Entrevista

“Os cidadãos precisam compreender que o exercício de um direito não pressupõe actos de desordem pública”

No ano passado, o país registou um total de 323 manifestações, ao passo que este ano, nos primeiros seis meses, foram registados 27. Numa altura em que se debate sobre os excessos por parte dos agentes de defesa e segurança, nas manifestações, assim como dos manifestantes, o mestre em direito pela Universidade Autónoma de Lisboa, especializado em Práticas de Processo Penal, Aristófanes dos Santos, fala sobre o Direito de Reunião e de Manifestação e suas limitações. De Janeiro a Março, a província de Benguela registou 1.590 crimes, 740 detidos, 56 mortes por acidentes de viação e desmantelou sete grupos de supostos marginais.

27/07/2023  Última atualização 07H45
Comandante da Polícia em Benguela, Aristófanes dos Santos © Fotografia por: Edições Novembro
Alguns cidadãos queixam-se de excessos por parte da Polícia, aquando da realização de manifestações e, como consequência disso, são registadas mortes e várias pessoas ficam feridas. Não é possível evitar isso?

É preciso recordar às pessoas que quando se aborda o fenómeno manifestação é preciso ter em conta dois aspectos fundamentais: primeiro, a liberdade de reunião e de manifestação são direitos fundamentais, ou seja, são inerentes à pessoa humana, logo, são direitos indisponíveis e de aplicabilidade directa, por isso a Constituição da República refere no n.º 2, do artigo 47º, que apenas carecem de prévia comunicação e não de autorização. No entanto, apesar de ser um direito fundamental, ele pode ser coartado, se colocar em causa outros direitos fundamentais de valor superior, como por exemplo o direito à vida, constante do artigo 30º, da Constituição, ou até mesmo o direito à liberdade física e à segurança pessoal.

Poderia ser mais preciso?

Quero com isso dizer que o exercício deste direito não pode ferir outros direitos fundamentais. É preciso que haja um equilíbrio e entender que o direito de uns termina onde começa os de outrem. Por outro lado, devemos ter bem patente que o poder do Estado não pode ser colocado em causa. É importante que os promotores e manifestantes, de uma maneira geral, exerçam os seus direitos, que são legítimos, sem colocarem em causa o poder legalmente instituído. Porque uma coisa é o cidadão exercer o seu direito, outra é danificar os bens públicos, fazer arruaças, praticar actos contrários à lei, à moral e aos bons costumes, colocando em causa a ordem pública. Na verdade, é preciso ter em conta que o exercício dos direitos pressupõe também deveres.

Acha que houve algum excesso na última manifestação realizada em Benguela?

Apesar de ser suspeito para abordar o assunto, não me parece ter havido excessos por parte da Polícia, antes pelo contrário, foram os manifestantes que exageraram nas acções, pois os promotores remeteram um comunicado escrito, conforme ditam as normas, e o governador despachou o documento. A Polícia, rapidamente, encetou contacto com os promotores para o planeamento de segurança. Infelizmente, os promotores não reagiram bem e escusaram-se a qualquer contacto com a Polícia, situação que criou embaraços na gestão do policiamento, uma vez que a acção haveria de ocorrer na via pública, cuja responsabilidade de garantia da segurança é da Polícia.

Os agentes da polícia têm noção do princípio de proporcionalidade, consagrado na Lei de Base da Polícia Nacional?

O princípio da proporcionalidade visa verificar se o meio utilizado é adequado à situação que se apresenta, evitando-se lesões graves decorrentes da actuação dos agentes da ordem pública. Na verdade, é imperioso que a Polícia mantenha a ordem e a tranquilidade sem ferir os direitos dos cidadãos. Por isso, o princípio da proporcionalidade se afigura um importante factor na regulação do equilíbrio entre os direitos dos cidadãos e as restrições de liberdade. Os meios a utilizar não devem ser superiores aos objectivos sacrificados. Não se aceitando a ideia segundo a qual os fins justificam os meios. Foi o que ocorreu, ou seja, a actuação policial foi proporcional ao grau de perigosidade verificado.

A polícia tem desempenhado um papel preventivo em casos de manifestações?

A Polícia, enquanto instituição do Estado encarregue da manutenção da ordem, segurança e tranquilidade públicas, é o único órgão com natureza de força de segurança pública. Entretanto, no plano interno, permite a realização dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, a construção do Estado Democrático e de Direito, e da segurança como o fundamento da promoção e realização dos direitos, ou seja, qualquer pessoa pode exercer os seus direitos, desde que  de forma pacífica e sem alterações à ordem pública.

