Entrevista

“O 4 de Fevereiro é muitas vezes apontado como sendo um acto espontâneo”

Matadi Makola

Hoje, às 15 horas, no Arquivo Nacional, o historiador José Manuel da Silveira Lopes defenderá em palestra as razões que o levaram a interessar-se, profundamente, pela história política angolana, resultando na publicação de dois ensaios, respectivamente “O Cónego Manuel das Neves – Um Nacionalista Angolano (Ensaio de Biografia Política)”, lançado em 2017, e “Lutem Até Alcançarem a Liberdade”, de 2021. “Se o meu trabalho tem alguma importância, é o facto de ser feito por uma pessoa independente de quaisquer filiação política.

03/02/2023  Última atualização 09H52
© Fotografia por: João Gomes | Edições Novembro

Também me refiro à circunstância de que durante algum tempo, e trago neste livro, a influência do cónego na luta de libertação ter sido secundarizada ou mesmo omitida”, justifica nesta entrevista concedida a propósito

Como surge o interesse pela história?

Eu nunca trabalhei em História na minha vida profissional. Curiosamente estive em Angola muitas vezes, nos anos 1990, quando era gestor de recursos humanos. Vim a Angola a trabalho, como consultor na Sonangol e na TAAG. Eu sou licenciado em História mas nunca trabalhei antes nesta área. Quando chego à reforma, retomei a minha grande paixão, que é a história.

 

Teve alguma razão especial para pesquisar e desenvolver uma saturada biografia sobre uma figura de relevo político como o Cónego Manuel das Neves?

Inicialmente publiquei um livro menos ambicioso sobre o Cónego Manuel das Neves. Esse livro  surgiu por circunstâncias aleatórias, quando um amigo me pediu para investigar na Torre do Tombo alguns documentos sobre um outro assunto. Durante a pesquisa encontrei referências ao Cónego Manuel das Neves, precisamente o episódio em que ele se declara culpado perante a PIDE e levanta a hipótese de desistir das suas actividades canónicas. Achei curioso como um padre angolano pudesse ter sido vítima das autoridades coloniais de uma forma tão drástica.A partir dali comecei a interessar-me mais ainda por essa figura. Depois fiz um trabalho de investigação tão profundo quanto foi possível fazer nos arquivos portugueses. Por aquilo daquela época que está disponível, foi possível escrever uma biografia política que não pode ser confundida por uma biografia de vida. Ou seja, reporta as actividades políticas e independentistas promovidas pelo cónego, que desempenhou uma posição proeminente no 4 de Fevereiro de 1961. Portanto, acabei por escrever este livro que foi editado em 2017.

 

Onde encontrou tanta informação?

O que eu encontrei sobre o cónego nos arquivos portugueses são essencialmente documentos policiais. São na maioria documentos da PIDE ou do arquivo de Salazar, que contêm as coisas que chegavam ao corrente do ditador português. Já os arquivos policiais têm muito mais coisas e têm inclusive documentos originais, como correspondências. Tem muita informação, que eu acabei por ir corrigindo. É um trabalho complexo e exigente que obriga a vasculhar muita coisa, combinar, confrontar e cruzar fontes. Foi preciso conciliar fontes para que houvesse a garantia de qualquer coisa que correspondesse à factualidade real. Foi assim que eu acabei por ter contacto com uma realidade que conhecia mal, que é a história do nacionalismo angolano, desde os anos 1950 até ao 4 de Fevereiro de 1961.

 

Fez pesquisas em Angola?

Eu trato essencialmente a partir dos arquivos policiais, que se referem a partir de 1956. A documentação reporta a partir dessa data. São os arquivos que estão disponíveis, porque há muita pouca informação originária dos próprios movimentos de libertação nacional. O que existe dessa fase de actividade política em Angola contra o colonialismo português são, essencialmente, panfletos, que eu trato sobretudo no segundo livro que escrevi.

 

Encontrou episódios incómodos à volta da figura do cónego?

Eu diria coisas surpreendentes. Eu citei vários autores que se referem ao cónego como sendo uma figura que intervinha na política angolana mais espiritualmente do que realmente, agindo sobre essa realidade. O que pode ser surpreendente no livro que eu escrevi é que essa realidade é muito mais evidente do que a influência espiritual. Os seus discursos eram conhecidos como sendo incendiários ao regime português, portadores de atitudes independentistas. Se há alguma surpresa no livro, é o facto de se ter percebido que ele era um homem que tinha uma actividade política intensa, ligada sobretudo à UPA, que mais tarde viria a dar origem à FNLA.

 

Quanto tempo demorou essa investigação sobre a biografia?

