Reportagem

Retrato de lugares e gentes numa viagem de Luanda a Windhoek por estrada

Leonel Kassana

Jornalista

Embarcámos, a meio de uma dessas manhãs, particularmente quentes (como acontece ultimamente em Luanda), a partir da estação de autocarros da Macon – passe a publicidade – na zona dos Ramiros, um aglomerado populacional que regista um crescimento exponencial, com a previsão de chegada à cidade ferroportuária do Lobito pouco depois das dezassete horas.

12/03/2023  Última atualização 05H00
© Fotografia por: Vigas da Purificação | Edições Novembro

Mas tal não se concretizaria, pois alcançámos a "cidade dos flamingos” quase próximo das vinte horas, algo que se ficou a dever a algumas paragens (necessárias), como a do rio Longa, à entrada da província do Cuanza-Sul e onde há anos está montado um mercado, onde os passageiros aproveitam para comer, para recarregar o farnel ou mesmo "esticar a pinha”. Para tanto, frango, carne ou peixe grelhado, quase sempre acompanhado de batatas fritas, além, claro está, da respectiva bebida, bem à maneira do angolano.

A seguir, uma outra paragem, mais ou menos prolongada, na estação da Macon em Porto Amboim, uma importante vila pesqueira do Cuanza-Sul que tem a particularidade de possuir um porto comercial e alguma actividade industrial assinalável, como a produção de artefactos para a indústria petrolífera.

Mas esse é apenas um detalhe de reportagem. Na verdade, perde-se algum tempo em Porto Amboim, o que cria sempre algum desconforto, sobretudo para quem tem alguma urgência de chegar ao destino, mas com poucas alternativas.

De novo à estrada. Até ao conhecido Instituto de Petróleos, no desvio para a Gabela, mais para o interior do Cuanza-Sul, depois de passar pela ponte sobre o rio Keve, Pinda e comuna da Ngangula, a viagem corre célere. Aqui (Instituto de Petróleos) flagramos um numeroso grupo de turistas a caminho do Sul do país, a traduzir a atractividade de um sector ainda muito pouco explorado, apesar de algumas iniciativas mais ou menos bem conseguidas.

Depois entra-se numa fase de desaceleração, antes de alcançar a chamada descida do Chingo, à entrada da cidade do Sumbe. Trata-se de um local íngreme, muito conhecido pelo seu histórico de acidentes, sobretudo com veículos pesados, o que requer dos motoristas cuidados redobrados.

Na capital do Cuanza-Sul são visíveis obras para a requalificação da cidade, como a melhoria da circulação, mas parece ainda haver muito trabalho pela frente. Acabar, por exemplo, com as construções anárquicas, feitas sobretudo em zonas de risco, o já  "crónico”  problema da poeira e os buracos nas estradas surgem como tarefas desafiantes para quem governa aquelas paragens. Os relatos de casas que desabam, quando chove, são recorrentes.

Enquanto permanecemos na estação da Macon, deu para ver a "desordem” dos motoqueiros no Sumbe, aliás uma realidade muito presente em muitas cidades do país, a atrapalhar a já péssima circulação de veículos, bem como pequenos mercados improvisados, não muito distantes das vias de circulação.

Ao deixarmos o Sumbe e depois de passar pelo rio Kimbo, aguarda-nos um trecho penoso para os veículos. Por conta de obras que estão a ser executadas na EN 100 em direcção a Benguela, foram feitos vários desvios, o que requer muita prudência a quem vai ao volante.

Nesse troço perde-se, também, muito tempo, mas o conforto vem a seguir, seguramente, com uma circulação mais segura, quando terminarem as obras. E é isso que anima os camionistas, motoristas de autocarros e outros utentes dessa via, de capital importância para o corredor da SADC, numa altura em que a integração regional está na ordem do dia.


"Bolsa de negócios” da Canjala

Quando retornámos definitivamente ao asfalto, alcançámos a comuna da Canjala, isso depois de deixarmos a localidade de "Evale de Guerra”, já em território da província de Benguela e há pouco menos de sessenta quilómetros do Lobito.

Apesar de a memória insistir em recordar-nos tristes episódios de que o local foi palco num passado recente, Canjala reclama, hoje, por reconhecimento mais consentâneo à nova realidade que faz dela uma verdadeira fonte de aquisição de produtos alimentares diversos, capazes de satisfazer mesmo as mais exigentes despensas por Angola adentro. 

Qual "bolsa de negócios” naquele eixo rodoviário, o mercado local funciona ininterruptamente e com uma oferta tão vasta de bens alimentares, que em anos seguidos se transformou num local de paragem obrigatória para quem vem do Sul e Norte de Angola.

Independentemente do "statu” que se tenha, é difícil passar indiferente na Canjala. Anotámos. Aqui se adquirem, a preços verdadeiramente imbatíveis, diversas hortícolas, como o tomate, couve, repolho, cenoura, feijão macunde, feijão frade, feijão preto, milho, abacate, mandioca, batata -doce, banana, frutas, mel, óleo de palma e outros bens muito presentes nas mesas angolanas.