A actividade de segurança pública é somente desenvolvida pelo Estado?

A segurança pública é uma tarefa fundamental do Estado, pois podemos entendê-la como a actividade do domínio interno, desenvolvida pelo Estado a fim de garantir segurança, ordem, tranquilidade, para proteger as pessoas e bens, assim como prevenir e reprimir a criminalidade e contribuir para assegurar o normal funcionamento das instituições públicas e privadas.

Se muitos cidadãos, por vezes, transformam as manifestações em actos de arruaça, por que a Polícia Nacional não opta por meios repressivos menos lesivos, de forma a evitar mortes?

O direito de reunião e manifestação são materializados através de uma Lei específica que estabelece a forma, os limites e as garantias do exercício deste importante direito de cidadania política. O exercício deste direito pode ser realizado em espaços abertos ao público, sem que para o efeito seja necessária qualquer autorização da autoridade administrativa, desde que a sua materialização não seja contrária à lei, à moral, à ordem e à tranquilidade pública e aos direitos das pessoas singulares e colectivas.

Em que circunstâncias podem as forças da ordem interromper uma manifestação?

As forças de segurança podem interromper a realização de qualquer reunião ou manifestação que decorram em lugares públicos quando notarem que se está a desviar por completo ou em parte da sua finalidade, através da realização de actos contrários à lei e à moral, ou quando, também, se verifiquem acções que perturbem gravemente a ordem e a tranquilidade públicas, o livre exercício dos direitos dos cidadãos, ou violem a honra e os órgãos de soberania. No entanto, na sua actuação, as forças policiais devem ter em conta a dignidade da pessoa humana e todos outros direitos fundamentais que reportam a sua existência na construção da vida social e democrática.

 
Responsabilização dos agentes da Polícia
Até que ponto os agentes da Polícia Nacional têm sido responsabilizados criminalmente, nos casos de uso excessivo de força?

Qualquer agente da Polícia Nacional em caso de prática de crimes do fórum comum, tal como os demais cidadãos, responde nos respectivos tribunais. No entanto, quando acontece este tipo de situações, os agentes respondem também no fórum disciplinar, que decorre dentro da corporação. Isso para não falar dos casos em que os agentes cometem crimes de natureza militar e aí respondem no fórum militar. Pelo que sei, todos os casos que chegam ao conhecimento das instâncias superiores, sobre maus comportamentos, os infractores têm sido responsabilizados criminal e disciplinarmente. Porém é preciso ter em conta que a condenação ou absolvição dependerá da culpa em função da matéria probatória ou indícios verificados nos processos.

E de que forma devem os cidadãos lesados proceder para verem seus direitos respeitados?

É preciso que as pessoas lesadas apresentem queixas, participações ou denúncias junto dos órgãos competentes, para que os processos possam prosseguir os trâmites legais, começando nas esquadras, Ministério Público até aos tribunais.

Até que ponto os cidadãos têm conhecimentos sobre o uso da força por parte da Polícia, em situações em que o nível de perigo resulte na possibilidade de ocorrências de violência por parte dos manifestantes?

É preciso ter em conta que as forças de segurança representam o órgão competente para fazer cumprir o ordenamento jurídico no plano interno, tendo bem presente os direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, sabendo que numa sociedade livre o respeito pela dignidade da pessoa humana  pressupõe sempre o autorreconhecimento da dignidade da autoridade. Na verdade, o problema reside em como manter a ordem e como os cidadãos devem viver em liberdade dentro da ordem. Tal como temos vindo a referir, a segurança e a liberdade nunca se contrapõem, aliás, quanto maior é o sentimento de insegurança, maior é o desejo de ser protegido.

"Os meliantes se aproveitam das manifestações e muitas vezes acabam ferindo os agentes da ordem pública”
Qual é o domínio que os agentes da PN têm relativamente ao direito à liberdade de reunião e de manifestação?

Temos de ter em conta que a polícia de hoje não é a mesma de ontem, tanto do ponto de vista do conhecimento geral, quanto naquilo que são os aspectos de segurança pública e dos próprios conhecimentos jurídicos. É claro que não podemos escamotear, que ainda não temos a polícia ideal, pois estamos num país em desenvolvimento. Portanto, este é um problema de evolução e preparação das próprias forças de segurança, que pouco a pouco vão sendo instruídas. Mas existe, ao nível dos chefes intermédios e superiores, um conhecimento aceitável daquilo que são as normas ligadas ao direito de reunião e de manifestação.