Demorei pouco mais de um ano a terminar o livro. Já era reformado, pelo que tinha tempo. Passava dias inteiros no arquivo da Torre do Tombo. Fui encontrando coisas, e com alguma alegria encontrei o próprio processo do cónego. Mas o livro refere a lista dessa quantidade de processos que eu analisei.

 

Há quem aponte no cónego responsabilidades na direcção da UPA. As suas pesquisas confirmam?

Não há vestígios de uma institucionalização do papel dele dentro da UPA. Afirmo isso claramente com base nos arquivos que consultei. Que ele era a principal figura da UPA em Luanda, não há dúvidas quanto a isso. Nos anos 50, podemos dizer que ele não era o principal actor dessa luta clandestina, que é reconhecível pela minúcia. Ele não é um operacional de andar a fabricar panfletos, mas é provavelmente ele quem os corrigia e influenciava quem os fazia. Em relação ao 4 de Fevereiro, é evidente que ele não vai à luta de catanas nas prisões, aliás, e se havia dúvidas sobre isso, o livro traz de novo a confissão do cónego sobre as catanas que escondia atrás do altar. Ou seja, ele facilitou a distribuição das catanas, que eram as únicas armas que os revoltosos utilizaram, bem como disponibilizou mapas onde os locais de ataques estavam assinalados. Ele foi a peça decisiva na preparação. Vários autores e depoentes confirmam a importância que a palavra dele teve na execução dos assaltos.

 

O cónego também tinha como pseudónimos "Lumumba” e "Makarius”…

É assim que ele era chamado pelos seus pares, por outros padres negros africanos, era apelidado por Lumumba. Na relação com o Congo, pelas cartas que endereçava e recebia da sede da UPA, era tratado por Makarius. Isso aparece em parte da correspondência que sobrou nos arquivos da PIDE, visto que muito desse arquivo deve ter desaparecido ou estar disperso. São documentos autênticos, assinados, e sabe-se quem os produziu, muitas vezes sob pseudónimo.

 

Traz também a problemática de um possível silêncio sobre o cónego. Houve mesmo?

Se o meu trabalho tem alguma importância, é o facto de ser feito por uma pessoa independente de nenhuma filiação política. Também me refiro à circunstância de que durante algum tempo, e trago neste livro, a influência do cónego na luta de libertação ter sido secundarizada ou mesmo omitida. Digo que se trata de uma manifestação de um certo sectarismo político que só mais tarde foi corrigido, tanto é assim que os restos mortais do cónego vieram a Angola e viu o seu nome atribuído a uma artéria importante da cidade.

 

Como retrata o 4 de Fevereiro nos dois ensaios?

O 4 de Fevereiro é muitas vezes apontado como sendo um acto espontâneo, relativamente desorganizado, que visava somente o assalto às prisões e a libertação dos presos. Tinha havido uma série de prisões uns três anos antes, portanto, é muito retratado em função disso. Por outro lado, das circunstâncias de haver jornalistas estrangeiros à espera do barco Santa Maria a chegar nas proximidades da costa angolana, tendo em vista uma iniciativa política de instalação da zona libertada da ditadura salazarista. Essa leitura reduz o papel do 4 de Fevereiro. Neste livro que levou dois anos de trabalho em vários arquivos, não apenas policias como também no ministério português dos Negócios  Estrangeiros e Ultramar, traz uma investigação mais extensa que permite verificar que nos anos antecedentes ao 4 de Fevereiro há uma militância política que envolve centenas de pessoas, sobretudo gente dos musseques de Luanda, no âmbito do Movimento de Libertação de Angola, para uma acção que não se sabe bem o que era, mas numa incisiva ofensiva contra o colonialismo português. Portanto, o 4 de Fevereiro é aquilo que acontece na sequência dessa organização, reflectindo numa junção de vontades, tanto assim que publico um anexo no livro onde constam os nomes de 400 pessoas envolvidas neste dia, me expondo a críticas e comentários menos simpáticos. Algumas dessas pessoas eventualmente estarão vivas, ou os seus descendentes políticos.

 

Ou seja, poderia ter acontecido antes ou depois…

É essa iniciativa política que se prolonga ao longo do ano de 1960 e que desemboca no dia 4 de Fevereiro. Portanto, essa é uma leitura que eu julgo inovadora sobre o 4 de Fevereiro, por muitas vezes ser tratado como um acto espontâneo, relativamente inorgânico, sem dependência de qualquer tipo de organização política que o tivesse premeditado ou preparado. 

A minha leitura do 4 de Fevereiro, bastante extensa na investigação, centra-se essencialmente na identificação das razões que tem a ver com a procura da independência, essencialmente com este objectivo político, e não tanto com as circunstâncias da libertação dos presos ou a presença dos jornalistas. Essas circunstâncias dão origem a uma iniciativa que estava premeditada para acontecer ou nos finais de 1960 ou princípio de 1961, independentemente de haver presença de jornalistas ou não que justificasse que se fizesse qualquer coisa para ter repercussão internacional.

