Opinião

Iniciativa africana para a paz na Ucrânia

O Presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, confirmou ontem a decisão de enviar uma missão africana a Kiev e Moscovo, a fim de tentar alcançar a paz no actual conflito da Ucrânia.

07/06/2023  Última atualização 06H50

 Essa iniciativa havia sido lançada em meados do mês passado, conforme revelou então Jean-Yves Ollivier, líder da organização não-governamental Fundação Brazaville. Segundo Ollivier, o objectivo da missão é "iniciar e ajudar a lançar um diálogo entre os dois países” (Rússia e Ucrânia). As posições dos países africanos, acrescentou ele, "são incondicionais”, isto é, não são favoráveis a qualquer uma das posições em confronto.

Cyril Ramaphosa corroborou o facto esta terça-feira, depois de se ter reunido com o Presidente Azali Assoumani, das Ilhas Comores e actual líder em exercício da União Africana, e os Presidentes do Egipto, Abdel Fattah Al-Sisi, do Senegal, Macky Sall, do Uganda, Yoweri Museveni, e da Zâmbia, Hakainde Hichilema. Segundo o comunicado do encontro, os referidos líderes "concordaram em dialogar com o Presidente Putin e o Presidente Zelensky sobre os elementos para um cessar-fogo e uma paz duradoura na região”. Os ministros dos Negócios Estrangeiros dos países em questão foram instruídos, conforme disse o estadista sul-africano, a finalizar os elementos para um roteiro para a paz na Ucrânia.

A deslocação da missão de paz africana está prevista para meados do corrente mês. Um facto precisa de ser realçado: a iniciativa africana é a primeira que tanto Putin como Zelensky concordam em receber. O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, também apoia a iniciativa.

Como é sabido, as posições dos países africanos em relação à guerra na Ucrânia não são unânimes, mas a maioria inclina-se para uma posição de neutralidade. O complexo EUA/OTAN/UE tem pressionado fortemente os países do continente a adoptarem uma posição clara de condenação da Rússia, pois a neutralidade favorece mais esta última. A África do Sul, que está por detrás da iniciativa de paz africana, tem sido dos estados mais pressionados, aparentemente sem sucesso.

Conforme os sinais exteriores disponíveis, Angola também não escapa a essas pressões. A recente declaração do Primeiro-Ministro português, António Costa, quando esteve em Luanda, elogiando o facto de o maior país africano de língua portuguesa ter condenado a invasão russa da Ucrânia insere-se nessas pressões. A verdade é que isso sucedeu apenas numa primeira votação; nas votações posteriores, Angola passou a abster-se, o que é mais consentâneo com a posição africana maioritária.

A tendência dos observadores e comentaristas ocidentais é atribuir a neutralidade africana em relação à guerra na Ucrânia a factores históricos e até ideológicos. Se os primeiros podem ter algum peso, os segundos não fazem grande sentido, pois, tal como a Rússia não é a antiga URSS, hoje nenhum país africano se continua a considerar "socialista” e mesmo os partidos que, no passado, pertenceram a essa linhagem, foram todos capturados pelas delícias do capitalismo (com aspas ou sem aspas, conforme a posição de cada um).

A posição africana em relação à guerra na Ucrânia é explicável por um facto que foi recentemente recordado pela ministra sul-africana dos Negócios Estrangeiros, Naledi Pandor, na reunião dos Brics realizada na cidade do Cabo: - "A atenção e os recursos dos nossos parceiros mais ricos foram desviados e as agendas das nossas organizações multilaterais já não respondem às necessidades e exigências do Sul Global”.

Ou seja, não se trata, ao contrário do que tentam fazer passar os "ideólogos” do envolvimento do Ocidente Alargado na guerra da Ucrânia, de apoiar a invasão russa, mas de impedir que um conflito localizado no leste da Europa faça esquecer os grandes desafios da humanidade, alguns dos quais, como a pobreza, atingem particularmente o continente africano.

As migalhas com que os países ricos nos acenam não justificam alimentar a loucura de uma guerra que poderia perfeitamente ter sido evitada. Essas promessas podem ser superadas, de longe, pelos fundos disponíveis no chamado Sul Global. Por isso, e apesar de eu não estar nada optimista, a iniciativa africana de paz na Ucrânia faz todo o sentido.

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