Tendo em conta que os meliantes se aproveitam das manifestações e, muitas vezes,  acabam por ferir os agentes da ordem pública, porque não optar por mecanismos de segurança mais viáveis?

É verdade que esses meios são escassos, porém existe um plano de redimensionamento da Polícia, que está a ser apetrechado com forças e meios novos. É claro que este processo vai levar algum tempo, pois existe um conjunto de acções que estão a ser levadas a cabo. Entretanto, também não conheço nenhuma polícia a nível do mundo que tenha todos os meios.

A Polícia, em Benguela, tem meios disponíveis para contrapor situações adversas?

Os meios ao nosso dispor,  embora não sendo suficientes, servem a demanda, pois mais do que o completamento é necessário que saibamos implementar estratégias de segurança para que os cidadãos consigam exercer livremente os seus direitos.

Qual tem sido o papel das forças de defesa e segurança no esclarecimento aos promotores de manifestações, nos casos de desordem?

Do ponto de vista geral, é a Constituição da República de Angola que consagra, no seu artigo 47, o direito à liberdade de reunião e de manifestação, sendo estes direitos inerentes à pessoa humana cuja aplicabilidade é directa, ou seja, não carecem de outros instrumentos para o seu exercício. Porém, é preciso ter em conta que os cidadãos que pretendam exercer esses direitos devem perceber que o mesmo direito que têm de se manifestar é o mesmo que os outros também têm de não se manifestar.

Acha que os meios usados nas manifestações têm sido proporcionais?

No caso de Benguela, e acredito que a nível da Polícia  de uma forma em geral, os meios utilizados foram os adequados para repelir a ameaça concreta que se verificava no local. Agora, quando falamos em excessos, temos de ter as imagens televisivas, pessoas que dizem aquilo que nós também observamos, do ponto de vista acústico. Seja como for, é preciso que as pessoas digam aquilo que lhes terá acontecido e apresentem denúncias aos órgãos de Justiça, para que os prevaricadores sejam responsabilizados.

As imagens observadas nas redes sociais são visíveis. Se os cidadãos recorrem a pedradas, queima de pneus, a corporação recorre ao uso de meios disponíveis cujos prejuízos são visíveis. Este é o caminho certo a seguir nos próximos tempos ou poderiam tudo fazer para harmonizar as relações com os manifestantes?

A Polícia Nacional é a única força com responsabilidade de garantir a ordem e a segurança interna, e ela possui meios letais e não letais, e há-de usá-los sempre que for necessário. Porém é preciso dosear quando usar um ou outro meio. No entanto, este é um assunto que tem de ser abordado do ponto de vista concreto. No caso de Benguela, o que existiu foi uma escalada de reacções que visavam desacreditar o poder administrativo legalmente instituído, através de práticas de actos contrários à lei e outros que perigam a ordem pública. A Polícia viu-se obrigada a tomar as medidas cabíveis.

Quais são os fundamentos?

Aquelas marchas que ocorreram em direcção à sede do Governo em alta violência, segundo o que vimos nos órgãos televisivos, a Polícia não podia permitir em circunstância alguma acções desta natureza, e, em Benguela, também vivemos tal situação, em que os motoqueiros pretendiam fazer o mesmo e nós tivemos de reagir, usando da força necessária, para repelir a ameaça concreta. Portanto, esta é a situação em que podemos dizer que a observação dos princípios da exigibilidade, da necessidade e da mínima intervenção foram acautelados.

Até que ponto o meio usado deve ser proporcional à  ameaça que o acto pode representar?

O meio usado deve ser proporcional ao grau de a- meaça que ocorre. Precisamos ter atenção, às vezes, quando falamos do princípio da proporcionalidade, que dá a entender que os meios a usar por uma e outra parte devem ser exactamente iguais. Por exemplo, uma pedra atirada à cabeça de um agente da polícia pode levá-lo à morte e a resposta seria o agente pegar também numa pedra e atirar ao cidadão para haver proporcionalidade? Claro que não! Porém, não seria correcto neste caso o agente socorrer-se de meios letais contra o cidadão que o atingiu. Quando abordamos a questão da proporcionalidade, o certo é que haja um equilíbrio entre o ataque e a resposta. Por isso é que chamamos de proporcionalidade.

"Manifestações devem  ser democráticas e pacíficas”
A Lei sobre o Direito de Reunião e de Manifestação diz que não existe uma autorização propriamente dita, apenas dar a conhecer essa possibilidade e acertar o itinerário, hora e a observância do respeito e a sua passividade. O que tem faltado para que as manifestações sejam realizadas de forma mais pacífica?

