Opinião

Quando o mercado é corrompido

Sousa Jamba

Jornalista

Estou a ler várias obras sobre o subdesenvolvimento do continente africano. Reli o clássico do guianense Walter Rodney “Como a Europa Subdesenvolveu a África” ou “How Europe Underdeveloped Africa.”

16/04/2021  Última atualização 06H00
Na mais recente edição, o prefácio é da Angela Davis, a académica e activista afro-americana que se tornou muito conhecida durante a luta pelos direitos cívicos dos negros nos Estados Unidos, nos anos sessenta. Angela Davis escreve, com muito orgulho, que quando ela foi para Dar-es-Salam, capital da Tanzânia, para se encontrar com  Walter Rodney, o mesmo levou-a aos campos onde guerrilheiros do MPLA estavam a ser treinados. Lendo obras de Patrick Bond, marxista irlandês radicado na África do Sul, ou o livro de Tom Burgis, antigo correspondente do "Financial Times” no continente africano, sobre as elites que saquearam as riquezas do nosso continente, o MPLA não sai bem.

Com o andar do tempo, em que venho desenvolvendo aquela empatia para entender os desafios de épocas em que não estive no país, vou apreciando outras narrativas. Eu li, por exemplo, os dois volumes da biografia do General Dino Matross, obras que acho altamente interessantes e que, suspeito, muitos militantes do próprio MPLA nunca leram. 

Em 2016, encontrei-me em Óbidos, Portugal, com o grande escritor sul-africano Breyten Breytenbach. Fiz-lhe lembrar de um ensaio que ele escreveu na revista "The New York Review of Books”, em 1993, antes das primeiras eleições multirraciais na África do Sul, em que ele alertava para o  perigo da elite negra no ANC perder a noção da grande missão que tinha norteado o partido. Breytenbach tinha sido preso por sete anos por se opor ao sistema do apartheid. Claro que na altura, em 1993, com toda aquela euforia de finalmente controlar o poder, ninguém estava interessado em alertas de intelectuais como Breytenbach. Nos livros que estou a ler, a elite do ANC também não sai bem. Mesmo lá no Zimbabwe, onde a reforma agrária,  liderada pelo Presidente Mugabe, resultou na posse forçada de várias fazendas de brancos, a operação fracassou porque as elites se apoderaram dessas fazendas sem saber o que fazer com elas. 

O argumento era que o continente tinha que ter elites capazes de lidar com o capital. Na África do Sul, surgiu, então, o fenómeno de figuras negras, algumas com conexões ao ANC, terem a prioridade na obtenção de contratos governamentais. Aquilo foi um espectáculo de muito mau gosto! De repente, figuras notáveis, que tinham saído do nada, estavam lá com os seus Mercedes, fatos italianos, grandes jantares em restaurantes caríssimos.

Havia, na elite negra que  de repente tinha tanto dinheiro, a moda de ir casar-se nas Ilhas Maurícias. Sei do que estou a falar, porque por quase três anos, de 2000 a 2003,  trabalhei por algum tempo em Joanesburgo. Lembro-me na altura que eu tentava conversar com os jovens sobre Steve Biko e o fenómeno da consciência negra (Black Conciousness); sobre a questão do relacionamento entre o proletariado negro e branco na África do Sul. Os jovens não queriam saber disso. Lembro-me claramente de uma conferência em Durban. O tema principal era a questão das indústrias extractivas e a lei de terras. Depois do discurso, houve um almoço sumptuoso — havia muito vinho vindo do Cabo. A conferência retomou,  mas um bom número de participantes estavam "bem colados” sobre as mesas, apreciando o vinho. Lembro-me que fui um dos poucos que esteve na palestra proferida por Patrick Bond, onde ele falou de Lénine, Rosa de Luxemburgo, Trotsky e as fraquezas do sistema financeiro internacional. Curiosamente, havia representantes de multinacionais que tomavam notas da palestra de Patrick Bond; os capitalistas de peso sobrevivem  porque são pragmáticos e estão sempre à procura de novas ideias. 

As sociedades avançam com as inovações das elites. O problema é que o que muitas  vezes  é intitulado como o surgimento de uma elite por trás da economia de mercado, no nosso continente não é nada mais do que uma deturpação do mercado. No seu livro sobre viagens na Nigéria, o escritor Adewale Maja-Pearce escreve que ficou altamente surpreendido ao notar que as autoridades de uma província estavam a fazer tudo para sabotar um programa da universidade local que tentava desenvolver fertilizantes orgânicos. É que as autoridades políticas naquela região tinham o monopólio da venda do adubo. No Uganda, alguns anos atrás, o Governo fez tudo para não se introduzir uma rede de escolas privadas, com propinas modestas, porque uma boa parte de figuras fortes no Governo eram donos de escolas e colégios. 

A economia de mercado pode, sim, beneficiar muitos países africanos. Mas as elites vão ter que ser muito sérias. Patrick Bond lamenta no seu livro "The Looting of Africa” ou o "Saque do Continente Africano,” que são as próprias elites africanas que estão a mandar o capital dos seus países para o Ocidente. O mesmo afirma que a falta de tarifas eficazes afectam negativamente as empresas locais. Talvez as elites, mesmo aquelas cheias de dinheiro, devem voltar para o passado e ler sobre o que verdadeiramente norteava os movimentos de libertação nacional… 

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