Opinião

Medicamentos da morte

Luciano Rocha

Jornalista

A notícia é recente, o conteúdo antigo, nada garante, todavia, não voltar a ser tema na comunicação social, porém, cada vez com menos relevo, por falta de novidade para leitores, radiouvintes e telespectadores.

07/03/2024  Última atualização 06H00
O leitor, ao ler o primeiro parágrafo, pode ter esboçado riso trocista ou exasperado, falando para quem o ouve ou com ele próprio face à quantidade de ocorrências, registadas entre nós, mas, igualmente, lá fora, no Mundo inteiro, em todos os casos repetidas até à exaustão. Exemplos não faltam, pelo contrário, abundam e as guerras são terreno fértil para desesperar quem escuta, lê, ouve. Às vezes, as três coisas, embora, realce-se, com "relatos” diferentes das mesmas situações, a destaparem posições, incluindo de ideologias não declaradas, incluindo políticas, avivando o adágio "gato escondido com rabo de fora”.

Guerras, desde sempre, "dão pano para mangas” sobre origens, inícios, desenvolvimentos e epílogos  que as preenchem, tal como o número incontável e crescente dos que mais lucram com elas: tudo quanto reflicta dramas, mortes, atrocidades. Preferencialmente em directo ou em primeira mão, porque teoricamente apelativos, excitantes.

Provocadores de guerras e dos chamados "desastres naturais”, cada vez mais os mesmos - repetidamente em simultâneo - não são , contudo, os únicos a encher os bolsos à custa de desgraças alheias; aumento universal da quantidade de órfãos, viuvezes, estropiados, famintos. 

Os "vendedores de banha da cobra”, igualmente, chamados "farmacêuticos” de rua, também enchem as algibeiras, a par de quem os recomenda, lhes fornece o produto do crime e ensina a usá-los em desfavor de doentes, os únicos seres humanos autenticamente genuínos, na verdadeira acepção da palavra, nesta corrente transbordante de malfeitores.

Os compradores forçados, por circunstâncias tantas, são os únicos sem culpas naquela fiada de oportunistas.  Integram-na impulsionados apenas pela aflição de verem filhos, pais, mães, quaisquer  outros entes queridos, contorcerem-se de dores, suplicando à morte que os leve, pois antes ela "do que tal sorte”.

Os angolanos já sofreram os efeitos das guerras que jamais quiseram, pelo contrário,  foram forçados a enfrentá-las. Muitos ainda padecem com mazelas contraídas naqueles tempos. Que existiram, apesar de comportamentos de alguns, por vezes demasiados, fazerem parecer que não.  A generalidade, porém, até por aquela conjuntura, dispensa novos carniceiros.

O número de medicamentos - fora de prazo, mas, outrossim, dentro dele - imposto aos angolanos, neste 24º ano do século XXI, é  exorbitante  por faltarem, onde jamais deviam esgotar, nas unidades hospitalares, constituem instrumentos de crimes de lesa-pátria, também Ela gravemente ferida a golpes de cobardia, egoísmos, nepotismos e quejandos .

O recente anúncio - feito pelo responsável nacional do Serviço de Investigação Criminal - da apreensão, no Mercado do Kikolo, de mais de três toneladas de medicamentos naquelas condições, atesta o regabofe ainda reinante em certas unidades de saúde pública.

Os medicamentos, tanto com prazos expirados, como os outros, não conseguem, por eles próprios, mudar de lugar. "Branco é galinha os põe”. Foram "mãos ligeiras” que lhes trocaram o pouso, com a colaboração de "olhos vendados”.

A responsabilidade da folia, que salpica, por arrastamento, todo o sector  público da saúde angolana - com sobejas provas, em  múltiplas circunstâncias, de competência, abnegação  e profissionalismo - cabe, igualmente, aos que têm o dever profissional, jamais por generosidade, de fiscalizar e que para isso são pagos.

Três trapaceiros foram recentemente detidos, num mercado de Cacuaco, por traficarem, atrevidamente às claras - em bancas idênticas às de decentes comerciantes -, medicamentos, adulterados e dentro do prazo, ausentes em unidades públicas de saúde! Quem lhes facultou os palcos de actuação? Outros vendedores, "acima de quaisquer suspeitas”? "(Ir)responsáveis da praça? Quantos, uns e outros, receberam pela burla?

Três toneladas, sejam do que forem, é, convenhamos, quantidade excessiva para outros tantos vendedores. Mais perguntas, até ao momento, sem respostas: há quanto tempo actuavam na mesma superfície? Onde guardavam os "medicamentos” subtraídos à má fila? Ninguém estranhou a marosca? Os restantes facilitadores do crime já estão detidos? E interrogados? As caras do trio "farmacêutico” foram divulgadas e para isso convidados jornalistas. E as dos restantes intervenientes no esquema? Espera-se, em nome da transparência, que as balanças, que simbolizam a Justiça, tenham pesos e medidas iguais, pois ladrão é tanto o que rouba como quem o avisa da presença da vítima.

Kikolo é único local, onde crime é negócio?  E nos outros municípios ? E em avenidas, ruas, jardins, becos, incluindo os da capital do país, designadamente nas proximidades de estabelecimentos de ensino, farmácias, esquadras policiais, edifícios governamentais, até nas barbas de agentes de segurança?

As detenções no Kikolo foram bem-vindas, pecando apenas por tardias e escassas. Por tais razões limitam-se a serem prenúncio do que pode vir a ser uma operação de mais parcelas, com todos os números, cuja "prova dos nove” dê o resultado real da soma. 

Os responsáveis pela luta contra malfeitores sabem que somente podem dar por terminada a operação, quando os outros elementos da "quadrilha dos medicamentos” fizerem companhia aos três comparsas já atrás das grades. Quem?  Os que lhes puseram nas mãos, com prazos expirados, mas, igualmente, válidos, produtos de venda interdita nas unidades públicas de saúde.

As detenções anunciadas, na semana passada,  correm o risco de serem tidas apenas como "montra” para ingénuos verem, mas servem para esconder retaguarda de imundo armazém. Também podem equiparar-se a tiros de armas de pressão de ar que, no esplendor do dia, fazem cantar galos no poleiro e lobo uivar promessa de regressar.

Aquela operação policial só pode ser dada por verdadeiramente concluída, quando todos elementos da quadrilha, sem excepções, estiverem atrás das grades. Cantar vitória agora é  tentar "esconder o sol com a peneira”, batota, noticiário repetido, igualzinho a muitos outros, causadores de tantos risos trocistas ou exasperados consoante o estado de espírito de cada qual.

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