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Genocídio no Rwanda: Como foi o massacre de 100 dias que resultou em 800 mil mortos

No Rwanda, a divisão dos cidadãos por etnias é uma herança do período colonial. Quando os belgas colonizaram o país, no fim do século XIX, classificaram a população de acordo com o grupo a que pertenciam, criando carteiras de identidade que indicavam quem eram os Hutu e quem eram os Tutsi.

09/04/2024  Última atualização 12H30
O Presidente do Rwanda, Paul Kagame, e a esposa, Jeannette Kagame, acenderam uma chama no memorial às vítimas © Fotografia por: DR

A partir deste documento, criou-se, também, uma divisão em que os Tutsi foram apontados como um grupo étnico dominante e superior que tinha os melhores empregos, relegando a maioria Hutu a ser um grupo subordinado e subjugado.

As divisões do Governo colonial exacerbaram as tensões e o ressentimento dentro da sociedade rwandesa.

As diferenças étnicas chegaram ao ápice, durante a independência do país, quando em 1961, a maioria Hutu assumiu o controlo do Governo, abolindo a monarquia Tutsi e declarou a República do Rwanda.

Dezenas de Tutsis fugiram para países vizinhos, incluindo o Uganda, onde os exilados formaram um grupo rebelde, a Frente Patriótica Rwandesa (RPF, na sigla em Inglês).

Os principais objectivos eram derrubar o Governo do Rwanda e o fim do exílio dos Tutsi.

Governo de Transição

Em 1990, os combatentes da RPF invadiram o país, desencadeando uma guerra civil com os Hutu, até à assinatura de um acordo de paz, em 1993.

Com o acordo, a guerra civil chegou ao fim e foi criado um Governo de Transição, composto por Hutu e Tutsis, liderado por Juvenal Habyarimana, da etnia Hutu.

Mas, a 6 de Abril de 1994, um avião que transportava o Presidente Habyarimana e o homólogo do Burundi, Cyprien Ntaryamira, que também era Hutu, foi abatido por dois mísseis, lançados do solo, matando todos a bordo.

A autoria do ataque continua incerta. Os extremistas Hutu culparam a RPF. E a RPF disse que o ataque foi realizado por extremistas Hutu que eram contra as negociações com a RPF e que o avião foi abatido como desculpa para realizar o genocídio.

Imediatamente, os extremistas Hutu deram início ao massacre contra os Tutsi.

Como o genocídio foi realizado?

Tudo foi meticulosamente organizado. Listas de opositores do Governo foram redigidas e entregues às milícias Hutu, que saíram às ruas para matar os alvos Tutsi e as suas famílias.

Hutu moderados que se opunham ao Governo também foram assassinados.

Nos três meses seguintes, vizinhos mataram outros vizinhos e até maridos mataram as esposas Tutsi, dizendo que caso se recusassem, seriam mortos.

Naquela época, os Bilhetes de Identidade no Rwanda incluíam o grupo étnico dos moradores. As milícias montaram barreiras nas estradas, onde os Tutsi eram parados e assassinados, muitas vezes, a facões que a maioria dos rwandeses costumava ter em casa.

Milhares de mulheres Tutsi foram sequestradas e abusadas sexualmente.

Por que foi tão cruel e violento?

O Rwanda sempre foi uma sociedade rigidamente controlada, organizada como uma pirâmide do distrito até ao topo do Governo.

O então partido no poder, o MRND, tinha uma ala jovem chamada Interahamwe, que se transformou em diversas milícias para realizar o massacre dos Tutsi. Armas e listas de alvos foram entregues a grupos locais, que sabiam exactamente onde encontrar as vítimas.

Os extremistas Hutu criaram uma estação de rádio, a RTML (Rádio e Televisão Livre de Mil Colinas) e jornais que faziam circular propaganda e discursos de ódio contra os Tutsi, exortando à população a "eliminar as baratas", o que significava matar os Tutsi. Os nomes de pessoas proeminentes que seriam assassinadas eram lidos na rádio. Até padres e freiras foram posteriormente condenados por matar pessoas, incluindo algumas que procuraram refúgio em igrejas.

Ao final do massacre de 100 dias, cerca de 800 mil Tutsi e Hutu moderados tinham sido assassinados.

A comunidade internacional tentou impedir o genocídio?

A Organização das Nações Unidas (ONU) e a Bélgica tinham forças no Rwanda, mas a missão da ONU não recebeu ordens para impedir a matança.

Um ano antes, vários soldados americanos tinham sido mortos, numa batalha na Somália, e arrastados pelas ruas da capital Mogadíscio, por somalis furiosos.

O acontecimento, que foi transmitido pela televisão americana e que gerou indignação nacional, fez com que Washington decidisse não se envolver em outro conflito africano, por isso, os americanos não intervieram no Rwanda.

Já os belgas e as forças de paz da ONU se retiraram do Rwanda depois de dez soldados belgas serem mortos no massacre.

Os franceses, aliados do Governo Hutu, enviaram uma força especial para retirar os seus cidadãos e depois estabeleceram uma zona supostamente segura, mas foram acusados ​​de não fazer o suficiente para impedir a matança na mesma zona.

Paul Kagame, o actual Presidente do Rwanda, acusou a França de apoiar os autores dos massacres, uma acusação que Paris nega.

