Opinião

PhD em ciências tentadas ou as férias do Mestre das Idades

A segunda premissa do título da crónica que escolhemos para esta edição é da autoria do nosso quinto colega superdotado em ubiquidade, ele que apesar de não aparecer na foto, creiam-me, há de ler estas linhas mais cedo ou mais tarde, o incansável doutor ChatGPT.

30/07/2023  Última atualização 07H38

Com a conclusão do ano curricular do Mestrado em Comunicação, Marketing e Publicidade, ministrado na língua de Shakespeare pelo Campus da Católica, eleva-se para PhD em Ciências Tentadas o status que sua excelência eu já ostentava há uns anos e por mérito casual próprio.

Antes que comecem a dar uma de Tomé das escrituras, façamos um à parte. Foi apenas em 2012, mesmo a descrever a curva dos trinta e quatro ciclos na terra, que o indivíduo conseguiu fechar em Benguela a dívida da licenciatura em Linguística/Inglês, inevitavelmente contrariado, inclusive, face à ideia de festejar tal conquista. E mesmo assim custava achar meio de avançar nos estudos na área da sua vocação. Logo, não podia ser mais ardente a certeza de não mais parar o comboio. Agarrem-se os cursos mais próximos onde forem achados.   

A luz ao lado do túnel acende-se quatro anos depois, mas o entusiasmo do plano A, uma pós-graduação com acesso ao Mestrado em Ciências da Comunicação pelo qual torramos cinquenta dólares de inscrição, diluía-se na notícia do cancelamento da coisa, por falta de candidatos.

O plano B, dois anos volvidos ou pouco mais ou menos, uma pós-graduação com acesso ao Mestrado em Gestão Estratégica de Recursos Humanos morreria na praia, arranque condicionado pelas mesmas razões. A propina afrontava o soldo do funcionário público.

A terceira tentativa da mesma instituição de matriz portuguesa de formação à distância em modelo despachante de cabotagem, chamemos-lhe plano C, desta vez aglutinando finanças e RH (já mesmo para tramar o nosso sindicato de péssimos a contas), foi o cortejo de enterro do negócio, com a restruturação do ensino superior a descontinuar o take-away de aulas e canudos.

Não que em 2019, já em Luanda, não perseverasse num mestrado em Gestão Ambiental, no entanto desencorajado pela inconstância burocrática do estabelecimento de ensino e os sucessivos protestos dos veteranos, do tipo guerra avisada...

Foi assim que no uso que lhe confere o instituto da razão perpétua, tendo em conta por sobejo que ninguém fica prejudicado na sua aspiração só porque a geografia da rifa não nada em ofertas; e contando com anuência tácita do planeta Terra, Marte, Unesco, ONU, OPEP e afins, sua excelência eu tomou a liberdade de se auto-outorgar o título mais prestigiado de que se tem memória: Mestre (ultimamente PhDconvertido) em Ciências Tentadas.

E nem seria novidade para quem já tentou com êxito uma graduação em ciências da própria vida, nomeadamente sobrevivendo em fotografia frustrada, jornalismo abandonado, sociedade civil incubada, soldadura esquecida, construção civil de papel passado nunca iniciada, emigração tenra sonhada, carreira literária lamentada, pela aviação doméstica e tudo… Bem, feito o ligeiro preâmbulo, estamos em condições de seguir os procedimentos de aterragem na pista do ano curricular que atinge o seu limiar neste verão de 2023.

Tudo começou há dois anos com as pesquisas que elegeriam a Universidade Católica de Lisboa como a oferta mais em conta, em termos de curso internacional ministrado em inglês em Ciências da Comunicação, vertente de Relações Públicas, Marketing Estratégico e Publicidade.

Seguiu-se ao crivo documental a entrevista em videoconferência com a coordenadora do curso, com aquele receio que nos invade de a ligação da net nesse dia vir a fazer birra, passível de inviabilizar a aprovação logo na primeira tentativa. Conhecia de cor o prospecto, ou julgava.

O desembarque na capital lusa, o quinto e o mais ingente, dá-se a cinco de Setembro, cinco dias antes da cerimónia de arranque do ano. Daí em diante desenrola-se uma história digna de um filme de drama, com o mwangolê na idade dos seus pais a ser colega de jovens com metade da sua idade. Entre a licenciatura e o agora o hiato é de uma década, entrecortado por cursos intensivos e um de extensão universitária em Comunicação Institucional pela Agostinho Neto, a primeira fornada da sua história e que, ao que tudo indica, morrerá sem papel passado.

