Entrevista

Micaela Reis: “Nunca deixei que a minha beleza me limitasse e ditasse o meu caminho”

Analtino Santos

Jornalista

Micaela Reis, actriz e apresentadora, tornou-se conhecida ao conquistar, há 15 anos, a coroa de mulher mais bela de Angola.

23/07/2023  Última atualização 07H00
© Fotografia por: Francisco Lopes | Edições Novembro

 Agora, aposta na direcção executiva em cinema e associativismo como formadora. Também é empreendedora e filantropa. Formadora de Língua Inglesa, além de actriz, é apresentadora de televisão. E tem forte envolvimento com causas ecológicas. Vilã em "Windeck”, nesta conversa com o Caderno Fim-de-Semana do Jornal de Angola, Micaela Reis fala dos novos desafios da sua carreira, da vontade de formar e dar esperança aos jovens, e de como lida com o assédio por ser bonita, entre outros assuntos. O encontro aconteceu numa altura em que prepara a apresentação do filme "Jóia” no município do Bocoio, localidade muito presente na vida da Miss Angola 2007


Micaela Reis tornou-se conhecida em 2007 quando venceu o Miss Angola Portugal e, de seguida,o Miss Angola. Como entrou para a carreira de actriz?

Antes quero agradecer ao Jornal de Angola pela entrevista. Olha, eu sempre tive uma grande paixão pelo cinema e televisão. Assim, quando surgiu o primeiro contacto com a televisão, ao fazer a minha estreia na representação de "Voo Directo”, percebi logo que queria fazer isto para o resto da minha a vida. Depois de fazer o "Windeck” resolvi apostar na minha formação, porque sempre fui aquela pessoa que considera que se nós quisermos crescer e evoluir, a formação e estudar é para o resto da vida.

 

Porquê agora como directora executiva?

Eu sabia que teria de apostar no conhecimento para poder crescer enquanto actriz e foi assim que decidi ir para os Estados Unidos estudar. Lá, estive quase quatro anos a fazer um best e quando regressei a Angola continuei a trabalhar como actriz em alguns projectos, mas senti que havia alguma falta e necessidade de apostar na produção. Percebendo que havia áreas dentro do mundo do cinema e da televisão que eu também podia explorar e envolver-me, como no caso da produção e da escrita, resolvi apostar nelas. Tudo começou quando eu formei a ACIC, que é a Associação Cultural de Impacto Criativo, que nasceu com a missão criativa de desenvolvermos actividades artísticas e sociais. Então, acho que uma coisa foi levando à outra.

 

A formação nos Estados Unidos da América, um país capitalista mas com um forte histórico de associativismo,  influenciou-a  para este lado do voluntariado?

Também, mas eu já cresci assim. Desde pequena que sempre fiz voluntariado. Fazia parte de uma igreja e pertencia a um grupo de jovens que fazia muitas actividades sociais, mesmo na escola. Então, isto é algo que não é novo para mim. E claro, como  Miss Angola, tive a oportunidade de trabalhar com mais pessoas e instituições. Digo que é algo que sempre queria fazer, ter uma organização que eu achasse que iria contribuir para ajudar a juventude angolana e acho que a ACIC não nasceu na altura certa. Estamos há um ano e meio.

 

E o que a ACIC tem feito, fora do filme "Jóia”?

Além da produção e do casting para o filme, temos feito formação, palestras e masterclass, tanto presencial como online. O nosso objectivo é capacitar a juventude angolana, dar-lhe formação multidisciplinar, não só em termos de representação mas sobre tudo aquilo que envolve o mundo do cinema e da televisão. Também dar ferramentas necessárias para poderem trabalhar e terem, sobretudo, alguma esperança. Mudar um pouco a sua visão do futuro, mas com os olhos postos no presente. Acho que isto é o mais importante, de forma a superarem as barreiras que são muitas e fazê-los acreditar que um dia será possível viverem da sua arte.

 

Como surgiu o filme "Jóia”?

Este projecto começou a ser criado há muitos anos. Cresci a ouvir a história, que  aconteceu com a minha mãe, no Bocoio, na época que tivemos o conflito no país. Ela sempre contou-me como foi deixar tudo para trás e como viveu todo aquele momento. Chegou um dia que resolvi meter no papel, porque senti que era uma história que deveria ser contada. Mas desde o momento que coloquei no papel até à sua realização, levou anos. Como sabemos, para termos uma produção cinematográfica precisamos de apoio, e isto teve o seu tempo. Foram alguns aninhos desde a escrita até à pré-produção. Apenas agora as pessoas estão a ter a oportunidade de ver o filme.

