Opinião

A narrativa certa

Kumuenho da Rosa

Jornalista

Um amigo perguntou-me, com ar preocupado, o que estávamos a fazer de errado. Na Educação, na Saúde, nos Transportes, no Comércio, enfim, nas Contas Públicas. Está difícil encontrar casos de sucesso. Ele tomara de exemplo outras realidades que ele conhece para estabelecer paralelos com a nossa realidade que ele também julga conhecer. Na verdade, o problema não está em nós, refiro-me a mim e ao meu amigo, mas no quadro todo, na forma como compreendemos a nossa própria realidade.

26/03/2024  Última atualização 06H05

Mas como compreender a nossa própria realidade se não a contamos da maneira correcta? Melhor, como compreender certa realidade, já nem digo a nossa, apenas, mas uma realidade, seja corporativa ou comunitária, se ela não é contada e explicada da maneira correcta? O segredo está na narrativa. Está na forma como contamos a nossa história ou como ela nos é contada.

Sendo certo que todos pautamos as nossas vidas pelas interpretações das estórias que carregamos dentro de nós mesmos enquanto vivemos, não é difícil perceber que a forma como nos engajamos num qualquer propósito colectivo depende e muito da força da narrativa criada para o efeito. Temos, sim, casos de sucesso, embora não tenha condições para comparar bons e maus em termos estatísticos.

A narrativa certa, se é que existe do ponto de vista conceptual, será aquela que engaja. Aquela que consegue arrebatar o maior número de seguidores. Por favor, não se entenda seguidores de redes sociais, como já alguém me tentara convencer de que era essa a forma de se obter notoriedade. Numa realidade como a nossa, em que a maioria das pessoas não tem ou não faz uso correcto da Internet, a abordagem da influência terá que ser outra sob pena de errarmos completamente o alvo e falharmos objectivos estratégicos nacionais.

Combater a fome e a pobreza, diversificar a economia, aumentar a produção e substituir as importações, acabar com as mortes por doenças preveníveis ou evitáveis, defender a pátria de todas as ameaças, são objectivos nacionais tão legítimos como aumentar o acesso ao ensino de qualidade, profissionalizar o serviço público e transformar a economia centrada na extracção de recursos minerais para uma economia de serviços ou mista.

Na realidade, em todos esses desafios não haverá fórmula mágica que resulte sem o engajamento e o comprometimento das pessoas.  Qualquer destes desafios ou propósitos nacionais fazem parte da pauta política nacional, vemo-las citadas nos jornais e noticiários, mas chegar perto ou ficar a milhas de distância da sua concretização dependerá sempre do grau de compreensão e comprometimento daqueles a quem apontamos como os primeiros beneficiários das acções em pauta.

Com a narrativa certa consegue-se o impossível. Muita gente cita Joseph Goebbels para cravar a ideia de como se consegue tornar uma ideia, por mais obscena e hedionda, como fundar o Terceiro Reich, numa espécie de crença ou doutrina nacional.

Na mesma linha, muitos autores que abordam a temática do comprometimento e engajamento nacional, citam o 35º Presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, e o célebre discurso na Rice University, em 1962, quando disse que "nós escolhemos ir para a lua”, com o qual obteve uma espécie de legitimação nacional para a agenda espacial americana.

Ora aqui estão dois bons exemplos de como a narrativa certa faz toda a diferença. Um levou o mundo a uma guerra à escala global e o outro levou o seu país à lua e todos os benefícios que esse feito representa para a América até hoje.

Não é que nos faltem exemplos de coisas boas que tenham sido (bem) feitas tendo na base uma (boa) narrativa. No passado domingo, celebramos o sexto aniversário do "23 de Março”, Dia da Libertação da África Austral. A data passou a Feriado Nacional em todos os países da sub-região, porque nesse dia, 34 anos atrás, cessavam os combates do maior confronto militar da história da guerra em Angola.

Em rigor, a Batalha do Cuito Cuanavale teve como principais protagonistas as Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA), com o apoio de internacionalistas cubanos, e as  Forças Armadas de Libertação de Angola (FALA), braço armado da UNITA, apoiadas pelo Exército Regular da África do Sul.

Desde a adopção da data como Feriado Nacional, na Assembleia Nacional, que deixaram de se ouvir reivindicações de vitória de um lado ou de outro. As narrativas e memórias sobre a batalha do Cuito Cuanavale continuarão a alimentar debates, mas nenhuma versão poderá pôr em causa o desfecho da Batalha do Cuito Cuanavale como o ponto de viragem decisivo na guerra fratricida que se arrastava há longos anos.

Foi o que aconteceu no Cuito Cuanavale, no Triângulo do Tumpo, que levou ao acordo para a retirada de tropas estrangeiras do solo angolano e a assinatura dos Acordos de Nova Iorque, que deram origem à implementação da resolução 435/78 do Conselho de Segurança da ONU, desencadeando a independência da Namíbia, a libertação de Nelson Mandela e o fim do Apartheid, regime de segregação racial que vigorava na África do Sul.

É, como disse no início, o problema da narrativa. É preciso contar a história para que a possamos conhecer e compreender por que acertamos numas coisas e falhamos redondamente em outras. Tudo uma questão de narrativas. Na Alemanha, crianças a partir dos 11 anos são expostas à História para que elas compreendam os erros do passado. Na América, aliás, um pouco pelo mundo, as ciências espaciais são ensinadas no ensino de base.

Desde os tempos imemoriais que a História é utilizada como instrumento para ensinar, para informar, entreter, reforçar crenças e para dominar. Fixar metas e atingi-las é possível, por mais absurdas e inumanas que pareçam. Desde que o mundo é mundo, quem contou a melhor história, provavelmente, venceu. Claro. Com a narrativa certa.

*Jornalista

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