Há que recuperar o compasso, à parte a pressão auto-imposta de suar para sacar notas decentes, posto numa realidade onde o mestrado afinal é para putos com média etária de 22, nada pós-laboral como nas Áfricas. Enquanto os colegas conversam animadamente sobre as tendências actuais, os memes e músicas pop, amapiano que não leva piano afinal, a malha de discotecas e festas da vez, a ti já só resta gentilmente acenar com a cabeça, tentando acompanhar o ritmo.

A amizade com quatro colegas com os quais formamos o grupo de estudos é seguramente o ponto alto da jornada académica. Izna é especialista em design e marketing, o Adytia, engenheiro de computação e outro graduado em marketing. Vêm ambos da Índia. Sara, formada em psicologia, vem da Itália. As aventuras, risadas e desafios que enfrentamos juntos só podem ter criado laços duradouros. A diferença de idade foi para mim uma fonte de enriquecimento mútuo. São jovens com potencial enorme de singrar como marketeiros e conquistar mercados.

Quanto a isso, há que assumi-lo, faço parte de uma geração já despojada da ingenuidade necessária para transformar o entusiasmo académico em fé para mudar o mundo nessas lides de comunicação organizacional ou assessorias e afins. Desde logo, quiçá, pela vocação de jornalista, que como reza a lenda é o único profissional que se arrisca a cair em maus lençóis se puser a actuar na prática, literalmente, do jeito que os manuais ensinam.

De resto, há um dilema de fundo antropológico que transcende os contornos da ciência para especialistas em comunicação organizacional ou marketeiros, como os queiramos designar, trazendo a coisa para o nosso continente ou para culturas de sistema de valores semelhantes, lá onde a função de conselheiro estratégico é reservada ao mais velho ou ao superior hierárquico, em última análise o decisor e, portanto, sendo estreita a margem para o inverso.

Com a aceleração dos curricula de licenciatura ao abrigo do sistema de Bolonha, as universidades vêm-se obrigadas a privilegiar dinâmicas que puxem por preparar os estudantes para o mercado profissional, tudo girando em torno de trabalhos em grupos, defesas em turma e relatórios. Só não há bela sem senão. Ganha-se na socialização, perde-se no efeito colateral da responsabilização colectiva por parte do avaliador, quando em contexto internacional os estudantes detêm bagagem diferente e podem desalinhar na entrega e na busca de consensos. Nem sempre tratar como iguais elementos diferentes faz justiça.

Mas estes nove meses têm oferecido um amplo laboratório, não só em relação à rapidez com que as tecnologias se apoderam do mundo (a exemplo da inteligência artificial), mas também no jeito como a Europa se fortalece por meio de programas de bolsas e intercâmbio como o Erasmus, cimentando o sentimento de pertença no jovem europeu que circula livre de fronteiras e fixa residência no país que lhe aprouver, sem se submeter a nenhuma procissão migratória.

Dos amigos indianos retive uma lenda que diz muito sobre os interesses estratégicos nacionais. Conta-se que há bwé de anos, certo carteiro via-se aflito para localizar a morada do destinatário da última correspondência daquele dia, que por acaso era um engenheiro. Anda à procura do engenheiro? Não custa. O senhor vá directo, depois vire à esquerda, a seguir à direita, caminho recto meia hora, depois vire... e por aí vai. No entanto, passadas umas boas décadas, esse mesmo carteiro volta a consultar pelas ruas o endereço do engenheiro, ao que lhe respondem: o senhor pode entregar o envelope em qualquer casa, isso anda tudo cheio de engenheiros.

A primeira vez que pisei o solo português foi em 2010 em trânsito para os Estados Unidos da América, país que visitei a convite do Departamento de Estado, servia eu o sector das ONG. Nessa altura voltei de lá com alguma inveja positiva dos nossos irmãos da RDC ao notar o quão presentes eles estavam no mundo académico como docentes. É o que eu gostaria de ver mais dos angolanos, embora sirva de algum consolo a visibilidade que o jornalista Israel Campos, estudante de mestrado, vai tendo, uma espécie de Akwá. No outro dia um professor português, ao me apresentar como angolano, perguntava com entusiasmo se eu conhecia o jovem.

E assim chega ao fim a primeira temporada da Carta de Lisboa, coluna de crónicas que lhe fez companhia aos domingos durante nove edições a fio. As férias chamam. Grato pela sua leitura.

 

20 de Julho 2023


Gociante Patissa


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