Cultura

A mensagem de denúncia na canção afro-centrista de Carlos Lamartine

Elias Quissanga

Ao contrário do que muitos pensam, apesar de a OUA (Organização da Unidade Africana) ter surgido em 1963, o Dia de África começou a ser celebrado oficialmente apenas há 52 anos, quando em 1972 a ONU (Organização das Nações Unidas), sob o mandato do diplomata austríaco Kurt Waldheim, seu quarto Secretário-Geral, institucionalizou o 25 de Maio como o Dia do Continente Berço.

26/05/2024  Última atualização 09H38
© Fotografia por: DR

Dois anos depois, isto é, em 1974, o músico e nacionalista Carlos Lamartine lançou "Angola Ano 1”, um álbum em vinil, totalmente gravado em Luanda nos Estúdios Norte, com captação e registo de som de João Canedo, supervisão musical de Carlitos Vieira Dias e acompanhamento do Conjunto Merengue. O álbum saiu pela CDA (Companhia de Discos de Angola), propriedade do empresário e radialista Sebastião Coelho.

Entretanto, em termos políticos, vivia-se em Angola o Período de Transição, isto é, o período intermédio, entre a assinatura dos Acordos de Alvore a independência. Durante esta fase da nossa história, houve em Luanda intensas actividades políticas que terão influenciado ideologicamente os músicos, tendo isso ficado evidente na expressividade poética dos textos e na grande metamorfose que se deu na composição da canção de intervenção política associada aos fenómenos sociais que se viviam na época.

Portanto, ficavam para trás as canções contra o regime colonial, que davam lugar a outras, neste caso, àquelas ideologicamente comprometidas com as cores dos movimentos, ou seja, uma canção de intervenção política com sentido de militância, onde os músicos adoptaram um discurso de combate ideológico, com mensagens explícitas, interpretadas maioritariamente em português, nas quais as letras sugeriam a ideia de exaltação dos ideais e valores dos grupos políticos, tal como, também, a mitificação dos seus heróis e líderes e cujo objectivo era mobilizar as massas em apoio aos seus projectos políticos rumo a proclamação da independência que se avizinhava.

É neste contexto de engajamento e posicionamento político que Lamartine compôs a canção "Acorda Lumumba”. Segundo o mesmo, fê-la em "solidariedade ao povo congolês” mas também porque para os jovens da altura, e ainda o é hoje, Lumumba "era uma fonte de inspiração revolucionária”. Esta canção possui uma letra carregada de bastante simbolismo, figuras estilísticas e verdades históricas nas entrelinhas. Há nela um pendor de denúncia, por isso, o compositor a compôs em tons lentos, porque a sua real intenção era que o conteúdo da mesma fosse sentido, absorvido e não meramente dançante. Possui 68 palavras e tem como "hook” (gancho) a expressão "Lumumba, Lumumba, acorda Lumumba”,tal como está expresso nos versos iniciais:

"Lumumba, Lumumba / acorda Lumumba / para salvar o teu povo”

Portanto, o título da canção é uma sátira com dimensão espiritual, vista a partir da perspectiva da cosmo visão africana, dada a importância que o defunto tem na relação sobrenatural que estabelece com a comunidade mesmo depois da sua partida. Depois, o compositor prossegue com uma súplica, onde implora para que Lumumba acordasse, um despertar tal qual messiânico, um tanto ou quanto parecido com o de Jesus "O Cristo”, prefigurado pelos profetas como símbolo da libertação do povo Judeu. É esse despertar libertador para o povo Congolês, que Lamartine invoca nos primeiros versos da canção.

Por outro lado, é necessário olhar, também, para essa composição como um desabafo, tendo em conta que no início da década de 1960os angolanos tinham muitas expectativas sobre os benefícios que traria a independência do Zaire (actual RDC), não só para os movimentos de libertação que ainda lutavam contra a opressão portuguesa, mas para todo o continente africano, dada a sua localização estratégica, dimensão territorial e as suas potencialidades económicas.

