Entrevista

Mais de três milhões de pessoas em Luanda vão ter acesso à água dentro de dois anos

Manuela Gomes

Jornalista

Mais de três milhões de pessoas vão ter, pela primeira vez, o abastecimento de água potável na província de Luanda, depois da conclusão dos projectos do Bita e da Centralidade do Kilamba, adiantou, ao Jornal de Angola, a directora nacional das Águas, Elsa Ramos, por ocasião do Dia Mundial da Água.

22/03/2024  Última atualização 13H10
Elsa Ramos, Directora Nacional das Águas © Fotografia por: Arsénio Bravo| Edições Novembro
Assinala-se, hoje, o Dia Mundial da Água. Em termos de quantidade e qualidade, que avaliação faz da água que chega aos consumidores angolanos?

Uma das grandes preocupações do Ministério da Energia e Águas (MINEA) é, precisamente, a qualidade da água, de tal forma que a questão para a criação ou reforço dos laboratórios operacionais para o tratamento fazem parte dos nossos grandes projectos em curso. Todos os nossos sistemas de água são equipados com técnicas operacionais que cuidam daquilo que são os parâmetros essenciais para a distribuição de uma água com qualidade. Dos nossos laboratórios, podemos citar os das localidades do Sumbe, Cunene, Caxito e outras. Estamos conscientes que a água que deve ser distribuída aos consumidores tem que obedecer aos padrões estipulados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Em termos de quantidade, existem vários projectos já construídos e outros ainda em curso. Naturalmente, estes ainda não satisfazem as necessidades do país, mas à medida que vamos conseguindo os financiamentos, vamos aumentando a elaboração de novos sistemas e, com isso, a quantidade de água a ser fornecida.  

Segundo a ONU, 2,1 biliões de pessoas não têm acesso à água potável em casa. Como estamos em Angola em termos de acesso à água potável?

O acesso alargado a água potável em Angola, infelizmente, ainda é um longo caminho a percorrer. Neste quesito, uma das grandes preocupações são com as zonas com maior concentração de pessoas, falamos do casco urbano. Temos sob nossa responsabilidade o abastecimento de água, isso a nível das sedes provinciais e municipais. Em termos das sedes municipais, actualmente, podemos considerar que todas estão abrangidas pelo abastecimento. Posso aqui, também, citar um projecto em curso na cidade de Ndalatando, província do Cuanza-Norte, que em termos de abastecimento de água, é ínfimo. Mas, a partir do rio Lucala, estamos já a construir um grande sistema de abastecimento, a ser inaugurado ainda este ano. Temos, também, um outro projecto, na cidade de Saurimo, que era uma das sedes municipais sem sistema adequado. Prevemos, também, o reforço para resolução do problema do abastecimento de água, nas províncias do Lubango, Uíge e cidade de Menongue.

Qual é o balanço que se pode fazer do projecto das 700 mil ligações domiciliares dos diferentes centros de distribuição de Luanda?

Dentro daquilo que foram as metas preconizadas, o balanço é positivo. Neste momento, podemos passar para outros planos levados a cabo na província de Luanda, onde temos dois grandes projectos, nas localidades do Bita e Centralidade do Kilamba. Com estes projectos, prevemos alcançar mais de cinco milhões de pessoas. Dessas, três milhões terão o abastecimento pela primeira vez e dois milhões que já beneficiam, mas o abastecimento não é regular. Estes programas são de grande envergadura e poderão levar um período de um ou dois anos para a sua conclusão e funcionamento.

O défice de água parece ser um problema recorrente, num país com abundantes recursos hídricos… Alguém poderia dizer que se trata de uma "doença sem cura”…

 O nosso país, felizmente, possui muitos recursos hídricos, mas não consumimos água directamente dos rios. Para que isso aconteça, há investimentos e se estes são vandalizados estaremos a afectar milhares de pessoas que ficarão sem água. O sector tudo está a fazer para que este défice seja ultrapassado. Daí que não podemos "decretar” como uma "doença sem cura” (risos), pois, como disse, esforços estão a ser empreendidos, quer na captação, quer no tratamento, distribuição e qualidade da água.

Há alguma estratégia ou medidas concretas para acabar, definitivamente, com o garimpo de água?