 

A olhar para o passado, como olha para futuro comum?

É um bocadinho estranho que seja um português a escrever sobre o 4 de Fevereiro. Vejo que há problemas de relação entre Portugal e Angola no domínio da publicação livresca e da comunicação entre universidades, que já deveriam estar superados há muito tempo, visto que o colonialismo já lá vai. Haveria toda a utilidade no incrementar desse tipo de relações.

 

Não será por haver arquivo em Portugal?

Obviamente. Os angolanos têm de se habituar a esta realidade. Os mais extensos arquivos sobre a realidade angolana desta época estão em Portugal. Os arquivos da PIDE, arquivos militares, o antigo Ministério do Ultramar, que tem montanhas de ficheiros sobre Angola, estão todos em Portugal.  O que não se explica é o número diminuto de investigadores angolanos a fazer pesquisa nestes arquivos.

 

Como a sua obra foi recebida no círculo académico português?

Eu não sou académico e nunca estive ligado a uma universidade, e isso explica uma certa marginalização do meu trabalho. Porque os académicos falam mais entre si e pouco com a sociedade. Portanto, há uma série de pequenos bloqueios, tanto que sou tratado com alguma indiferença, de certa marginalização a investigadores independentes, como é o meu caso. É a primeira vez que venho apresentar o livro em Angola, sendo uma flagrante manifestação das dificuldades das comunidades académicas de Portugal e Angola.

 

Conseguiu usar todo o material pesquisado?

Fiz uma abordagem integral dos arquivos disponíveis. Isso faz com que surja muito material, se fosse em jeito ensaístico muito provavelmente grande parte desse material seria desperdiçado, em consequência da necessidade de interpretação que o género impõe. Queria pôr no livro todo o material possível, permitindo uma interpretação com dados fundamentais, perceptiveis para quem ler o livro. É uma questão de método.

 

Apesar de breve, dedica um capítulo sobre a magia ou o efeito dela…

Algumas coisas são novidades que interessam a Portugal como interessam a Angola. Uma coisa que é relativamente mal tratada é o recurso à magia na mobilização das pessoas. Isso pode ser mal tratado ou ignorado, porque pode ser uma forma de diminuir as pessoas. Ou seja, é dizer que elas não pensavam por si próprias e que a magia as defendia nas suas actividades políticas. Eu resolvi abordar esse tema frontalmente, tendo inclusive um capítulo dedicado à magia, que não é muito extenso. Um outro aspecto curioso, que resulta dessa abordagem muito holística, é da relação entre o 4 de Fevereiro e o caso Santa Maria, que é um capítulo absolutamente inovador neste livro.

 

Acha que a História de Portugal tem estado a olhar com cuidado para esse passado comum?

Faço uma referência no livro e também penso abordar esse ponto na palestra, sobre a historiografia portuguesa que trata de uma forma quase superficial ou mesmo desprezível esses acontecimentos fora do território continental português. O que é um disparate completo. Eu trato o 4 de Fevereiro como um episódio que tanto interessa a Portugal como Angola. A Angola por ser um momento de prenúncio a uma independência que chegaria pouco mais de uma década, e a Portugal por ser a manifestação de um colonialismo já em fase anacrónica, visto que já despontavam os movimentos de independência, mas Portugal tenta manter um império à custa das armas.  A historiografia portuguesa quase nem faz referência ao 4 de Fevereiro, preferindo dar enfoque ao 15 de Março, mas também muito ligeiro, apenas como marco do início da guerra colonial.

 

Acredita haver uma vergonha de Portugal em assumir esse passado comum?

Acho que é uma forma de passar ao lado de questões que provavelmente ainda carrega um trauma da História de Portugal.O facto de não ser honrado, não quer dizer que esse passado não faça parte da História de Portugal. Esse é o meu ponto de partida, aliás, nesse último livro escrevo quase na perspectiva do colonizado. Trago um capítulo sobre a maneira como as autoridades portuguesas entenderam o 4 de Fevereiro e como foi interpretado. As autoridades portuguesas inventaram coisas exteriores aos colonizados, mas é preciso restituir a verdade e o justo protagonismo aos colonizados. É a verdade histórica.

 

O futuro da história poderá ser esse, corrigir o passado e evitar mais traumas sociais?