Quantidades significativas de caprinos, suínos e aves, sobretudo galinhas, são, também, vendidas no mercado da Canjala. De diversas aldeias, umas mais distantes e outras adjacentes, chegam pelas mãos de criadores e compradores. 

A chegada dos veículos é sempre acompanhada por muito assédio de vendedores, sobretudo mulheres e jovens, num impressionante jogo de sedução para atrair o maior número de  clientes. Também há garotos que disputam, palmo a palmo, os clientes para a venda de sacos. 

Muita gente de Benguela e Lobito "transferiu-se” mesmo, a tempo inteiro, para a Canjala, para fazer negócios, o que dá bem a ideia da importância desse mercado. Outros fazem-no sazonalmente.

Não se tem, seguramente, ideia do volume de massa monetária que circula por aquele mercado, mas a avaliar pelas centenas (talvez milhares) de vendedores, não seria surpresa se alguns bancos comerciais partirem para a montagem de serviços na zona.

A sensação com que se fica é, também, de que, com terras férteis a perder de vista, vales irrigáveis, chuvas abundantes e, sobretudo, muita gente com apego ao campo, se pode fazer, definitivamente, da Canjala uma área de importância capital para a economia daquela região litoral do país e arredores.


Lobito,a "Sala de visitas de Angola”

A cidade ferro-portuária do Lobito, também chamada "Sala de visitas de Angola”, surge-nos de rompante. Antes, a passagem por Culañgo, na bifurcação para o Planalto Central, entrando por Bocoio, Balombo, até chegar ao Londuimbale, já em território do Huambo.

Na pequena povoação do Culañgo estão montados alguns serviços comerciais, sendo os de maior visibilidade as bombas de combustíveis, o que cria outra dinâmica à pequena povoação.

Aqui, as aspas sobre a sala de visitas que é (era) o Lobito não são fortuitas. Hoje, a "Sala de visitas” passou, a bem dizer, para o Lubango, qual "Rainha” das cidades do Sul de Angola.

Com um trânsito caótico, um "Chapanguele” (em umbundu quer dizer ‘ainda não fiz nada’) -, no passado um mercado de grande referência -, construções anárquicas a surgirem como cogumelos, zonas como Santa Cruz, Lixeira, Alto Akongo, Bango-Bango, todas nas encostas do morro da Kileva, Lobito, com o tempo, foi perdendo o seu antigo encanto.

Há como que um "frenesim” total na cidade, tal é o volume de obras. As autoridades parecem ter tudo para resgatar a "mística” do Lobito. Há obras de requalificação e asfaltagem de estradas e nalguns bairros melhoramento da iluminação, limpeza e perfilamento das valas de drenagem, para citar apenas as emblemáticas. 

O Museu Etnográfico e o Cine Flamingo são, também, citados como estando na primeira linha das obras de reabilitação do Lobito, ao lado de toda malha rodoviária do Bairro 28 - um dos mais emblemáticos da cidade - bem como as travessas das principais avenidas.

Mas há boas coisas. A Restinga, onde fica parte significativa da cidade, continua aquele "ex-líbris” do Lobito. Sobressai pela limpeza. Vimos hotéis, restaurantes, bares, esplanadas e outros serviços de restauração funcionais. É uma espécie de "refúgio” para muita gente nesses dias de calor em quase todo o litoral de Angola.

A cidade tem, também, a particularidade de ser a sede do Caminho-de-Ferro de Benguela (CFB) e albergar o Porto, infra-estruturas que fazem parte do chamado "Corredor do Lobito”, além de outras empresas relevantes.  É ali onde estão, igualmente, várias instituições de ensino, inclusive academias militares.


Concorrência entre as companhias 

O veículo não estava totalmente preenchido, mas tinha passageiros o suficiente para receber ordem de partida rumo ao Sul de Angola. Percebe-se, claramente, que há uma concorrência enorme entre as companhias de transporte, que vão para diferentes partes de Angola.

Poder-se-ia dizer mesmo que há como que uma corrida contra o tempo à cata de clientes.

E a região mais a sul do rio Kwanza é, seguramente, das mais apetecíveis, como se pode facilmente aferir pela quantidade de veículos a circular. Um trânsito quase imparável. 

Há gente que vai a negócios. Outros em serviço, oficial ou particular, uns em visita familiar, mas há quem vai à procura de tratamento médico em hospitais da Namíbia, sobretudo em Oshakati e Windhoek, para citar apenas os mais referenciados entre a comunidade angolana. E isso percebe-se logo pelas conversas que vamos tendo ao longo da viagem.

Ponto e vírgula nesta incursão. A noite já tinha caído, quando passamos por Benguela, também conhecida por "Cidade das Acácias Rubras”, mas foi o suficiente para vermos um movimento frenético de viaturas, numa urbe vibrante, que praticamente não dorme.

A próxima paragem é, pois, a Huíla e depois o Cunene, antes de chegarmos a Windhoek. Estivemos na Bonga, Muica, Quicuco, Hole, Dinde e arredores. Antes de atingirmos a capital namibiana, passámos por Oshikango, Ondangwa, Omutinua, Oshivelo, Tsumeb,  Otavi, Otchiwarongo, Okahandja... Essas são as histórias que podem ser seguidas em próximas edições deste Jornal, viajando por estrada.

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