Entrevista

Alexandre Chivale: População da vila de Palma vive momentos difíceis

Quase uma semana depois da retomada pelas forças governamentais de Moçambique da vila de Palma, na província de Cabo Delgado, depois de ter sido ocupada por rebeldes jihadistas do grupo Estado Islâmico, a situação continua difícil na região, sublinha Alexandre Chivale, advogado e investigador daquele país.

10/04/2021  Última atualização 10H15
© Fotografia por: DR
Palma foi tomada num ataque, em grande escala, a 24 de Março, da insurgência  que assola a província, há mais de três anos. Milhares de pessoas  fugiram da vila de cerca de 75 mil pessoas, dezenas morreram e várias infra-estruturas foram destruídas, inclusive a empresa francesa Total abandonou o local onde tem o projecto de gás de milhares de milhões de dólares
Qual é a real situação actual na vila de Palma de forma particular e de Cabo Delgado de maneira geral?Prefiro responder esta pergunta sem fazer alusão ao termo "real” para não ser surpreendido e desmentido pelos factos no terreno, pois a situação muda diariamente. Hoje,  dia em que me estás a entrevistar, a situação pode ser uma – de acalmia ou recuperação da vila-sede de Palma pelas forcas Governamentais, por exemplo – mas no dia em que publicares a entrevista no teu jornal, a situação pode ser outra. Se estivermos recordados, o modus operandi dos insurgentes envolve a surpresa, surpresa essa que tem deitado por terra todos os optimismos publicamente manifestados.  Desde que os insurgentes atacaram e tomaram a vila-sede que o distrito de Palma vive os piores dias de que há memória. Desta vez os insurgentes destruíram infra-estruturas governamentais, invadiram quartéis e dizimaram dezenas de soldados do Exército republicano e visaram alvos turísticos internacionais, como o Amarula Hotel.O dado novo do último ataque é precisamente este: atingir alvos que podem chamar a atenção internacional para a sua existência. Palma estava tomada pelos insurgentes e a província de Cabo Delgado estava dividida entre zonas controladas pelo Governo e zonas controladas pelos rebeldes. Considero o termo zona mais abrangente pois além dos insurgentes controlarem distritos inteiros como Mocímboa da Praia e Palma, controlam territórios que pertencem a distritos cujas sedes são ainda controladas pelo Governo.
Acredita na mudança de cenário  a curto prazo?

Acredito na boa vontade do Governo em inverter o cenário, mas em situações de guerra a boa vontade só não basta. É necessário dar passos firmes na direcção correcta, ainda que isso vá contra alguns interesses de grupos influentes a quem a situação actual satisfaz, por representar oportunidade de negócio.Quando está em causa a vida da população, a integridade territorial e a soberania de um Estado, todos os moçambicanos se devem vergar aos factos e usar os meios que têm ao seu dispor. Que são bastantes e suficientes para dar cobro à situação.
Organizações da sociedade civil exigem ao Presidente Filipe Nyusi que accione o pedido de apoio internacional. Para si o que falta para o Chefe de Estado o fazer, já que existe vontade da comunidade internacional de apoiar tanto logística ou militarmente?

Se eu disser que conheço as razões por trás da decisão de Sua Excelência o Presidente Filipe Jacinto Nyusi, meu Presidente e de todos os moçambicanos incluindo os de Cabo Delgado e de Palma, estarei a mentir. Só ele poderá explicar porque é que age dessa maneira. Vou apenas dar a minha opinião sobre essa questão. Para mim, todo o apoio internacional deve ser encarado como complemento aos esforços do Governo através das Forças de Defesa e Segurança (FDS) e não como panaceia. Depois, não devemos perder de vista que desde que o conflito começou, já houve intervenções externas, só que através de Empresas Privadas de Defesa, as chamadas Private Military Contractors (PMC) que outrora eram rotuladas por mercenários, cujas sedes estão em países influentes. Acreditoque esses Exércitos privados não entraram em Moçambique a seu bel prazer.Alguém os convidou e contratou. E só pode ter sido alguém com poder e legitimidade para o efeito. Três anos depois da intervenção de vários exércitos privados e de países diferentes, qual é o balanço que se faz? Só pode ser negativo, pois o inimigo ficou mais forte e conquistou mais terreno. O Governo perdeu terreno, está a perder homens e está a gastar recursos escassos que, caso tivesse agido a tempo para evitar o que está a acontecer, podiam ser direccionados para o desenvolvimento. 
Na sua opinião o que é que mudaria se o Presidente Filipe Nyusi enviasse um pedido internacional?Aconteceria apenas a substituição dos Exércitos privados estrangeiros por forças regulares de países estrangeiros.
E depois disso? 

