Opinião

Crises internas e os desafios eleitorais do ANC

Ismael Mateus

Jornalista

Os secretários-gerais dos antigos movimentos de libertação nacional da África Australnomeadamente, Paulo Pombolo (MPLA), Sophia Shaningwa (SWAPO), Roque Samuel (Frelimo), Obert Mpofu (ZANU-PF), Emmanuel Nchimbi (Chama Cha Mapinduzi), Fikile Mbalula (ANC) e Kavis Kario (BDP) discutiram, recentemente, em Victoria Falls, Zimbabwe, a conjugação de esforços para a manutenção da estabilidade política, económica e social dos seus países.

01/04/2024  Última atualização 07H40

Criado em 1912, o ANC e a África do Sul são, hoje, um caso de estudo que fornece um manancial de informações e elementos de análise, que podem ajudar os restantes antigos movimentos, em particular o MPLA, a não cometer os mesmos erros.

A falta de democracia interna no Congresso Nacional Africano (ANC) representa, hoje, uma ameaça objectiva à consolidação da democracia sul-africana. Nenhum outro partido na África do Sul consegue assegurar a continuidade do espírito de "nação arco-íris” , em defesa da diversidade étnica e cultural que, apesar de tudo, existe. É também o ANC que tem colocado um travão à xenofobia e a uma situação de corrupção endémica. Perdendo o poder político, a África do Sul deixará de ser uma referência de estabilidade e certamente conhecerá um processo de democracia muito marcado por convulsões e bloqueios.

Apesar de realizar, regularmemte, eleições internas e de renovação de mandatos, o ANC continua a manter um estilo de liderança demasiado centralizado, onde o presidente do partido e Comité Executivo Nacional (NEC) dominam a tomada de decisões, excluindo os membros e as estruturas partidárias  intermédias e de base. Muitas dessas decisões da cúpula do partido mostram-se desalinhadas com a vontade das bases, que buscam e pedem soluções populistas e radicais contra o desemprego, o atraso económico e a presença de imigrantes. Muitos dos activistas e mobilizadores de massas do ANC tornaram-se independentes ou membros de partidos na oposição, impondo nas últimas autárquicas uma derrota em zonas tradicionais do seu eleitorado.

O Comité Nacional Executivo do ANC tem vindo a impor a necessidade de "disciplina partidária absoluta” e muita  intolerância com os críticos, o que acaba, por um lado, por sufocar o debate e a democracia internas e, por outro, por enfraquecer a capacidade do partido (tanto no Parlamento como nas bases) de supervisionar o Executivo e influenciar políticas públicas no sentido de atender  às expectativas e  às necessidades dos eleitores.

É um processo que necessita de ser devidamente estudado pelo MPLA, que passa por processo muito parecido. Ao mesmo tempo que crescem as tendências internas, é preciso adequar o processo de democracia interna a estas novas sensibilidades que, não alinhando completamente na visão do líder, também querem ter a oportunidade de participar nos grandes desafios que se avizinham, nomeadamente a implementação da nova divisão político-administrativa, a realização das eleições autárquicas e a renovação de mandatos de nível municipal, provincial e nacional, incluindo a liderança do partido.

As diferenças políticas dentro do ANC não são de hoje, mas os problemas começaram a agudizar-se com um forte conflito entre tendências internas, entre os críticos do Governo (que contestatam as opções económicas e os altos níveis de desemprego) e, por outro lado, os críticos contra a corrupção e os sinais  exteriores de riqueza de muitos dirigentes.

E assim, em 2008, os críticos do Governo, liderados por Jacob Zuma, ganharam as eleições internas e forçaram a demissão do Presidente Thabo Mbeki. O então ministro da Defesa, Mosiuoa Lekota,  e o antigo governador de Gauteng, aliados de Mbeki, decidiram então criar o partido Congress of the People (COPE).

Julius Malema era então um fervoroso líder da juventude e aliado da ala vencedora. No entanto, com Zuma no poder a situação económica, o desemprego em particular não conheceu melhorias e os casos de corrupção cresceram de modo exponecial.

Em 2012, Malema rompeu com Jacob Zuma e com o ANC para criar o EFF, o partido dos combatententes pela "liberdade económica”, provocando uma enorme sangria nas bases do ANC. Adoptou as promessas populistas de desapropriar 30% das terras aos brancos a favor da maioria negra e expulsar os estrangeiros que roubavam o emprego dos sul-africanos.

Em 2018, o Presidente Jacob Zuma foi destituído por corrupção e com ele uma nova sangria de quadros e dirigentes que acabaram afastados dos cargos e expulsos por corrupção.

Em Junho de 2023, o antigo secretário-geral do ANC, Ace Magashule, foi expulso do partido, depois de enfrentar na Justiça um caso de corrupção e, por isso, decidiu criar o partido ACT (Congresso Africano para a Transformação). Tal como o COPE, era aliado de Mbeki, o partido ACT anunciou a criação de uma frente unida entre o ACT e o uMkhonto we Sizwe (MK), (antigo braço armado do ANC), que é um pequeno partido radical também criado pela tendência de Zuma no ANC.

A criação tanto do ACT como do MK, que resultam directamente do crescente conflito entre Jacob Zuma e o actual Presidente Cyril Ramaphosa, poderá reduzir para metade o apoio do ANC em KwaZulu-Natal, a província mais populosa da África do Sul.

Os analistas acreditam que as eleições de 29 de Maio poderão ser um ponto de viragem para a África do Sul, onde o ANC poderá ficar sem maioria pela primeira vez desde o fim do Apartheid em 1994.

Actualmente, o ANC tem 230 assentos na Assembleia Nacional de 400 membros,  DA (Aliança Democrática) tem 84 assentos e o EFF tem 44, enquanto os restantes assentos estão distribuídos por pequenos partidos.

Mesmo sendo pouco provável que a maioria dos eleitores sul-africanos  aposte em figuras desgastadas pelos casos de corrupção e má gestão, os problemas de instabilidade interna do ANC começam a transformar-se numa ameaça à consolidação democrática do país, perante a possibilidade de aumento de assentos de partidos extremistas como o EFF ou o récem-criado MK.

O ANC é o principal actor político tanto a nível partidário como institucional e o único que garante as políticas de equilíbrio na diversidade étnica e cultural da "nação arco-íris” e da maior economia da África Austral. Apesar da incapacidade dos partidos na oposição de oferecerem alternativas, são as crises internas que empurram o ANC para a perda de eleitorado, ao ponto de se temer por uma redução de assentos que comprometa a estabilidade em todas as alavancas do poder: o Exército, a Polícia, Administração Pública,  as estruturas de inteligência e o judiciário.

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