Reportagem

Circulação continua condicionada no Hogiwa

Leonel Kassana

Jornalista

A circulação de veículos na zona do Hogiwa, um importante nó rodoviário na EN 100, a cerca de 70 quilómetros da vila de Porto Amboim, província do Cuanza - Sul, continua a ser feita sob graves restrições, com muitas viaturas, sobretudo as pequenas, a não conseguirem a travessia.

16/04/2024  Última atualização 06H15
A surpreendente subida de água provocou a destruição de infra-estruturas sociais, habitações e campos agrícolas © Fotografia por: Arsénio Bravo| Edições Novembro
Apesar do nível da água ter baixado ligeiramente nos últimos dias, a situação não promete, pelo menos a breve trecho, a reposição total do movimento de viaturas naquela que é considerada a principal via de ligação entre o Norte e Sul de Angola, pela costa atlântica.

Sexta-feira, uma equipa de reportagem do Jornal de Angola esteve no Hogiwa e pôde testemunhar um quadro dantesco, que caracteriza a circulação de pessoas. O bairro de Hogiwa, que surgiu num vasto vale próximo da EN 100, viu-se, de repente, completamente inundado de água, quando o rio Longa transbordou.

Esse é o resultado mais dramático das fortes chuvas que desde Novembro se abatem sobre quase todo o  território da província do Cuanza - Sul em particular. Nesse troço crucial da via do corredor da SADC, só mesmo viaturas pesadas e algumas ligeiras passam, mas com sérias limitações.

As fitas reflectoras colocadas pela PN nas bermas da estrada mostram a preocupação redobrada com a segurança na circulação. O quadro que nos foi dado a ver é desolador. A água "cortou", por assim dizer, a estrada nacional, algo que, hoje, sugere cuidados redobrados a quem se arrisque passar por esse verdadeiro caos rodoviário.

O que se regista são graves dificuldades de circulação nesta altura e a situação chega mesmo a a levantar questões de segurança pública, por estar em jogo a preservação de vidas humanas e importantes equipamentos sociais.

Por esses dias, os efectivos da PN destacados no Hogiwa, não têm mãos a medir, passando muitas noites em claro, pela gravidade da situação. É um corre-corre, entre a sinalização das áreas que apresentam maior nível de perigosidade, socorro às pessoas que perderam totalmente os seus bens e sensibilização dos utentes da via, para a necessária prudência.

Quando o quadro se apresentava já como mais perigoso, as autoridades chegaram mesmo a aconselhar os "homens do volante" a evitar aquele troço, usando estradas mais seguras, contornando por outras vias, como a vila da Gabela, até atingir a EN 100, próximo do Sumbe, seguindo, depois, para Sul do país.

Uns (poucos) automobilistas, sobretudo aqueles que usam carros de pequeno porte acataram o aviso, com receio (justificado) de verem as suas viaturas arrastadas pela força da água, que não seguem o curso normal do Rio Longa, em direcção ao Atlântico.

Num posto policial, logo a seguir à ponte sobre o rio Longa, a advertência de um oficial não poderia ser mais clara: "Têm que ir devagar, aí a cerca de três quilómetros, vão já começar a ver a gravidade da situação".

E tinha razão. Mal fizemos cinco quilómetros da ponte do Longa, começámos a "sentir" o caos que se instalou por esses dias naquela área, com bastante água a vir, incessantemente, da parte norte para as vastas chanas, que acabaram por ficar completamente inundadas.

Muito cioso, o diligente oficial, foi-nos, também, avisando sobre os perigos a contornar até chegar ao bairro Hogiwa, na verdade, o centro do que se pode considerar um verdadeiro  furacão, com dezenas de infra-estruturas sociais e residências de populares muito afectadas. Umas, a maioria, ficaram destruídas e outras, inundadas ou submersas. 

Os motoristas mais imprudentes têm visto as suas viaturas a encalharem nesse local, como foi o caso de duas, na noite anterior à nossa passagem, entretanto, prontamente socorridas por efectivos da PN, bombeiros e pela população. "Muito cuidado, essa noite tivemos de socorrer duas viaturas que aí caíram", advertiram-nos ainda no posto de controlo do Longa.

Como nos havia advertido o oficial da PN, mais à frente encontrámos uma área devidamente sinalizada dos dois lados, a indicar perigo iminente. Aqui, a água destruiu completamente largos espaços das duas bermas da estrada, estreitando a via e criando zonas fundas, o que tornou a passagem ainda mais crítica.

Pior cenário no centro do bairro

Mas o pior cenário ainda estava por vir. Passada a primeira "prova de fogo", fomos dar, à entrada da vila, com uma escola primária, uma infra-estrutura de imensa visibilidade.

