Opinião

É suficiente privatizar? Eis a questão!

*Elano da Fonseca Sicato

Uma boa parte dos economistas e empresários angolanos, mesmo os descapitalizados, acredita que privatizar e eliminar subsídios, constitui a chave mágica para a salvação das empresas públicas, no contexto de estaglação persistente com que o País se debate actualmente.

17/02/2021  Última atualização 11H05
 Muito longe de ser original, trata-se de uma visão que encontra eco nas ventanias neoliberais que sopraram, inicialmente, em economias industrializadas depois da 2ª Guerra Mundial, cujos reflexos do debate, estenderam-se igualmente para os integrantes do antigo bloco socialista, e mais tarde para os conhecidos países em vias de desenvolvimento, especialmente os de baixo rendimento.

Actualmente, como se de uma sabedoria convencional se tratasse, os "police makers" dos mais variados quadrantes da vida pública nacional têm compartilhado em grande medida a retórica segundo a qual, a privatização das empresas públicas representa um instrumento de melhoria da performance das empresas na economia, por se acreditar que reduzirá a dívida externa e em vista disto, poder  ser um processo que ao estimular a eficiência das empresas, aumentará o investimento directo estrangeiro e(des)poluirá o ambiente de negócio, induzindo uma possível retoma do crescimento económico no médio prazo. Paradoxalmente, a nossa constatação enquanto estudiosos dos processos de transformações económicas em realidades africanas, asiáticas e latino-americanas, convence-nos de que esta é uma verdade incompleta e portanto, uma perspetiva excessivamente limitada e por vezes, extremamente enganosa. Passando, com isto, a ser nossa responsabilidade categórica alertar para a necessidade de um debate público mais elástico e que seja capaz de avançar para além dos dogmas tradicionais da economia clássica.

Embora de um ponto de vista mais genérico, tratar-se de um debate que se delonga no tempo e na geografia, sucede que, os seus efeitos macroeconómicos reais, do ponto de vista de análise económica aplicada, permanecem obscuros, faltando evidências bastantes, que se reputem sistemáticas e metodologicamente consistentes sobre o impacto económico das privatizações a longo prazo. No plano da pesquisa, a dificuldade prática reside na identificação e quantificação dos ganhos estáticos e dinâmicos das privatizações, quando estas representam apenas uma parte de uma reforma que se pretende estrutural e, por isso, mais ampla, afectando a economia de modo transversal e desafiando os postulados da inteligência analítica. E se assim considerarmos, a leitura simplista de que a privatização, inexoravelmente, leva à maior eficiência económica, é, no mínimo perigosa!

Deste debate, demanda-se maior acuidade, quando se pretende passar da teoria à análise empírica, explorando o escopo e as determinantes das privatizações em países em desenvolvimento, bem como a relação entre Privatizações e crescimento económico. Nesta perspectiva, da avaliação feita aos dez países não africanos, que mais empresas públicas privatizaram entre 1960 e 1993, designadamente: Coreia do Sul, Chile, Malásia, Jamaica, México, Filipinas, Sri Lanka, Taiwan, Argentina e Brasil, observamos, tratar-se de uma relação, cujas conclusões foram bastante contraditórias e nalguns casos, perversas. Examinando os dois grupos de países, nomeadamente, da Ásia e da América Latina, verificamos que o relativo sucesso dos países asiáticos, deveu-se às condições económicas favoráveis aos estágios iniciais que antecederam a implementação da estratégia de privatizações, que por sinal, contribuíram para integrar actividades agrícolas, industriais e comerciais, dentro de uma lógica inter e intrassectorial, associadas a uma adequada intervenção do Estado na economia.

Por outro lado, a ausência de uma adequada conjugação entre a política monetária, fiscal e cambial, com desruptura na estratégia de conjugação entre as metas de inflação, controlo dos gastos públicos e o câmbio flutuante, gerou ineficiência produtiva na maioria dos países da América Latina, fundamentalmente, como resultado de um pobre processo de planeamento. É também importante não perdermos de vista que a ideia de eficiência económica que alimenta a crença de que a privatização é sempre um bem para economia, ignora os objectivos latentes das empresas públicas, que a leitura geralmente acrítica dos axiomas da escola clássica, leva até economistas acreditarem que a "mão invisível” do mercado tem respostas para todas as perguntas que preocupam a economia, diabolizando-se qualquer pensamento alternativo.

Obviamente que a história dinâmica, mas turbulenta do capitalismo desmente qualquer "mão invisível”. A crise financeira que eclodiu em 2008 e as crises da dívida que ameaçaram a Europa em anos subsequentes, são apenas as evidências mais recentes. Porque se pararmos para estudar a economia política das crises económicas, com destaque para a crise mexicana de 1994, "veremos” o quão ausente andou a "mão invisível” de Adam Smith, que alguns teóricos angolanos pretendem importar para salvar a economia do país.

Lembramos também que, do ponto de vista da eficácia, bem como da efectividade, o desempenho das empresas privadas e públicas pode não ser comparável, uma vez que estas buscam objectivos distintos. As primeiras, interessadas principalmente com a maximização do lucro, enquanto as segundas postulam objectivos mais complexos, porém, sempre alicerçados na ideia de um Estado benevolente, guardião último do interesse social. No caso da economia angolana, com a descolagem ainda por acontecer e com o processo de industrialização efectiva por iniciar-se "Big Push”, é ingénuo pensar-se que bastará passar as empresas da esfera pública para a privada, que se tornam mais eficientes.

Lembrou Paul Rosenstein-Rodan, ainda 1943, que face aos desafios que o desenvolvimento demanda, mesmo as actividades mais simples requerem a existência de outras actividades conexas, e para tal, é necessário a existência de infra-estruturas porque as empresas privadas, para além de não terem este interesse, não são capazes de desenvolver infra-estruturas tão complexas e dispendiosas, como coordenação de um processo de industrialização, pelo que, apenas o Estado ou alguma outra agência "gigante” deve intervir para financiar o arranque do desenvolvimento. Outrossim, em países com elevados níveis de assimetria regional, as empresas públicas podem representar instrumentos úteis no esforço da deslocação do investimento para regiões menos desenvolvidas, concretizando melhor a função redistributiva, essencial para o início do processo de desenvolvimento.

Enfim, destacamos que a poderosa metáfora da "mão invisível”, que se recusa a morrer entre nós, não foi usada por Smith para limitar a intervenção de um Estado que tem clara ciência do seu papel na economia. Só por isso, temos a sorte de vivermos num mundo em que as crises económicas são cíclicas, menos frequentes e persistentes.

*Investigador do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) da Universidade de Lisboa

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