 

Rodado no Bocoio, é uma história que muitos angolanos viveram durante a guerra civil, ao abandonarem localidades como o Cubal, Nharêa, Bailundo e outras regiões à procura de segurança e de uma vida melhor. Como foi a produção do filme?

Tivemos uma equipa multidisciplinar. Muitas pessoas fizeram parte da nossa produção e passaram por lá porque nós gravamos tudo no Bocoio, onde nos receberam super bem. Os locais foram espectaculares. Tivemos que gravar nas casas das pessoas, nas suas plantações e, repito, fomos muito bem acolhidos, houve uma grande envolvência da comunidade na produção deste filme.

 

Então sem nenhum problema?

Como em qualquer outra produção, houve desafios e problemas, mas acho que o facto de eu e o meu realizador conhecermos muito bem a área permitiu que conseguíssemos ultrapassar todos os problemas que foram surgindo ao longo do caminho. Além disso, a preparação foi muito bem feita. A pré-produção foi muito bem feita e depois, dentro da produção, não tivemos muitos dos problemas que acabam por surgir durante esta fase.

 

Quanto tempo de gravação?

Foram dez dias. Eu estive com as pessoas antes e a equipa toda ficou a viver no Bocoio durante este tempo. Precisamos de cenários, figurinos e tudo para uma boa produção.

 

Falou de cenários e figurinos. Acrescento que a ausência de roteiristas, realizadores e outros profissionais coloca em causa a qualidade do nosso cinema. Como conseguiu montar a equipa de trabalho para este produto final?

Grande parte da equipa técnica era composta por free-lancers e alguns nunca tinham feito um filme. Tivemos várias reuniões antes de começarmos, para nos prepararmos. E acho que tanto eu quanto o Jonathan conseguimos dirigir bem. Em relação aos actores, muitos nunca tinham feito um filme antes, eram todos iniciantes no mundo do cinema. Mas tiveram formação antes de irmos ao Bocoio, tentamos preparar-nos de tal forma que quando chegássemos ao set de filmagem  não fosse aquele susto de ver tanta gente, câmaras e outros equipamentos. Nós tivemos este cuidado.

 

A Micaela não se quis  "queimar” sozinha na direcção, levou também os actores para a fogueira...

Acima de tudo quis dar oportunidade aos novos talentos, porque acho que o nosso país tem muitos, bons, sem espaço. Mas alguns actores não eram estreantes na representação, porque vieram do teatro. Tínhamos pessoas, como a nossa protagonista, que nunca tinham feito nada e é uma actriz que nasceu com este projecto. Sou muito séria no meu trabalho e tento sempre ir à busca de profissionais capacitados, pessoas que se mostrem dedicadas e que queiram fazer o melhor, por isso não tem nada a ver com queimar ou sair queimada.

 

Estamos em Julho e o filme estreou em Maio deste ano. Que balanço faz de "Jóia”?

O feedback tem sido muito positivo. As pessoas tem falado muito bem do "Jóia” e estão muito felizes em ver um filme nosso com tão boa qualidade. Com uma história com a qual as pessoas se identificam, porque muitos angolanos passaram por aquilo que a Jóia viveu. É um filme que nos representa, tem muito da nossa essência. Por exemplo, fala-se Umbundu, gravamos no Bocoio no meio do mato, temos músicas tradicionais e cânticos antigos, músicas das nossas comunidades.

 

Luanda recebeu primeiro e depois Benguela. Fale destes dois momentos...

No Belas Shopping, tivemos sala cheia, inclusive com pessoas sentadas nas escadas. Havia mesmo muita gente e senti grande apoio das pessoas e vontade de fazer acontecer o nosso cinema com qualidade. Digo o nosso porque o filme é da ACIC e foi muito bem recebido pelo público aqui em Luanda. O mesmo aconteceu em Benguela, onde contávamos fazer uma sessão, mas como foi tanta gente acabámos por fazer três, porque não queríamos deixar ninguém de fora. Mesmo assim, ainda queríamos fazer uma quarta, mas não foi possível. Estou muito grata por tudo.

 

Próximos locais de exibição do filme?

Esta quarta-feira, dia 26 de Julho, vamos exibir no Bocoio. O município vai comemorar mais um aniversário e vamos lá também fazer uma actividade enquanto ACIC. Estou muito ansiosa. Como disse, as pessoas fizeram parte do filme, elas trabalharam connosco, testemunharam toda a produção e acredito que, tal como eu, estão ansiosas em receber o resultado final desta produção. A apresentação será um dia antes da data oficial do município, 27 de Julho. Depois, em Agosto, vamos para a Huíla e  ao Namibe.