Reabilitada em Dezembro último, essa escola está há dois meses completamente inundada, mas nos últimos tempos a situação agravou-se, deixando centenas de alunos sem aulas, como Antonica Fragoso Ricala, de 16 anos, estudante da sétima classe.

Moradora não muito distante do Hogiwa,  diz que o rio Longa "anda muito cheio e a água espalhou-se toda pelo bairro" e acrescenta que os seus pais perderam parte das lavras, onde produziam, sobretudo, batata rena, mandioca, feijão e frutas.

Deixámos que Ricala seguisse caminho, algo triste, por já não poder voltar a estudar, pelo menos esse ano, na "nossa bonita escola". "O regresso às aulas talvez só no próximo", diz, resignada.

Resignados também estava um  grupo de garotos, que, indiferentes a eventuais doenças naquelas águas escuras que cruzam as vastas chanas, alegres, mergulhavam nas várias lagoas que surgiram no bairro Hogiwa.

Pela sua relevância social, o Posto de Saúde de Hogiwa deve ser destacado, também, do conjunto de infra-estruturas mais afectadas pelas chuvas. Ficou  completamente inundado, o que fez surgir receios do agravamento de doenças como paludismo, sarna e diarreias, numa área onde a assistência sanitária já era precária, com apenas um enfermeiro.

Um detalhe de reportagem: em Dezembro passado, nessa escola o casal presidencial esteve a interagir com mais de uma centena de crianças, a quem ofereceu um almoço e brinquedos, numa acção solidária por altura do Natal.

Essa infra-estrutura está, agora, totalmente inundada, para a tristeza daquelas crianças que responderam, na altura, com precisão às várias perguntas do Presidente João Lourenço e esposa, sobre a importância da protecção das tartarugas.

O Presidente da República, João Lourenço, acabava de proceder à largada ao mar de 287 neonatos de tartarugas na zona de desova da foz do Rio Longa, no município do Porto Amboim, no seguimento do Natal Ecológico.

Dificuldades no interior do Cuanza-Sul

Como se diz mais acima nesse espaço, a EN 100 é uma via fundamental para a mobilidade económica no sentido Norte/Sul e vice -versa. É por aqui onde passa tudo o que se consome nas províncias situadas nesse eixo.

Do interior do Cuanza - Sul, província que tem vindo a impor-se na produção de cereais e hortofrutícolas, vêm sobretudo a mandioca, batata doce, banana, abacate, ginguba, tomate, pimento e uma variedade de verduras, que inundam os mercados da capital do país.

Com as inundações, as viagens para Luanda, passando pelo litoral, tornaram-se mais demoradas. A passagem de dezenas de camiões pelo  "dilúvio", em que se transformou a zona do Hogiwa, representa, hoje, um verdadeiro teste, para os condutores.

Aqui, isso deve ser sublinhado, só mesmo motoristas experientes conseguem passar, pois o risco de se encalhar na água está sempre à espreita, como vimos.

Mário Graça José conduz uma carrinha em que transporta regularmente produtos agrícolas para os mercados de Luanda. Encontrámo-lo no Hogiwa, carregado com  2.500 toneladas de abacate e tomate.  Lamenta o estado da via por causa das chuvas em quase todo o eixo entre a vila da Gabela e o rio Longa, com  pouco mais de 150 quilómetros, hoje feitos em cerca de seis horas.

Mário José diz que, além da Hogiwa, a localidade conhecida por Zâmbia, também representa, hoje, um sério desafio para os camionistas. "Aí está mesmo muito mal", acrescenta, antes de seguir viagem para Luanda, depois de se livrar desse troço difícil para qualquer profissional do volante.

O jovem Gelson Manuel, 28 anos, viveu sempre em Hogiwa e tem, por isso, das inundações uma opinião relevante: "As lagoas já estavam todas cheias, as águas das chuvas provocaram essas inundações dos bairros, com a destruição de muitas habitações, sobretudo aquelas que foram construídas de adobe",  diz o pedreiro de profissão, que, como muita gente, procurou segurança nos montes circundantes dessa localidade.

 
Drama das inundações em Porto Amboim


A voz do Soba Grande

O cenário, por esses dias, no Hogiwa é de completa devastação de terrenos agrícolas e de residências de populares, que viviam há anos no bairro.  Os sistemas de socorro foram accionados minimizar o sofrimento das pessoas vítimas das piores inundações de que  há memória, segundo os mais velhos dessa zona.

