que só a sua amada Maria conhecia. Um vizinho aproximou-se de mim para me avisar sobre o Mário. "Esse teu amigo tem duas caras. Não vale a pena lhe provocar, mesmo sendo teu amigo ele não tolera abusos. O outro que era mesmo amigo dele só o que lhe fizeram?!?”, disse o vizinho com os olhos acesos, quase sussurrando.
Curioso, perguntei à Maria e ela contou-me que o tal vizinho levou uma valente surra do Mário. Inventou de cantar a música de Carlos Burity, "Maria da Bicha”. Não é que o vizinho entendeu fazê-lo todas as santas manhãs em que o Mário ia para a fila do multicaixa?
O coitado já andava meio que frustrado de tanto ir "picar e não sair lá nada…”, o vizinho aí decide apelidá-lo de "Mario da Bicha”. Mas isso faz-se?!? Coitado do homem alheio, salário já bem bocado ainda leva 45 às vezes 50 dias p’ra cair. Do nada mesmo, vem um sujeito dar-lhe cabo do juízo com a música de Carlos Burity? Isso não é azar?!?
"Lá vai ele, Mario da bicha! Tem cuidado, Mario da bicha. Não te vicies… Mario da bicha. Tem cuidado, Mario da bicha… Mas agora a tua vida é feita de bicha em bicha… Se não é no Jumbo, é na Martal, se não é no Zamba é no Cardoso, se não é no Cardoso é nos Carneiros…”. Bem feito! Quem mandou abusar? Teve o que mereceu!
O vizinho continuou a sussurrar e esticava os olhos, como alguém que estava muito preocupado com a minha integridade física: "Homem de família, trabalhador honesto que fica mbora sempre no canto dele e não se mete com ninguém, não é pra lhe gozar assim, juro mesmo!”.
Bom, a Maria não disse quem era e também não tive a oportunidade de perguntar ao vizinho o paradeiro do tal cantor faltador que levou do meu amigo uma valente (e certamente merecida) sova. Imagino que se tenha mudado de bairro, de tanta vergonha. Consta que ficou sem seis dentes, passou a coxear de uma perna, além dos hematomas que lhe embelezaram o rosto por um bom tempo.
Sempre que vejo filas nos multicaixas lembro-me do meu bom amigo Mário. Por todo o lado onde tem um multicaixa há fila e dou comigo a imaginar o tal vizinho "confiançudo” a cantar o "Maria da bicha”, de Carlos Burity. Fico assustado só de imaginar o meu amigo furioso. Não pago pra ver. Confesso que prefiro o meu kamba Mário que tem medo de agulhas e foge dos médicos como o Diabo da cruz. Afinal, ninguém é perfeito.
Jornalista
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