 

Está muito no eixo Sul. Quando é que leva mais a Norte do país?

Por acaso estamos abertos, mas são as entidades que nos convidaram. Desde que se reúnam todas as condições, iremos. Queremos ir às dezoito províncias, estar presentes no país todo.

 

Onde pensa levar o "Jóia”?

Agora estamos a fazer apresentações a nível local,  mas o "Jóia” estará em alguns festivais a nível internacional. O nosso objectivo é este, mostrar a nossa produção cinematográfica lá fora, enfrentar novos desafios.

 

Falou em desafios e em falta de apoios. Quais foram as instituições que abraçaram este projecto?

Digo que o apoio da Sonangol foi determinante. Sem ele não seria possível realizar este filme. Também tive algum suporte do Governo Provincial de Benguela, sempre disponível com a polícia que nos acompanhou  nos locais a gravar. Repito: sem a Sonangol seria impossível realizarmos e gravarmos este projecto. Os apoios que se dão não são, necessariamente, aqueles que se precisam para uma produção cinematográfica e às vezes é compreensível, porque estamos a dar os primeiros passos. No entanto, acho que quando conhecemos bem uma área nos sentimos à vontade e confortáveis, e com o pouco  conseguimos fazer muito. Foi o que aconteceu. Acho que temos uma produção que orgulha a todos os angolanos, apesar de todas as dificuldades por que passamos para conseguir realizar o "Jóia”.


Desafios como actriz e o olhar à indústria cinematográfica

 "Voo Directo”, "Windeck” e "Maison Afro Chique” deram várias personagens a Micaela Reis, mas Vitória Kajibanga marca a sua carreira como actriz.

Acho que Vitória Kajibanga é uma personagem que, concerteza, até hoje marca a dramaturgia angolana. Já se passaram mais de dez anos desde que o Windeck foi para o ar, falei com a Nádia, que fazia o papel de minha irmã e as pessoas ainda se lembram e falam da personagem. Voltam a ver no Youtube e, engraçado, também em Portugal e até no Congo. De facto, esta é uma personagem que marcou a minha carreira e a minha vida. Gostei muito de fazer o papel de vilã.

 

Podemos dizer que "Windeck” foi a confirmação de que a representação é o que queria fazer?

Exacto, por acaso sim. E o desafio foi maior ainda ser uma vilã, porque a Yara do "Voo Directo”  tinha as coisas mais parecidas comigo e como via a vida naquela altura, mas a Vitória não. Ela era uma vilã e maluca, então nós temos de trabalhar muito para conseguir representar personagens que nada têm a ver connosco.

 

"Maison Afro Chique” também foi outro desafio?

De facto foi outro grande desafio, porque é uma sit comedy. Foi depois de eu ter regressado dos Estados Unidos da América. Fiz o casting e fiquei com a personagem Marie, que era muito divertida de fazer porque é comédia, é diferente e temos  muita liberdade para criar aquilo que entendemos com  os nossos personagens. Acabou por ser uma óptima experiência, porque estive em duas temporadas consecutivas e foi muito bom.

 

E resultou no seu reconhecimento, com esta personagem...

Sim, no Moda Luanda com o Prémio de Melhor Actriz.

 

Teve uma experiência com o teatro, que segundo muitos actores é a área onde tudo começa, mas Micaela Reis fez o percurso inverso...

Um actor tanto pode começar no teatro, televisão ou cinema, é o que eu acho,  isto não significa ser mais ou menos actor, porque a representação é o que determina. A experiência no teatro foi muito boa para mim, porque em cada projecto sempre aprendo coisas novas e fui sempre crescendo enquanto profissional. E acho que, no fim do dia, isto é o mais importante, independentemente do projecto ser na televisão, cinema ou teatro.

 

Como avalia a nossa produção cinematográfica?

Eu acredito que estamos a dar passos firmes para a construção de uma indústria cinematográfica no nosso país, mas tem de haver uma maior aposta na capacitação dos nossos profissionais e maior apoio do tecido empresarial. A formação de novos públicos a nível do país, para haver quem consuma os nossos filmes. Acredito que o caminho é este, formar e produzir cada vez mais e com qualidade.

 

Temos uma política de fomento do cinema,em particular, e das artes no geral?

Acho que temos de apostar na lei do mecenato, para conseguirmos alavancar a indústria cinematográfica no nosso país. É por aí que as coisas devem começar a ser feitas.

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Entrevista