O soba grande de Hogiwa, Moisés Bernardo Ventura,  referiu que a subida das águas no bairro apanhou de surpresa toda a gente, o que levou às pessoas a procurarem refúgio nas zonas mais elevadas.

"O Governo Provincial e a Administração Municipal de Porto Amboim decidiram que as pessoas deveriam subir para os montes, até que a situação melhorasse", adiantou o soberano, indicando que a população aguarda por mais chapas para erguer pequenos casebres, vulgo "bate-chapas", adiantou.

A resposta veio do Governo do Cuanza-Sul, que apoiou, num primeiro momento, mais de 90 famílias, com 400 chapas de zinco de seis metros, pregos barrotes, madeiras, tubos de ferro e roupa usada, segundo fonte da administração municipal de Porto Amboim.

Os novos assentamentos populacionais, com mais de 2.000 pessoas, representam um universo de 400 famílias, para as quais as autoridades trabalham no loteamento de um outro espaço numa zona mais alta, que permita a sua estruturação e forneça garantias de maior segurança.

O soba Moisés Ventura confirma: "O Governo orientou-nos a encontrar um lugar que permita a passagem das máquinas, que vão limpar e lotear, para instalar as pessoas com mais segurança".

E, mais preciso, afirma que já foram identificados dois pontos, nomeadamente um na área conhecida por "loja" (principal centro de concentração das pessoas que vêm da zona baixa do bairro Hogiwa) e outro no Kassanje, menos de dois quilómetros da EN 100.

"Só falta reunir-se com a comunidade e esclarecer aquilo que o Governo pretende, para melhor acomodação das pessoas e evitar problemas no futuro, com as inundações", sublinha o Soba Grande, indicando que diariamente chegam mais pessoas da parte baixa do bairro Hogiwa.

Imagens impressionantes de um "dilúvio”

De volta ao "inferno" em que se transformou a área de Hogiwa. As imagens de Arsénio Bravo não mentem. Mostram bem o grau de destruição das infra-estruturas e a inundação dos vastos campos agrícolas onde dezenas de populares ganhavam a vida, atirados, de repente, à condição de completa indigência, ao perderem quase tudo.

O retrato da travessia na zona mais crítica é impressionante, com viaturas pesadas e carrinhas carregadas de mercadorias, bem como autocarros de diversas operadoras de transportes a "enfrentarem" uma grande quantidade de água que por alí passa lentamente, algo que exige dos condutores muito "sangue frio" e perícia.

Por esses dias, cruzar duas viaturas nessa zona é completamente impensável. Dos dois lados, a água levou a camada de asfalto, provocando enorme folga, onde ao mínimo deslize, as viaturas podem encalhar. Um cenário verdadeiro dantesco, quase próximo de laivos cinematográficos.

Algumas viaturas ligeiras optam por desligar o motor, sendo, depois, empurrados por jovens voluntários até a outra margem, num serviço pelo qual cobram entre seis a oito mil kwanzas.

Um "frete" que rende alguns trocos, numa área em que  os níveis de desemprego são assustadores, com muitos a deambular de um lado para o outro pela pacata localidade.

Nos dois sentidos da estrada, são quase intermináveis as filas de viaturas, cada uma a aguardar pela vez da travessia do furacão em que se transformou a zona de Hogiwa. Um agente de trânsito, com quem falámos, dizia-nos, no entanto, que a situação já esteve pior, com filas de viaturas a atingirem quase 15 quilómetros.

À cautela, o "nosso" Jimmy ficou na sede de Hogiwa, valendo-nos a boleia de uma viatura de técnicos da Cruz Vermelha de Angola, no terreno em serviço de levantamento dos sinistrados das inundações, para a preparação da  assistência às pessoas. Na verdade, uma travessia particularmente penosa e desafiante, que  permitiu, no entanto, ver a verdadeira dimensão do fenómeno.

Nesta altura, como pudemos ver, na comunidade de Hogiwa, município de Porto Amboim, o levantamento provisório, feito pela CVA fixa em 118 famílias, totalizando 591 pessoas, das quais 274 homens, 317 mulheres, 89 crianças menores de cinco anos, bem como 14 grávidas. No dia em que estivemos em Hogiwa, já se havia registado pelo menos 63 famílias em condições de extrema carência.

Estes dados foram já partilhados com a sede dessa associação, auxiliar dos poderes públicos, com fins assistenciais e de carácter voluntário e sem fins lucrativos. "Estamos a trabalhar junto de pessoas de boa vontade, que nos possam ajudar na mobilização de recursos que permitam mitigar o sofrimento das pessoas dessa comunidade", disse-nos o presidente  da CVA na província do Cuanza Sul, Isaías Luciano.

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