Essas questões do vandalismo não só acontecem no sector das Águas como, também, no da Energia. Um dos nossos primeiros grandes passos foi considerar o vandalismo como um acto criminoso. Hoje já temos a lei que nos dá alguma segurança naquilo que é um crime e, nisso, as pessoas têm que ser punidas. Medidas estão a ser tomadas no sentido de um indivíduo quando é apanhado em tal prática (garimpo) seja levado para as instituições de Justiça. Naturalmente que algumas medidas de conservação estão a ser executadas a nível do Ministério (da Energia e Águas), que se cingem em resguardar melhor aquilo que são as nossas infra-estruturas, embora temos centenas, milhares de condutas enterradas e, com isso, de algum modo, é difícil termos segurança e guardarmos quilómetros de conduta. Por outro lado, também sensibilizamos e contamos com a participação das comunidades porque sabe-se que ao sensibilizar as comunidades essas poderão dar-nos algum apoio, pois uma vez as estruturas vandalizadas, são as próprias comunidades que ficam penalizadas, assim como o Estado e as empresas que acabam "castigados” pelos custos. É sabido que a reposição destes meios acarreta montantes avultados, mas o pior é a população que fica sem água.

Sabe-se que milhares de residências em zonas periféricas passaram a ter canalização de água, que funciona nas condições em que funcionam. Muitas famílias continuam sem contrato e sem pagamento do consumo. Quando termina todo este estado de coisas?

Existem acções a serem desenvolvidas pelas Empresas de Água e Saneamento (EPAS) para colmatar estas situações. Algumas dessas acções são no sentido dos consumidores elaborarem os seus contractos, pagarem pelo consumo e, também, o combate às ligações ilegais que em muito têm prejudicado as empresas de água.

É frequente notarmos em várias zonas, urbanas e suburbanas, casos de interrupção no fornecimento de água que prevalecem horas e, às vezes, dias. O que tem a dizer sobre essa realidade?

Para as províncias de Luanda e Benguela – que são as que registam a maior concentração de pessoas –, a situação é completamente diferente. Para satisfazer, minimamente, o abastecimento de água, muitas vezes, temos que fornecê-lo de forma intermitente, daí as constantes interrupções. Por isso, quando afirmamos que três milhões de pessoas terão abastecimento de água, isso é para, justamente, colmatar esta situação. O que tem acontecido é, por exemplo, abrirmos uma válvula por algumas horas na zona da Maianga e depois outra na Ingombota, para que assim todos tenham o mínimo do abastecimento de água. Face a esses episódios (de interrupções), há a grande preocupação do sector em criar e melhorar os seus investimentos. Neste momento, não é possível termos o abastecimento em simultâneo em todas as zonas. Temos a cobertura de abastecimento em 50 a 60 por cento, o quer dizer que, pelos menos 40 por cento, está de fora. Há que se colmatar isso, fazermos com que, pelos menos, metade das que estão de fora também beneficiem deste bem. Em suma, admitimos que o abastecimento de água ainda é preocupante.

Acha que  faz falta uma cultura que valorize a água como um bem colectivo?

Concordo! Este é o trabalho que falta: a cultura da valorização da água. É necessário interiorizar que nada se faz sem sensibilização. Nenhum projecto é implementado sem que as pessoas saibam, é preciso que, antes, o mesmo seja levado à consulta pública, incluindo nas comunidades, para que as pessoas saibam que vai "nascer” um bem para elas que precisa de ser preservado. Este é um trabalho muito sério que temos que fazer e estarmos todos empenhados como tal, não apenas o Ministério ou as empresas de água, mas também as administrações municipais, governos provinciais, comissões de moradores e outros para começarmos, se não mesmo eliminar ou diminuir, aquilo que é o vandalismo dos bens públicos.  

Que estratégias existem para a implementação de práticas sustentáveis de gestão da água?

Uma das estratégias, como já referi, tem a ver com melhoria da qualidade da água. Outra de grande importância é concentrar um maior número de projectos aonde existe maior densidade populacional. Uma outra estratégia que o sector tem é, dentro daquilo que é o Orçamento Geral do Estado (OGE) – que nalguns casos não tem sido suficiente para satisfazer as necessidades do sector -, conseguir o maior de financiamento. Felizmente, temos conseguido e superado aquilo que é o défice de distribuição de água no país.  

Tem-se assistido, em época chuvosa, a episódios de jorramento de água turva. Que medidas estão a ser tomadas para acabar com isso?