O passado é passado. Não se pode pôr uma pedra nele, apenas ajuda a interpretar o presente. Hoje é completamente errado Portugal e Angola estarem de costas viradas em certos domínios. Claro que estivemos no passado, mas hoje somos nações independentes, com razões suficientes para nos entendermos na partilha de um passado comum. Não há como fugir a isso. Minimizar esse passado, retirando protagonismo aos colonizados, é um erro histórico.

 

Entretanto, há invenções que se tornaram verdades. A pesquisa saturada pode trazer a nu algumas verdades desse período e assim corrigir a deturpação?

É evidente que a polícia inventa factos para desprestigiar as pessoas que perseguia. No caso do cónego, isso parece mais que evidente. Mas há coisas que mesmo que não se confirmem, não vale a pena fugir delas, mesmo quando as apresentemos mantendo a dúvida de que não pode ser confirmada. Por exemplo, nas pesquisas do segundo livro encontrei coisas relativas ao cónego que não tinha encontrado na primeira vez. Ou seja, há muita informação cuja conjugação resulta de pastas de arquivo completamente distintas umas das outras. O meu mérito nestes livros é o de conciliar fontes diversas para se obter a confirmação de um facto. Há autores portugueses recentes que escreveram sobre o 4 de Fevereiro e que dizem completos disparates, exactamente por não terem feito um trabalho de investigação saturado.Há muito da História de Angola por se estudar em Portugal, oxalá alguém um dia se dedique a estudar com muita atenção e paciência.

 

Tem mais algum livro por escrever sobre Angola?

Não está nada preparado para um novo livro. Eu já tenho uma idade que me permite querer estar mais sossegado do que quando escrevi esses dois livros. Este último significou dois anos da minha vida a frequentar a Torre do Tombo.

 

Hoje, num tempo que alguns apontam por pós-moderno, quais os grandes entraves da história e a sua utilidade?

Espero que se aborde estes temas com a mesma independência com que eu os abordei, sem tabus, preconceito ou juízos prévios, com uma atitude de humildade diante das informações que se recolhe dos arquivos. Ser crítico, mas não ignorando por preconceito ou outra atitude menos saudável. A história só ganha com uma atitude livre e independente, e não a preguiça que a leitura apressada de meia dúzia de papéis proporciona. 

"O Cónego Manuel das Neves         Um Nacionalista Angolano         (Ensaio de Biografia Política)”

Considerado como uma figura relevante da história de Angola, o cónego Manuel das Neves notabilizou-se pela rara coragem com que inscreveu o seu nome nas lutas de independência desse país. Indignado com as iniquidades e prepotências exercidas sobre o seu povo, começou por as denunciar do alto do seu púlpito, mas foi sobretudo na condição de vogal efectivo do Conselho do Governo da colónia, lugar que ocupou em 1945, que a sua voz se levantou com mais ímpeto. Mais tarde, não hesitou em inspirar a "rebelião de 1961” e apoiar as actividades da UPA, por achar que mais do que padre tinha a obrigação de defender um povo oprimido. Essa tão difícil decisão, entre o dever eclesiástico e a luta pela independência de Angola, valeu-lhe naturalmente a prisão e a reclusão até ao fim dos seus dias.

 

"Lutem Até Alcançarem a Liberdade”

A rebelião de 4 de Fevereiro de 1961, ocorrida em Luanda, tem sido olhada de modo superficial e algo tendencioso por quem sobre ela se tem debruçado. Pelo espírito independentista que a animou, tornou-se também objecto de disputa política, havendo quem reclame a sua paternidade, como é caso do MPLA, e quem a atribua a um outro agrupamento político então designado por UPA.

Neste estudo aprofundado, com sustentação em documentos irrefutáveis colhidos em importantes arquivos, procura o autor dar uma visão mais ampla e pormenorizada do que foi essa rebelião e de quem nela participou verdadeiramente. A obra inclui um prefácio do Professor Helder Adegar Fonseca, docente na Universidade de Évora, e uma extensa lista dos intervenientes na preparação e execução dos assaltos.

 

Perfil: José Manuel da Silveira Lopes

Licenciou-se em História, pela Faculdade de Letras de Lisboa, em 1969. Elaborou e apresentou então, sob a orientação do Prof. Jorge Borges de Macedo, uma dissertação sobre história medieval de Portugal. Esteve ligado a projectos de investigação, em colaboração com os Professores A. H. Oliveira Marques e Vitorino Magalhães Godinho.

Recentemente, dedicou-se ao estudo e divulgação de temas da História de Angola, mormente no que diz respeito aos acontecimentos independentistas em que participaram o clero católico nativo e as missões protestantes, resultando nos livros "O Cónego Manuel das Neves – Um Nacionalista Angolano (Ensaio de Biografia Política)” e "Lutem Até Alcançarem a Liberdade”, ambos centrados na epopeia sobre a Independência de Angola.

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