O que tem faltado é o cumprimento das limitações que a própria lei estabelece por parte dos promotores e dos manifestantes. Pois o cidadão precisa de entender que o exercício de um direito não pressupõe desordem pública. Que os cidadãos façam as manifestações nos termos da lei e que sejam cumpridos os pressupostos exigidos na lei. Na verdade, a liberdade e a segurança só se contrapõem se ilimitadas ou mal limitadas. 

Isto quer dizer que é possível evitar confusão durante as manifestações?

Claro que sim. As manifestações fazem parte das democracias e podem sempre ser realizadas, desde que pacíficas e sem armas, quer sejam de fogo, quer brancas ou de outro tipo, nos termos da Constituição e da Lei.

Até que ponto a formação dos efectivos tem sido melhorada nas Escolas de Polícia, de modo a ter uma polícia verdadeiramente ao serviço dos cidadãos?

A formação policial nos nossos dias é aceitável, porém existe um conjunto de acções formativas ininterruptas que vão sendo realizadas com vista à melhoria da actuação policial. Como ocorre na nossa província.

A formação policial inclui também aspectos morais?

A formação policial inclui todos aspectos, moral, patriótico, técnico e outros, com vista a adoptar os efectivos policiais de hábitos e habilidades ideias ao exercício da função que desempenham. Por isso, aqui em Benguela estamos a observar o plano anual de formação de polícia inserido, como não podia deixar de ser, na estratégia do MININT e do Comando Geral da Polícia Nacional.

  População de Benguela fez queixa de 1.392 crimes
Quantos crimes ocorreram nesta província durante o primeiro trimestre do presente ano?

O Comando Provincial de Benguela da Polícia Nacional tomou conhecimento de 1.530 crimes de natureza diversa (mais 192 se comparado com igual período do ano anterior). Desse número, 66 crimes foram de natureza económica, 844 foram esclarecidos. Outros 1.392 crimes foram participados pela população, e 138 (mais 10) resultaram do enfrentamento policial. Foram ainda desmantelados sete grupos de marginais composto por 12 elementos, que praticavam assaltos na via pública à mão armada. Foram recuperadas 10 armas de fogo e nove carregadores.

Quantos cidadãos foram detidos e qual foi a média diária de crimes registados?

Durante os meses de Janeiro, Fevereiro e Março, a província de Benguela registou uma média de 17 crimes de natureza diversa por dia. Foram detidos, nestes três meses, 740 cidadãos, suspeitos de cometerem estes crimes, deste número 23 são mulheres, sendo que a maior parte dos detidos são desocupados. De salientar que 1.409 crimes ocorreram em zonas periurbanas, 121 ocorreram em zonas urbanas. Houve um total de 1.186 crimes por agressão física, 16 por interrupção de gravidez e 23 por abuso sexual. Entre os detidos, constam dois cidadãos estrangeiros da Eritreia e Mauritânia, por adulteração de substâncias alimentares.

Até que ponto os acidentes de viação preocupam a província de Benguela?

Neste período, registamos 258 (menos quatro) acidentes de viação, que resultaram em 56 mortos (menos oito) e 321 feridos (menos 29). Só os atropelamentos, com 86 casos, resultaram em 21 mortos e 74 feridos. Outras tipicidades de acidentes estão relacionadas com 49 colisões entre veículos automóveis e motociclos, 72 despistes seguido de capotamento, 71 colisões entre motociclos e ciclomotores e apreensão de seis viaturas, 29 motorizadas e recuperação de electrodomésticos.

PERFIL
Aristófanes Vila Cardoso dos Santos

é comissário da Polícia Nacional, mestre em Direito e pós-graduado em Ciências Criminais pela Universidade Autónoma de Lisboa. É, também, pós-graduado em Gestão Estratégica de Enfrentamento Policial pelo Instituto Superior de Ciências Policiais do Ministério do Interior de Cuba, numa edição conjunta com o Instituto Superior de Ciências Policiais e Criminais de Angola, e licenciado em Ciências Policiais pelo Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna de Lisboa.

Graduou-se em Práticas do Processo Penal pela Universidade Autónoma de Lisboa. Exerceu as funções de director nacional adjunto da Polícia de Ordem Pública e de delegado e comandante provincial da Polícia na Lunda-Sul.  É professor convidado do Instituto Superior de Ciências Policiais e Criminais, onde orienta trabalhos de final de curso de licenciatura e de pós-graduação, e professor convidado do Instituto Metropolitano de Angola (IMETRO). Actualmente, o comissário Aristófanes dos Santos exerce a função de delegado do Interior e comandante provincial de Benguela da Polícia Nacional.

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