No entanto, tudo isso não passou de um sonho utópico, quando no contexto da Guerra Fria, a CIA (Agência Central de Inteligência) apercebendo-se de que aposição de Lumumba em defesa dos interesses africanos e a sua autenticidade na difusão de um discurso em que patenteava um projecto pan-africanista de libertação de todo o continente, seria um empecilho para as intenções geopolíticas e imperialistas americanas em África, assediou Mobutu, que, sedento de poder e glória, traiu e prendeu Lumumba, o então Primeiro-Ministro que, há bem poucos meses, o tinha promovido a Secretário de Estado e Comandante das Forças Armadas, tendo consumado os seus intentos com a cumplicidade dos belgas, enviando-o ao Katanga onde foi assassinado.

Portanto, diante deste cenário caótico, Agostinho Neto, que acompanhava de perto os incidentes no território vizinho, indignado com a situação, esboçou o seguinte: "Os nacionalistas angolanos depositavam grandes esperanças no Congo independente que poderia servir de porta aberta para o abastecimento material do movimento de libertação nacional de Angola [...]. O caos que se desencadeou no Congo depois da proclamação da independência consolidou o domínio dos imperialistas nesse país [...]”.É exactamente esse domínio dos imperialistas que Lamartine acusa de ter atirado o povo congolês para a situação deplorável que descreve nos versos que se seguem:

"O povo zairense morre de fome / Morre de frio... Lumumba / Lumumba, Lumumba / Acorda, Lumumba / para dirigir o teu povo / Na luta contra a exploração / e contra a tirania / que matou o Gizenga / matou o Mulele / e mata o teu povo... Lumumba”

É com as palavras destes versos que o compositor procurou persuadir a figura central da sua composição a deixar os escombros da morte que o prendiam, e vir acudir o seu povo que vivia numa situação paradoxal!

Ora veja: como é possível, um povo que tem no seu subsolo o cobre, cobalto, ouro e estanho passar fome? Como pode passar frio e não ter água para saciar a sede, o povo que dispõe de um potencial importante em madeira, energia, a maior fonte de água doce de África e a segunda maior do mundo? Como pode o povo congolês depender da ajuda externa para se alimentar, se possuí 900.000 km^2 de terras agrícultáveis e 40 por cento do seu território coberto pela maior floresta de África? Como não ter o que vestir, o povo que possui uma reserva de petróleo que se estende do lago Alberto ao Tanganika? Como é que o povo que detém 2/3 da reserva mundial de minerais, como cobaltite e o coltan, carece de habitação?

No entanto, enquanto reflectimos sobre as indagações, repare caro leitor, na forma simples e precisa, como Lamartine discorre na história, usando os mesmos verbos (matar) e modo, mas em tempos diferentes, para actualizar o tempo, e informar Lumumba que, depois da sua morte, Israel e os EUA apoiaram Mobutu e assassinaram aqueles que se levantaram para defender a sua honra, e que, volvidos 13 anos da sua morte, a situação do povo Congolês só tinha vindo a piorar?

Os últimos versos deste interessante diálogo entre Lamartine e Lumumba fazem-me recordar uma citação fantástica de Martin Luther King, ele mesmo também, um defensor das causas do homem negro, que numdos seus empolgantes discursos, afirmou o seguinte: "O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”.No entanto, caro leitor, gostava que prestasse bastante atenção na semelhança de ideias, entre as palavras de Martin Luther King e os versos da canção de Lamartine:

"Ninguém o contesta / com o medo da forca / Ninguém fala em Lumumba / e o teu povo adormece”

Dois anos depois do desaparecimento de Lumumba, a recém criada OUA, sem forças para se opor à invasão Ocidental no Congo, assistia ao longe a implantação do neocolonialismo em África. Por outro lado, a ONU, que surgiu em 1945, refém dos interesses dos contendores da Guerra Fria, nem uma palha moveu para protestar contra a morte do estorvo do avanço imperialista no Congo.

Portanto, é este silêncio hipócrita de homens engravatados, bem-intencionados e de boa aparência que andam nas instituições internacionais e que, supostamente, defendem as nossas causas, e que todos os dias contam, sem intervir, as milhares de mortes que ainda hoje ocorrem na RDC, mortes essas vistas como simples estatísticas e não como seres humanos com dignidade merecida… é este silêncio, repito, que nos deve preocupar.

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