Como terminou?

A Frente Patriótica do Rwanda, que era bem organizada e apoiada pelo Exército do Uganda, foi conquistando aos poucos mais território, até 4 de Julho de 1994, quando as suas forças marcharam em direção à capital, Kigali.

Cerca de dois milhões de Hutu, tanto civis como alguns envolvidos no genocídio, fugiram pela fronteira para a República Democrática do Congo (então Zaire), temendo retaliação. Outros foram para a Tanzânia e o Burundi.

Grupos de direitos humanos dizem que os combatentes da RPF mataram milhares de civis Hutu quando tomaram o poder e continuaram a matar quando entraram na RDC para perseguir membros das milícias Interahamwe. A RPF nega as acusações.

Qual foi o impacto nos países vizinhos?

Na RDC, onde quase um milhão de rwandeses se refugiaram, eclodiu uma das piores epidemias de cólera que o país já tinha visto.

A ONU estima que cerca de 12 mil pessoas morreram devido à doença e grupos de ajuda humanitária foram acusados ​​de deixar grande parte da sua estrutura de assistência cair nas mãos das milícias Hutu.

A RPF, que já estava no poder no Rwanda, acolheu grupos armados que lutavam tanto contra as milícias Hutu, como contra o Exército congolês, que estava alinhado com os Hutu.

Os grupos rebeldes apoiados pelo Rwanda acabaram por marchar até à capital da República Democrática do Congo, Kinshasa, e derrubaram o Governo de Mobutu Sese Seko, colocando Laurent Kabila no poder.

Mas, a relutância do novo Presidente em confrontar as milícias Hutu desencadeou uma nova guerra, que envolveu seis países e levou à criação de uma série de grupos armados que continuam a lutar contra as autoridades da RDC, sobretudo na região Leste.

Dados estimam que 5 milhões de pessoas morreram em consequência do referido conflito, que durou até 2003 e há, ainda, alguns grupos armados activos, até hoje, em áreas próximas da fronteira com o Rwanda.

Alguém foi julgado?

O Tribunal Penal Internacional foi criado em 2002, muito tempo depois do genocídio no Rwanda, portanto, não foi capaz de julgar os responsáveis.

Mas, o Conselho de Segurança das Nações Unidas criou o Tribunal Penal Internacional para o Rwanda, na cidade de Arusha, na Tanzânia, para julgar os líderes do massacre.

Ao todo, 93 pessoas foram acusadas e, após julgamentos longos e onerosos, dezenas de altos funcionários do antigo regime rwandês foram condenados por genocídio, todos eles Hutu.

No Rwanda, foram criados tribunais comunitários, conhecidos como "gacaca”, para acelerar o processo de centenas de milhares de suspeitos de genocídio que aguardavam julgamento.

Cerca de 10 mil pessoas morreram na prisão antes de serem levadas à Justiça.

Durante uma década, até 2012, 12 mil tribunais "gacaca” reuniram-se uma vez por semana, em vilarejos de todo o país, muitas vezes ao ar livre, em mercados ou debaixo de uma árvore, tendo julgado mais de 1,2 milhão de casos.

O objectivo era alcançar a verdade, a justiça e a reconciliação entre os rwandeses, já que "gacaca" significa sentar-se e discutir um assunto.

Como está o Rwanda hoje?

O Presidente Paul Kagame foi elogiado por transformar o pequeno país devastado por meio de políticas que incentivaram um rápido crescimento económico.

Ele também tentou transformar o Rwanda num centro tecnológico.

Mas, os críticos dizem que o Presidente não tolera dissidência e vários opositores morreram de forma inexplicável, tanto no país como no exterior.

O genocídio continua a ser uma questão bastante delicada, sendo ilegal falar sobre etnicidade.

O Governo argumenta que o objectivo é evitar o discurso de ódio e mais derramamento de sangue, mas alguns dizem que a medida impede uma reconciliação de verdade.

BBC News Mundo

Presidente do Rwanda acusa comunidade internacional de abandono

A comunidade internacional "abandonou-nos a todos" durante o massacre dos Tutsi, afirmou, domingo, o Presidente Paul Kagame, no arranque das cerimónias evocativas dos 30 anos do genocídio no Rwanda.

As cerimónias oficiais tiveram início domingo, dia em que se assinalam as primeiras mortes naquele que se tornaria o último genocídio do século XX, no qual morreram cerca de 800 mil pessoas, sobretudo da minoria étnica Tutsi, mas também Hutu moderados.

Paul Kagame recordou criticamente a inação da comunidade internacional na altura. "Foi a comunidade internacional que nos abandonou a todos, seja por desprezo ou por cobardia", disse o Presidente, no discurso proferido perante milhares de pessoas na BK Arena, uma sala multiusos ultramoderna na capital Kigali.

"Ninguém, ninguém, nem sequer a União Africana (UA) pode desculpar-se da sua inação perante a crónica de um genocídio anunciado. Tenhamos a coragem de o reconhecer e de o assumir", disse, por seu lado, o presidente da comissão da UA, Moussa Faki Mahamat.

A composição étnica do Rwanda mantém-se praticamente inalterada desde 1994, com uma maioria Hutu. Os Tutsis representam 14% e os Twa apenas 1% dos 14 milhões de habitantes.

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