Opinião

Declínio do soft power americano e ascensão chinesa

Faustino Henrique

Jornalista

A forma como os grandes conflitos são resolvidos, como são geridas as grandes tensões ou como determinados países, cujo hard e o soft power acabam por ter neles uma palavra dizer, acaba, também, indicar o poder crescente, estacionário ou decadente que certas potências têm no cenário mundial.

15/05/2024  Última atualização 08H34

Quando o mundo olha para a guerra na Ucrânia, o conflito na Faixa de Gaza, a refrega no Sudão, a instabilidade no Leste da República Democrática do Congo (RDC), em Moçambique, a tensão no Médio Oriente em geral, há sempre uma tendência natural para se encararem os países, grupo de Estados, organizações regionais ou internacionais com capacidade de intervenção determinante.

Embora a hegemonia americana seja ainda incontestável, em termos económicos, militares e sobretudo do ponto de vista do apelativo soft power do país do Tio Sam, não há dúvidas de que em pequenos detalhes começa a espelhar-se um certo declínio no que à influência, capacidade e determinação para resolver ou ajudar a resolver certas crises diz respeito.

Sendo parte quase que directa do conflito na Ucrânia e na Faixa de Gaza, na medida em que abertamente fornece armas a um dos lados dos referidos conflitos, os Estados Unidos perdem qualquer papel, eventualmente até mesmo credibilidade, para influenciar na resolução pacífica dos dois problemas. Mesmo quando olhamos para o contencioso militar entre as duas Coreias, tecnicamente em guerra desde 1953, quando tinha terminado a histórica Guerra da Coreia, setenta anos depois dificilmente se pode contar com os Estados Unidos para uma eventual mediação.

O desastre do que tem sido a política externa americana em determinadas zonas do planeta, interferências em conflitos onde acaba por se tornar parte interessada, entre outros passos erráticos, de sucessivas administrações

Começa a emergir, ainda que timidamente, a projecção do soft power chinês para ajudar a resolver problemas geopolíticos, corroborados pela forma como os Estados Unidos interpretam o papel que o gigante do Extremo Oriente pode ter na guerra da Ucrânia. Repetidas vezes, os Estados Unidos encaram a China como país que pode ter uma influência significativa junto de países com os quais anda em rota de colisão ou, nalguns casos não tenha poder de influência, tais como a Rússia, Irão, Síria, Venezuela, Cuba, etc.

Até em África, a forma como os americanos procuram recuperar o tempo perdido com a Administração Trump, que permitiu aos seus principais rivais, China e Rússia, ocupar o vazio que se agudiza hoje com o movimento anti-Ocidente que se regista sobretudo em países francófonos.

Há dias, Antony Blinken foi à China, onde manteve encontro com o Presidente Xi Jinping e o seu homólogo, Wang Yi, sem qualquer sucesso, para dissuadir a China de repensar o apoio que presta à Rússia, sobretudo com o fornecimento de material de uso duplo, civil e militar, além de reafirmar a visão de que a China pode ter a chave do conflito por via do seu plano de paz.

A China, encorajada por muitos países, está a jogar um papel até então impensável e com sucessos que representam uma amostra do que pode fazer, atendendo ao seu papel equidistante dos conflitos ou tensões que tende a mediar.

Em Março de 2023, o mundo foi surpreendido pela forma como a China conseguiu levar a Arábia Saudita e o Irão a se reconciliarem, depois do corte das relações diplomáticas, um passo gigantesco que serviu para desanuviar o ambiente regional.

Até os média na América abordaram a questão do ponto de vista do declínio que representava o papel dos Estados Unidos no Médio Oriente e a ascensão da China como um peace broker (mediador para paz) honesto e credível.

A China pode preencher o vazio que tende a existir com o aparente declínio dos Estados Unidos no que à mediação de conflitos diz respeito, sobretudo porque a sua equidistância, a neutralidade e obviamente a sua ascensão à potência global começam a se tornar uma realidade inegável. Num outro passo interessante, mais complexo e quase impossível, que a China está a dar neste momento, é tentativa de reconciliar grupos políticos e armados palestinianos. Se for bem-sucedida a levar o Hamas e o Fatah, de Mahmoud Abbas, à reconciliação, outros grupos, tais como a Jihad Islâmica, Frente Popular para a Libertação da Palestina, Brigadas de Al-Nasir Salah al-Deen, entre outros, vão seguir a mesma passada.

É verdade que estamos ainda longe de ver o poder político e diplomático dos Estados Unidos, traduzido na capacidade que sempre demonstrou de moldar os grandes conflitos e diferendos internacionais em função da chamada "pax americana”, de ruir por completo e dar lugar a um novo player.  Mas não há dúvidas de que o mundo começa a assistir a uma realidade nunca antes vista, baseada no facto de um actor mundial que parece ascender, em termos económicos, tecnológicos, político-diplomáticos e militares na mesma proporção em que, também, parece declinar o poder americano. É óbvio que os americanos estão preocupados com o actual contexto de desacreditação em algumas regiões do mundo, com a crescente incapacidade para mediar conflito e o desafio que enfrenta com os seus principais rivais, ansiosos por uma Nova Ordem Mundial.

Trata-se de uma realidade com a qual estão habituados e basta recordar o descalabro e legado da Administração Bush, de 2001 a 2009, cuja imagem e credibilidade, pela forma como geriu o "11 de Setembro”, com as invasões ao Iraque e Afeganistão, acabaram reabilitadas pela Administração Obama. Resta saber se o presente quadro de declínio na influência americana para com os grandes dossiers mundiais, na proporção directa em que cresce o ainda desconhecido soft power chinês, vai ser algo reversível pela resiliência a que América habituou o mundo ou se estaremos em presença de uma irreversibilidade de factos que moldarão o planeta nos próximos tempos.


* Jornalista

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