Os insurgentes que agora assumiram a identidade da organização terrorista do Estado Islâmico da Província da África Central (ISCAP, sigla em Inglês), que de islâmico só tem nome (pois a religião islâmica prima pela PAZ), abandonariam o território já conquistado e abririam as alas para a força internacional entrar e repor a ordem? Está claro que não. A minha opinião é baseada naquilo que temos vindo a assistir sucessivamente no Iraque, na Síria e na Líbia. Qual foi o resultado da intervenção internacional nesses países? E qual foi a reacção dos insurgentes? Estes multiplicaram-se e fortificaram-se. Começaram a ver as suas fileiras crescerem pois passaram a contar com elementos vindos de outros países interessados em lutar contra forças internacionais. Em resumo, esses países tornaram-se palco de confrontação entre vários  grupos e interesses internacionais.E estamos a assistir esse padrão em Moçambique, pois a cada dia que se atrasa os insurgentes ficam mais fortes e vão ganhando identidade que antes não tinham. Em Outubro de 2017, quando foi registado o primeiro ataque a uma esquadra policial de Mocímboa da Praia, o Governo deu ultimado de 7 dias para se renderem e beneficiarem de amnistia. O grupo que se identificava como Ansar al Sunna ou Al Shabab desafiou o Governo e continuou com as suas incursões e foi ganhando forma e mudando de identidade.
Quais são as regiões mais atingidas por acções dos terroristas?

 O grupo concentrou as suas acções essencialmente nos distritos do litoral, na zona que se estende entre os distritos de Mucojo, passando por Mocímboa da Praia até Palma. Se 2017 foi o primeiro golpe que valeu para o susto, em 2018 registaram-se cerca de 5 ataques por mês. Em 2019, o número de ataques subiu para cerca de 15 por mês e em 2020 subiu para cerca de 30 por mês. É claro que nem todos os ataques são mediáticos, sendo que, muitos deles, de pequena dimensão, visam o reabastecimento logístico do grupo. Mas não deixam de ser ataques, pois são realizados em zonas diferentes o que pressupõe um alastramento das actividades do grupo.
Qual seria a motivação (o que ganham) esses países interessados em arriscar osseus concidadãos (homens e mulheres) e meios (financeiros, materiais e logísticos) para substituírem exércitos regulares? 

Uma coisa é certa: a factura que Moçambique tem estado a pagar aos mercenários vai subir, além de que não sabes quando esses mercenários vão se retirar, se é que tencionarão retirar-se em algum momento. Como moçambicanos, não nos devemos iludir e pensar, como tenho ouvido alguns políticos ingenuamente a mencionarem, "o país X é nosso amigo e está disposto a ajudar-nos”. Isso é falácia, pois em Relações Internacionais não há amigos, mas sim interesses. É em função dos interesses que seestabelecem as alianças ou guerras. O importante é definirmos qual é o nosso interesse como moçambicanos e em função disso, gizarmos um plano de acção de curto, médio e longo prazo.
Na sua opinião, o que é que acha que está a falhar ou o que acha que deve ser feito a curto prazo para que a situação em Cabo Delgado volte à normalidade?

Eu acredito que o nosso problema não é a falta de capacidade, pois essa capacidade existe internamente. Temos meios humanos competentes e à altura do desafio e temos meios materiais e logísticos para dar cobro à situação. O que é necessário é o uso consciente e racional da capacidade interna que temos. As Forças de Defesa e Segurança (FDS) têm capital humano e arquitectura institucional para fazer face à situação. É essa capacidade que foi capaz de produzir a paz e estabilidade que Moçambique viveu desde que o conflito dos 16 anos terminou em 1992. É essa capacidade que fez com que as tentativas de reacender o conflito armado em 2012 fossem geridas e resolvidas internamente e usando as FDS.
O Senhor não acredita que a situação era previsível?