Infelizmente, temos determinados rios, como o de Catumbela (Benguela), Cambonde (Sumbe) e o Cunene (na província com o mesmo nome)… Muitas vezes, somos obrigados a parar o sistema porque não conseguimos tratar a água, ou a água corre de tal forma que arrasta muitos resíduos, aumentando o nível de turvação. Quando assim acontece, uma das medidas é parar o fornecimento porque essa água que, por muito que se trate, nunca vai chegar límpida ao cliente, uma vez ela deve ser consumida sem cor e inodora. O tratamento da água tem custos muito elevados, porque os produtos químicos são caros e quanto mais se consumir, mais se paga. Portanto, o sistema funciona 24 horas, contando com um reservatório, então quando paramos esse fornecimento, distribuímos a água do reservatório.  

Qual é o aproveitamento que se devia fazer das águas termais (águas aquecidas sob a terra)?

Temos sempre que possível o aproveitamento dessas águas. Como sabe, o abastecimento não é feito só a partir das águas superficiais, mas também das subterrâneas. Nas superficiais temos os rios e lagoas que, para nós, não são muito convencionais, mas pelas nascentes sim, essas águas (termais) têm origem das nascentes. Temos sistemas que são construídos com águas das nascentes. Como exemplo, temos o Dundo, onde existe um sistema construído a partir da água de um rio. Outro exemplo de abastecimento de água por nascente, temos na província de Cabinda, município de Belize. As águas das nossas nascentes são de muito boa qualidade, portanto este é o aproveitamento que fazemos dessas águas.   

Não é preocupante a quantidade de água residual e das chuvas que acaba sem qualquer tipo de reaproveitamento?

Como disse, a nível do sector, a nossa maior preocupação é o abastecimento da água, pois a carência era tão grande que o sector concentrou a  maior parte dos seus investimentos nesta área. Não para  não olharmos para questão do saneamento. Porque cada uma das nossas ETAs (Estação de Tratamento de Águas) têm uma pequena Estação de Tratamento de Água Residuais (ETAR). Uma das nossas maiores responsabilidades é o tratamento das águas residuais e os novos projectos, hoje, estão direccionados para isso. Só para citar, na cidade do Sumbe, estamos a construir a primeira grande Estação de Tratamento de Água, que conta com financiamento do Banco Africano de Desenvolvimento (BAD). Ainda com financiamentos do BAD, realizamos estudos em 11 cidades costeiras, com excepção de Luanda. Estes estudos levaram a elaboração de projectos, todos prontos e com financiamento organizado. Realçar que, a 22 de Fevereiro do ano em curso, lançamos um projecto de saneamento em quatro municípios da província de Benguela, nomeadamente Lobito, Benguela, Catumbela e Baía-Farta.

Que outros projectos existem a nível do sector?

Temos planos directores virados para o saneamento. Neles, estão plasmadas as soluções a serem tomadas quando pensamos aquilo que é a questão do investimento em saneamento. A nível das cidades de Saurimo e Ndalatando, vamos construir sistemas para o reforço do abastecimento, enquanto no Uíge e Lubango as obras já estão em curso. Temos também projectos em sedes municipais, que pensamos serem concluídos ainda este ano. Em perspectiva temos já, também, alguns contratos assinados para darmos início a projectos em outras áreas. Sublinhar, igualmente, um outro plano lançado no ano passado, denominado "RECLIMA”, virado à resiliência climática e combate à seca. O mesmo está mais virado à área rural, embora não seja muito o nosso pelouro a vertente da "água rural”. Mas, com o RECLIMA, queremos fazer a exemplificação daquilo que são os nossos planos directores municipais. Estão dentro deste projecto os municípios do Soyo (Zaire), Porto-Amboim (Cuanza-Sul) e Menongue (Cuando Cubango). A nível das outras sedes municipais, temos, também, vários projectos na Damba (Uíge), Chibia e Humpata (Huíla) e outros das províncias do Huambo e Bié. Contamos com a sua conclusão em Agosto deste ano, com excepção de Ndalatando.   

 Há algum estudo sobre as chamadas águas salobras que predominam em bairros como Rangel, em Luanda, em termos das causas, eventual utilidade e medidas para contenção?

As águas salobras provêm daquilo que são as inclinações das fontes de fornecimento, exemplo das costas marítimas. Daí que os laboratórios das empresas de águas tenham a tarefa de irem para os campos e fazer a recolha de amostras. Esta água também passa por pontos de análise onde é detectado, se a mesma está a chegar com qualidade ou não. Nalguns casos, isso acontece porque há uma inclinação, quando a água chega com má qualidade. Casos desses podemos verificar, com frequência, na cidade de Moçâmedes, província do Namibe, que por não ter rios – estes são intermitentes – o abastecimento é feito por furos. Nos últimos tempos, tem-se verificado o aumento do nível de salubridade (condições favoráveis) desses furos de água e, nesses casos, temos que tomar medidas de tratamento. Noutros casos, somos mesmo obrigados a abandonar o ponto, porque já não se consegue tratar. Mas estas questões e outras, como a qualidade da água a ser fornecida às populações, estão acauteladas.

