O continente africano é marcado por um passado colonial e lutas pela independência, enfrenta, desde o final do século passado e princípio do século XXI, processos de transições políticas e democráticas, muitas vezes, marcados por instabilidades, golpes de Estado, eleições contestadas, regimes autoritários e corrupção. Este artigo é, em grande parte, extracto de uma subsecção do livro “Os Desafios de África no Século XXI – Um continente que procura se reencontrar, de autoria de Osvaldo Mboco.
A onda de contestação sem precedentes que algumas potências ocidentais enfrentam em África, traduzida em mudanças político-constitucionais, legais, por via de eleições democráticas, como as sucedidas no Senegal, e ilegais, como as ocorridas no Níger e Mali, apenas para mencionar estes países, acompanhadas do despertar da população para colocar fim às relações económicas desiguais, que configuram espécie de neocolonialismo, auguram o fim de um período e o início de outro.
Uma semana depois do alerta lançado pela conselheira especial da ONU, Alice Wairimu Nderitu, para a possibilidade de ocorrência de um novo genocídio no Leste do país, o Papa Francisco iniciou terça-feira uma visita de três dias a República Democrática do Congo, tendo, logo no primeiro dia, feito declarações que ecoaram pelo mundo e não deixaram os meios políticos indiferentes.
Francisco criticou de forma dura o "colonialismo económico” desencadeado em África e deplorou a situação na RDC, que luta para "salvaguardar a sua dignidade” e contra as "tentativas desprezíveis de fragmentação do seu território”. "Tirem as mãos da República Democrática do Congo, tirem as mãos da África! Parem de sufocar África: não é uma mina a ser explorada, nem uma terra a ser saqueada”, disse o Papa Francisco no Palácio Presidencial em Kinshasa, diante das autoridades e do corpo diplomático, depois de um breve encontro à porta fechada com o Presidente Félix Tshisekedi.
Jorge Bergoglio referia-se, em particular, à situação que se arrasta há três decénios no Leste da RDC, onde centenas de grupos armados, constituídos essencialmente na base de identidade étnica - entre os quais pontifica o M-23, em que a etnia tutsi é dominante -, se têm dedicado a espalhar o terror e à exploração artesanal de recursos minerais que vão parar às mãos de grandes multinacionais do ramo da electrónica. Entre os minérios mais cobiçados está o chamado Coltan.
O Papa recebeu várias das vítimas desses grupos - entre pessoas mutiladas, mulheres violadas, crianças que foram violentadas e centenas de deslocados. E pediu aos congoleses para se manterem unidos, a serem protagonistas do seu próprio destino. Uma mensagem destinada a levar os congoleses a reflectirem profundamente sobre o perigo que o futuro lhes reserva se a lógica da guerra, da violência, persistir. E é aqui que o Papa sabe que, como figura máximo da Igreja Católica, reside a força da sua palavra. No dom de persuadir, apesar de conhecer os limites da sua intervenção, pois, quem comanda os homens para a guerra, tem outros interesses, tem a força das armas. Até um dia, em que a palavra será mais forte.
As declarações do Papa Francisco trouxeram-nos à memória Agostinho Neto - o primeiro Presidente de Angola - que, numa das cimeiras da então Organização de Unidade Africana (OUA), afirmou que "África parece um corpo inerte, onde cada abutre vem debicar o seu pedaço”.
Tivesse Francisco proferido as declarações, que fez em Kinshasa, ao tempo em que Neto era vivo, teria certamente sido rotulado de comunista. Porém, diante da crueldade diária que a situação no Leste da RDC provoca, tanto ou mais grave que a guerra na Ucrânia, que este ano só completa um ano, contra os 23 anos de conflitos permanentes naquela região congolesa, o Papa só fez reviver o que eminentes estadistas africanos já haviam denunciado no percurso da luta anti-colonialista, ao constatarem uma realidade também contra a qual se rebelaram.
As diferenças étnicas, que constituem uma riqueza sem igual, um património cultural que deve ser preservado e servir de plataforma para promover o diálogo inter-étnico, o desenvolvimento humano e o reforço das relações entre os povos, estão a ser utilizadas como factor para acirrar as divisões e minar a existência da RDC enquanto Estado unitário.
Dividir para melhor reinar foi sempre uma estratégia seguida pelo poder colonial para se impôr e tirar o máximo de benefícios. Hoje, com os países já independentes, poderá dizer-se que os poderes coloniais já não existem. Todavia, as sementes, as raízes dessa actuação permaneceram.
As desconfianças avolumaram-se com o genocídio que ocorreu no Rwanda. A extrema pobreza e a luta pela sobrevivência são condições que potenciam conflitos. A existência de recursos minerais raros e de fácil exploração artesanal como o Coltan estão a funcionar como combustível para alimentar as escaramuças. Quem olhou para a situação e pensou em ganhar dinheiro não teve pejo em colocar armas nas mãos dos beligerantes e reorientar as hostilidades para se enriquecer.
As armas não caem do céu. As armas custam dinheiro. Os grupos armados têm revelado crescente grau de conhecimento no uso dessas armas. Quem vende as armas, dá treino e ganha dinheiro com isso.
O Papa Francisco sabe que o Leste da RDC está transformado numa extensa mina ao serviço de interesses alheios aos congoleses. Ao fim de três décadas de permanentes conflitos na região, é bem provável que alguém já tenha idealizado um mapa de divisão daquele território, o que é muito perigoso pelo precedente que pode abrir e pelas consequências que podem advir. Os avanços do M-23 e o crescimento do clima de tensão desde finais do ano passado indiciam esse propósito.
Todo este enredo não deixa de fora o Rwanda, apesar de as autoridades de Kigali afirmarem, de modo reiterado, não serem, de forma alguma, responsáveis pelos acontecimentos. A pacificação é responsabilidade de todos. Por isso o Papa Francisco abandonou os seus afazeres no Vaticano e foi até Kinshasa para vincar o ponto de vista da Igreja Católica.
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