Opinião

Os russos não vêm aí!

João Melo*

Jornalista e Escritor

A última novidade da propaganda ocidental é que a Rússia, se derrotar a Ucrânia, vai invadir a Europa. Segundo as pesquisas, até a maioria dos habitantes desse pequeno jardim à beira mar plantado – Portugal – parece acreditar nisso. Não posso esquecer-me, a propósito, dos camponeses portugueses que, nas primeiras semanas após o 25 de abril de 1974, subiram as serras da Beira Alta à procura de cubanos, para impedi-los de invadir o país. Fantasia, porém, tem hora. A História diz-nos que essa hipótese é altamente improvável.

06/04/2024  Última atualização 07H10
Historicamente, dizem os especialistas, a Rússia, mesmo nos seus períodos "imperiais” mais agudos, sempre se inclinou sobretudo para a Ásia e não para a Europa. Só em duas ocasiões as forças russas e depois soviéticas avançaram para oeste dos rios Oder e Vístula, na sequência das invasões dos exércitos de Napoleão e Hitler, respetivamente. De igual modo, também só por duas vezes a Rússia agiu militarmente para reverter os regimes instalados em dois países contíguos - Geórgia e Ucrânia -, ao contrário das potências ocidentais, encabeçadas pelos EUA, que fizeram isso numa quantidade enorme de outros países, a maioria deles longe das suas fronteiras.

A História demonstra que a Rússia foi mais vezes agredida do que ela própria agrediu outros países. Sem mencionar episódios anteriores, a referida nação foi invadida no século XVII pela Polónia, no século XVIII pelos suecos e no século XIX por Napoleão; nesse último século, a Inglaterra e a França combateram a Rússia na guerra da Crimeia. Em nenhum desses momentos a Rússia realizou qualquer retaliação.

No século XX, a Rússia foi invadida pelos japoneses em dois momentos diferentes. Durante a guerra civil russa (1917-1920), o país foi invadido por uma coligação internacional, na qual participou um contingente americano de 17 mil homens. Quando a primeira guerra mundial acabou, franceses e ingleses queriam derrubar o regime recém-instalado em Moscovo, a fim de exercer a sua influência comercial e política no país. Trata-se da mesma obsessão manifestada no presente século pela diplomata americana Victoria Nuland: - "Queremos um parceiro ocidentalizado e europeu”.

Não tenho, pois, quaisquer dúvidas: a denúncia de que a Rússia quer invadir e ocupar toda a Europa esconde pelo menos duas coisas: primeiro, a tentativa de reconhecer o erro de cálculo do Ocidente quanto ao desfecho da guerra da Ucrânia; segundo, a intenção dos setores ocidentais mais belicistas de levarem os cidadãos a aceitar um prolongamento indefinido desse conflito, com todas as suas consequências, não apenas militares, mas também sociais, económicas e políticas (uma delas o crescimento do autoritarismo, único regime que pode forçar os cidadãos a aceitarem pacificamente uma guerra sem fim aparente).

De qualquer modo, poderão os céticos perguntar: - "E se tais razões históricas estiverem erradas? Tem a Rússia capacidade militar para invadir e ocupar a Europa?”.

A resposta, diz o major-general português Carlos Branco, é "não”. Para ele, a ideia de que a Rússia é capaz de desafiar militarmente uma comunidade com mais de 400 milhões de habitantes e que lhe é económica e tecnologicamente superior "é ridícula”. Em artigo publicado no passado dia 22 de março no Jornal Económico (Lisboa), o oficial português lembra especificamente que a Rússia é vulnerável em matéria de ISR, sigla inglesa para "Segurança, Vigilância e Reconhecimento”, dispondo apenas de 15 AWACS para cobrir o seu extenso território, o que significa que o país não tem recursos para manter uma guerra com a NATO para além do território ucraniano.

Por tudo isso, partilho do apelo do Papa Francisco para pôr fim imediato à guerra na Ucrânia. Segundo ele, lutar pela paz, no atual contexto mundial, implica mais coragem do que fazer a guerra. Em que pesem os delírios belicistas do presidente francês Emmanuel Macron, o prolongamento dessa guerra não trará alterações estratégicas significativas, a não ser o prolongamento da destruição da sociedade ucraniana. Uma eventual cruzada da NATO contra a Rússia não contará, por certo, com a participação de soldados americanos e, mais importante, também dificilmente levará a uma derrota russa. É bom não esquecer outra lição da História: a importância do nacionalismo russo.

A alternativa será a 3ª Guerra Mundial. Depois dela, não sobrará ninguém para contar como foi. 

 *Jornalista e escritor

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