Que controlo há sobre a qualidade, segurança e potabilidade da água embalada em garrafas de plástico, amplamente consumida?

Este controlo é feito pela Autoridade Nacional de Inspecção Económica e Segurança Alimentar (ANIESA). O MINEA tem a função da gestão da água e cativar investimentos para construção dos sistemas, que, tão logo construídos, são entregues às empresas e essas, por sua vez, fazem o controlo da qualidade da água que é embalada.

A dívida milionária do consumo de água pelas famílias e empresas é um problema irremediável?

A preocupação é "gritante”. Infelizmente a maior parte das pessoas furtam-se ao pagamento da água. Hoje, este problema em muito lesa as nossas empresas de águas, uma vez que elas se auto-sustentam por meio das cobranças do consumo da água. Para algumas pessoas, ainda há o conceito segundo o qual "a água é Deus é da natureza e que não se deve pagar”. Temos, sim, de agradecer a Deus por este precioso recurso, mas se a consumirmos assim directamente das fontes (rios, lagoas e nascentes) podemos contrair aquilo que são as chamadas doenças hídricas. Todos estamos conscientes que, para a água chegar até ao consumidor, passa por vários processos e estes têm custos. Logo, de alguma forma,  precisam de ser pagos. As empresas de águas têm áreas de sensibilização social que, aquando das cobranças, sensibilizam os seus clientes para não se furtarem ao pagamento. Outra medida que temos tomado é o corte no fornecimento. Em suma, este é ainda um problema muito sério. Toda a gente quer consumir água, quando não a tem queixa-se, mas quando a tem não paga. Se todos passarmos a pagar, estaremos a ajudar o sector, as empresas e a ver melhorado aquilo que é o abastecimento de água a nível do país.

  Impacto do Plano Nacional da Água
Que impacto tem jogado o Plano Nacional de Águas, criado há quatro anos?

Este é um plano já encerrado. Temos traçados outros onde podemos observar que algumas metas foram já alcançadas, considerando aquilo que são os limites de abastecimento de água. Por outro lado, como sabemos, a crise de 2014, como em outros sectores, também afectou, significativamente, o sector da Energia e Águas, onde alguns projectos não conseguiram avançar. Em termos percentuais, tínhamos como meta atingir 70 por cento da população. Embora não tivéssemos ficado muito longe disso, isso não quer dizer que estamos parados, tudo estamos a fazer para atingir as metas.

 O tema escolhido para o dia 22 de Março deste ano é "Água para a Paz”. Há hoje maior consciencialização da interconexão entre a água, segurança e desenvolvimento sustentável e a paz mundial?

Este lema remete-nos, automaticamente, a pensar ou repensar em preservar aquilo que é o bem água e para que forneçamos com qualidade. É bastante interessante e abrangente porque, como sabemos, já houve muitas "guerras” por causa deste bem e, se consideramos que a "água é vida”, sem ela o planeta não vive. Felizmente, temos muitos recursos partilhados e, afortunadamente, o nosso país, dos acordos que tem, nunca teve guerras em relação aos recursos partilhados. A vandalização das infra-estruturas, o desperdício (perda), poluição da água e outros males podem criar conflitos. O que muitas pessoas não têm em atenção é que, quando vandalizam um projecto, novos recursos precisam ser canalizados para a reparação do mesmo, quando podia ser utilizado para um novo projecto.

Quantas pessoas no país consomem água potável?

Setenta por cento da população a nível do país consome água potável, isso a nível urbano. Luanda é o nosso calcanhar de Aquiles, por concentrar o maior número de habitantes. Em termos percentuais, 50 a 60 das pessoas em Luanda consomem água potável. Pensámos que com o incremento dos projectos levados a cabo nas zonas do Bita e Kilamba, mais pessoas poderão ser alcançadas. Por outro lado, a nível do resto do país, ainda temos muitas sedes municipais com carência de água, embora nos centros provinciais, onde se concentra a maior parte das pessoas, temos este problema mais ou menos resolvido.

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