Angola segue firme na promoção e protecção dos direitos humanos. O reconhecimento da comunidade internacional demonstra a preocupação com que a questão é tratada no país. Um desses casos aconteceu recentemente, precisamente na sexta-feira passada.
Em Kalulu dos anos oitenta a noventa, a única festa popular, grande, que movimentava toda a gente - camponeses das fazendas estatais, privadas e lavras individuais; operários da torrefação de café e mecânicos das oficinas; intelectuais das escolas, centros e postos médicos e dos comissariados; liberais das alfaiatarias, barbearias, droga- rias, tabacarias e casas da xungaria - todas as classes unidas e reunidas numa marcha policromática e ruidosa, com carros alegóricos, quando fosse possível, era somente o 1° de Maio.
A concentração era na rua que dá ao Bairro Azul-Entroncamento da Escola Nkwame Nkrumah, junto ao Comissariado Municipal do Lubolu. Era aí que começava a festa. O Bairro Wambu, ali surgido fruto da desagregação das fazendas coloniais e suas colectividades de trabalhadores Ovimbundu, ainda não existia e as palmeiras do descampado ofereciam gentilmente a sua sombra aos que chegavam, se aprumavam e esperavam a sua vez para o desfile.
A cercania do Comissariado era, na verdade, o ponto de partida e de chegada. A Tribuna era montada na escadaria da Fortaleza que tem à direita (sentido da marcha) o "Palácio” do Camarada Comissário, onde ficavam o Camarada Comissário, os delegados municipais e os directores das Empresas Territorias de Café, despontando a Lubolu I, II e III. Kenhê que é desse tempo e que já não se lembra?
E, todos nós, pioneiros da OPA, manos da JOT’EMPELÁ, mamãs da OMA, papás do Partido, camaradas da Ce-Pê-Pê-Â, da Segurança e das FAPLA, juntávamo-nos à festa dos que trabalhavam, enquanto assistência, batedores de palmas e comentadores no pós-festa.
Até os manos sem trabalho, que a vida deles era fugir rusga e alguns eram especialistas da kangonya, e os tios que ouviam as Rádios Proibidas pelo Estado também iam ao 1° de Maio. Se porquê e para quê nunca me disseram, mas iam e festejávamos todos o Dia dos Trabalhadores que ficavam semanas a preparar o desfile que terminava ao meio-dia.
Havia uns pioneiros bem-comportados e que estudavam bem que, talvez por isso e não sei mais porquê, tinham sido ensinados a ouvir a tal Rádio Proibida pelo Estado e que deviam dizer baixinho, sem gritar, aos camaradas da Segurança quem eram os tios que ouviam a RSA (que tinha música de passarinhos) e uma outra (que tinha capoeira com galo a cantar) que davam notícias e faziam propaganda dos fantoches.
Os fantoches eram conhecidos de todos, pelo menos pelo nome e ao que acontecia aos carros que queimavam ou minavam e às vilas quando as atacassem. Sempre que chegasse um estranho com cara de fantoche ou kahúhu (como lhes chamavam os camaradas da Swapo) era logo interpelado pelo camarada Secretário do Comité do Bairro e pelos camaradas das BPV (Brigadas Populares de Vigilância que abusávamos chamando-os em surdina por bêbados à procura de vinho que era raro). Os tios da Ô-Dê-Pê também diziam estar de olhos neles para não roubarem nossas mandiocas e nossos cabritos que desamarravam das cordas e levavam até aonde os olhos se perdiam.
Mas, todos, no dia do 1° de Maio, nos juntávamos. Até não sei se os camaradas da Segurança conseguiam filtrar nas multidões saídas das fazendas de todas as comunas os infiltrados colaboradores dos fantoches, os reacionários, os lyambeiros e outros.
Para nós, Pioneiros de Agostinho Neto na Construção do Socialismo, a festa era pelo povo e até nos esquecíamos, no Dia Internacional do Trabalhador, das tarefas de casa recomendadas pelo professor, das lenhas para o matabicho do dia seguinte, da missão patriótica de espiar os tios com cara de colaboradores e que ouviam, à noite, as Rádios Proibidas. Tudo girava em torno do Dia do Proletariado.
No desfile, a foto do Camarada Neto ficava ao lado das imagens desenhadas de camaradas barbudos que eram conhecidos como camaradas Marx e Engels. A do camarada Presidente Eduardo dos Santos é a que ficava mais alta, transportada pelo pelotão de frente de cada grupo em desfile.
Quando os camaradas internacionalistas cubanos fossem convidados, sobretudo os camaradas professores e enfermeiros que eram chamados "nostroermanos”, estes exibiam também as fotos do Camarada Presidente deles que era um barbudo com o nome de Fidel Castro. O outro cartaz era do José Marti. Num destes desfiles, cheguei a ver Fidel Castro abraçado com o Camarada Presidente Doutor Agostinho Neto, mas era só na foto.
Como dizia, nem mesmo o Carnaval da Vitória nos conseguia juntar a todos como o 1° de Maio no Largo do Jardim da Vila de Kalulu que ficava apinhado de gente de todos os bairros e fazendas distantes. Ninguém passava sem assistir à festa. Como era feriado, ninguém tinha pressa de ir trabalhar ou de ir matar porco para explorar na kandonga. A rua do Campo da Revolução, que permite contornar o Largo pelo lado traseiro do Palácio, a caminho da Mbanze e Lwati-Kisongo, também ficava fechada pelos camaradas da Segurança e da LCB (Batalhão das FAPLA conhecido por Luta Contra Bandidos).
- Todos ao 1° de Maio! - Dir-se-ia na propaganda dos miúdos de hoje.
Naquele tempo, a frase mais curta e robusta era mesmo "Proletários de todo o mundo uni-vos!”. Ficava decorada na mente de todos e era recitada até que chegasse o outro1° de Maio. Apenas os que eram viciados no carnaval, que metia todas as escolas da vila a desfilar, é que vez ou outra se atrapalhavam na frase dos proletários.
A propósito, andei muito tempo a perguntar aos meus colegas e outros um pouco makota que estavam nas classes de avanço se proletários eram colegas do Man-Prole, mas também intrujavam nas respostas. Não sabiam. A minha sorte foi estudar Sociologia na Universidade e encontrei o significado da palavra proletários que tem a sua origem nos plebeus que a única contribuição que tinham para os Estados era fazer filhos (prole) para as guerras da Europa medieval. Naquele dia, soltei uma sonora interrogação em plena aula e fui estigado por gente mais atrasada que eu. Mas eles eram espertos de Luanda e tinham a técnica de fingir o que não sabiam.
- Afinal proletários é isso? - Quem me acudiu foi o Professor Luís de Barros, guineense que nos ensinava História Medieval.
Pronto! Não tendo ido ao desfile deste ano de 2024, em que as centrais sindicais apelaram também para os trabalhadores grevearem contra o 1° de Maio, fiquei em casa a contar as estrelas e a colher as mesmas frutas com que os agricultores e camponeses do Lubolu desfilavam no Largo do Jardim da Vila de Kalulu.
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