O que estamos a viver hoje não aconteceu do nada. Os sinais estavam visíveis há mais de uma década. A avaliação de ameaças que foi feita pelo SISE, na altura, e que serviu de base para que o Comando Operativo das Forças de Defesa e Segurança aprovasse a proposta de criação do Sistema Integrado de Monitoria e Protecção (SIMP), apontava para a situação actual caso não se fizesse nada. E o Exercício de avaliação de ameaças não era algo exclusivo de Moçambique, pois era feito a nível bilateral, particularmente com países da região, e multilateral ao nível da SADC e da União Africana. Recordo-me que em 2011, quando estávamos a fazer a revisão da avaliação de ameaças do ano anterior (pois é um exercício anual), usamos como referência uma acta da sessão da Comissão Conjunta Permanente de Defesa e Segurança Moçambique-Tanzânia, realizada em Dar-Es-Salaam, em Abril de 2011, co-presidida por Sua Excelência Filipe Jacinto Nyusi, então ministro da Defesa Nacional. Através desse instrumento, os dois países se comprometiam a tomar medidas concretas para estancar a imigração ilegal e a pirataria marítima que eram vistas como sementes para o terrorismo internacional, que é o que estamos a assistir hoje. Aquelas duas ameaças constituíam também prioridade do Órgão da SADC para Cooperação nas áreas Política, de Defesa e Segurança e do Comité dos Serviços de Informações e Segurança do Estado (CISSA) da União Africana. E porque havia consciência de que o melhor método de resolução de conflitos é a sua prevenção.
E Qual foi a reacção do órgão da SADC?

O órgão da SADC chegou a criar um Centro Regional de Aviso Prévio (CRAP) que foi inaugurado, na sua qualidade de presidente do Órgão, por Sua Excelência o Presidente Armando Emílio Guebuza, no dia 12 de Julho de 2010, em Gaberone, Botswana. O Centro Regional recebia inputs de Centros Nacionais de Aviso Prévio que são geridos pelos sectores de análise de informações – intelligence analysis units – dos Serviços de Informações dos países membros.
Qual foi a sua génese?

Estaria a ser injusto fazer menção ao CISSA sem recordar que a sua génese foi precisamente em Luanda, quando o general José Garcia Miala, em 2004, acolheu uma reunião dos directores-gerais de alguns Serviços de Informações para estudarem formas para fazerem face à tendência emergente, na altura, de mudança inconstitucional de Governo. Por isso, a minha vénia e saudação ao General Miala eao saudoso Dr. José Castiano de Zumbire, antigo DG do SISE pela brilhante ideia. Hoje, mais do que nunca, entendemos o rácio da decisão desses que se contam, sem dúvidas, dentre os melhores filhos de África pois entenderam cedo que sem instituições fortes, ao nível regional e continental, nenhum país conseguira, por si só, enfrentar ameaças internacionais.
Moçambique tem meios marítimos, aéreos e terrestres para fazer face à situação?

Não percebo porque é que não se usam os meios que o Presidente Nyusi adquiriu, enquanto ministro da Defesa Nacional (MDN). Dos meios visíveis pelo cidadão comum, pois cruzavam os nossos ares e aeroportos, eu recordo-me que em 2015 Moçambique tinha dois aviões antanoves AN-26, cerca de três helicópteros Mi-8T, além de diverso equipamento adquirido pelas empresas do SIMP, nomeadamente Proindicus SA, EMATUM SA e MAM SA, maior parte do qual está em Pemba. Vou recorrer a informação que foi publicada pelo semanário Canal de Moçambique, que cita uma carta do Iskandar Safa para o Presidente Filipe Nyusi, para apresentar a lista do que foi fornecido: "Um Centro de Comando e Controlo, um sistema completo de vigilância por satélite, seis aeronaves de reconhecimento equipadas com sensores, três drones de reconhecimento, 16 estacões de radar estrategicamente instalados ao longo da costa moçambicana (e que cobrem Palma), seis navios de patrulha oceânica (dos quais 3 Ocean Eagle e 3 HSI-32), 39 lanchas de intercepção rápida (DV-15 e WP-18), 24 barcos de pesca, dois estaleiros navais (um em Maputo e outro em Pemba), um estaleiro flutuante (navio de 200 metros) denominado African Storm e, o mais importante de tudo, Propriedade Intelectual para que Moçambique se torne auto-suficiente”.

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