Opinião

Palavras armadilhadas

Luciano Rocha

Jornalista

A escrita é traiçoeira, como as ratoeiras destinadas, como o nome indica, a apanhar ratos, todos eles gulosos, independentemente do tamanho, mas, igualmente, outros animais assaltantes de capoeiras e currais, similarmente utilizadas como armas caça.

01/02/2024  Última atualização 06H00
A escrita, usada desde tempos remotos, para ligar distâncias, alertando sobre perigos camuflados, chegadas atrasadas ou antecipadas, enfim, um ror de informações que somente os destinatários entendiam. Inicialmente cravada em rochas e troncos de árvore. Posteriormente com recurso a aves capazes de percorrerem, sem enganos, extensões de tamanhos diversos. Já naquelas alturas havia percalços motivados por remetentes e receptores, não raro com consequências opostas às pretendidas por quem as recebia e mandava, mas, outrossim, como "isco”.

Os cenários de guerras são exemplos deste último caso. Quantas vezes não foram deixados "avisos” em árvores, capins, pedras, sobre falsos alvos de ataques, desviando atenções dos opositores, para os surpreender noutro sítio. Um erro na escrita pode, contudo, deitar tudo a perder, ter efeito contrário.

A importância da escrita é antiga, mas, como facilmente se conclui, tem vindo a ser desvalorizada, conspurcada, por quem não domina minimamente os conhecimentos da língua em que se pretende expressar.

A linguagem oral, pelas mesmas causas, é, também ela, profanada por erros ortográficos e de pontuação, embora em parte escondidos, tapados a ouvidos mais distraídos por ignorâncias de tantas origens, mas, igualmente, abafados pelo estrondo de palmas e vivas bajuladores. Mesmo assim,  ocasionam feridas de morte. Os "enganos”, contudo, tarde ou cedo, acabam apanhados na ratoeira da verdade. Desengane-se quem julgar o contrário.

Erros não há quem os não cometa, reconhecê-los ou não define cada um. Tê-los e persistir neles apenas "porque  sim”, para fazer prevalecer "a razão”, engendrando as mais infindas justificações é grave, revela quem se julga um ser superior, quando é exactamente o contrário.

A persistência dos erros nas comunicações escrita e oral ocorre por repetições constantes, até por pessoas que, pela formação académica, posições sociais, origens, deviam ser mais comedidas no momento de se expressarem.

Os exemplos dos tropeções nas línguas - de todo o Mundo -  demonstram à sociedade que a proliferação da ignorância não se circunscreve  a nações tidas como menos desenvolvidas. Basta abrir a televisão, ligar o rádio, passar os olhos por jornais para ser lembrado que a ignorância, principalmente a enfatuada, a mais perigosa, atingiu o auge universal. É a libertinagem da palavra escrita e falada protagonizada, cada vez mais, por quem, em condições normais, devia evitar que tal sucedesse e faz o contrário.

A Internet, que tem - ainda vai tendo -, entre outras finalidades, facilitar a comunicação e desfazer dúvidas, caminha, a passos gigantes, exactamente em sentido contrário, para a proliferação da asneira perante o beneplácito daqueles que têm a obrigação de a defender e valorizar a essência pela qual foi criada, espelhada na aprendizagem e saber dos restantes sectores das sociedades.

A modernidade é sempre bem-vinda por abrir caminhos novos, neste caso da comunicação, sem os quais o Mundo jamais, passe o exagero, ainda vivia na Idade da Pedra, mas dispensa "modas” bacocas tão ao gosto dos militantes da ignorância, designadamente a enfatuada, quase sempre palavrosa.

O uso de chavões e redundâncias caracterizam os palavrosos. Porquê escrever e dizer "há anos atrás”? Podiam ser à frente? E "erário público”? Há privado? E "recuou para trás”? Pode ser para a frente? E "a comida que comi”? E "jantar (ou almoço) que jantei”?

Os neologismos, ao contrário dos pleonasmos, enriquecem as línguas, tanto escritas, como faladas, sendo, por isso, bem-vindas. Corrigi-las, no nosso caso, "aportuguesando-as”, é quase sempre sinal de aculturação, ignorância, neo-colonialismo, subjugação.  

Um exemplo de um aportuguesamento dispensado, já por mais de uma vez realçado neste jornal, designadamente neste espaço, é o do vocábulo calema, que, por puro desconhecimento, é substituído por calemba.

Óscar Ribas, dos maiores estudiosos de nossos costumes e do quimbundo, uma das línguas nacionais, numa das suas obras, explicou que calemba é a forma correcta  de "ondulação fortemente agitada, quer do mar, quer do rio. Marulhada”. E que calema é deturpação portuguesa.

Também esclareceu que calema é quem no recinto da circuncisão vela pelos circuncisos de pouca idade e acompanha-os ao rio.

A diferença entre o correcto e o deturpado pelo desconhecimento estrangeiro é assim explicada pelo  saudoso mestre Óscar Ribas.

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Opinião