Opinião

A hermenêutica das palavras e da linguagem jurídica II

Como disciplina que beneficia-se da linguística, do materialismo e da psicanálise sem se colocar como herdeira servil, o Direito deve procurar compreender como um texto funciona, como ele produz sentidos, sendo ele concebido enquanto objecto línguístico-histórico.

24/01/2023  Última atualização 06H10

Assim, a importância de se analisar a sua imagem na Literatura está em reconstruir determinados elementos sobre o mundo jurídico apreendidos pelo escritor, tornar o próprio mundo jurídico menos abstracto e poder aperfeiçoar a forma de expressão e repensar seu papel, imagem e inserção social, enfim, repensar a imagem social das suas profissões, já que a fala, o discurso e a linguagem possuem sempre sentidos plúrimos, dependendo de quem os realiza, em que momento, em que espaço, em que contexto, em que tonalidade, em que forma. Isto quer dizer que, independentemente da formulação teórica, Direito e Literatura ou Literatura e Direito, a sua análise é um instrumento fundamental para se compreender o sentido do discurso e a sua actualização contemporânea.

 

Surrealismo jurídico na estética literária de Agostinho Net

Em toda poesia de Agostinho Neto, encontram-se indicativos para o estudo do Direito, da história e da sociedade. A Revolta de Catete de 1922 é um bom exemplo de manifestação nativista nessa região, a qual foi apoiada pelo pai de Agostinho Neto e que ocorrera no mesmo ano do nascimento deste filho. Capitaneada por António de Assis Júnior, director do famoso jornal O angolense e também conhecido como "o advogado dos nativos”, a manifestação contou com a participação e apoio de Cordeiro da Mata, Lourenço Mendes da Conceição e Agostinho Pedro Neto. Consistiu na acusação de um crime de tentativa de "revolta indígena” por parte do seu mentor, pelo facto de ele ter escrito uma representação que denunciava os maus-tratos, os baixos ordenados e a tributação abusiva a que os trabalhadores dos algodoais estavam submetidos.

 "A conclusão das averiguações instauradas em 1922 apontavam para a iminência de uma rebelião fundada numa doutrina e propaganda nativistas cujos focos de agitação se espalhavam pelas cidades e regiões mais importantes do território” (Kandjimbo, 2012).

Diante das vivências acumuladas no entre-lugar desses, o olhar de Agostinho Neto pôde desde cedo estar atento às referidas antinomias, e às suas consequentes clivagens sociais, mas também às suas manifestações de resistência. O ambiente em que Agostinho Neto viveu os seus primeiros anos revelam-se importantes, pois é por via disso que evoca toda essa gama de questões, as quais concorreram para a elaboração da sua poesia,  composta continuamente por perspectivas amplas e variadas.  O poema "Civilização ocidental” extraído da colectânea Obra Poética Completa (p.45), por exemplo, evidencia esse campo textual em que o processo de "naturalização” das brutalidades impostas pela colonização é colocado em xeque:

Latas pregadas em paus/fixados na terra/fazem a casa/Os farrapos completam a paisagem íntima/O sol atravessando as frestas/acorda o seu habitante/Depois as doze horas de trabalho escravo. Britar pedra/acarretar pedra/britar pedra/acarretar pedra/ao sol/à chuva/britar pedra/acarretar pedra/A velhice vem cedo. Uma esteira nas noites escuras/basta para ele morrer/grato/e de fome. (Neto, página 45).

Com o passar dos anos, Neto vai completando a maturidade e maior visibilidade, a sua filosofia de intervenção ganha novos contornos e visões, quando, em busca de modalidades de estudos superiores inexistentes em sua terra natal, se dá o seu estabelecimento em Portugal, proporciona-lhe o encontro com distintos companheiros oriundos de outras partes do império, com quem compartilhava das agruras do colonialismo e os fundamentos da crítica anticolonial que, em consonância com aqueles que permaneceram, teceram a angolanidade.

 Toma lugar e, já enquadrado, faz recurso à utilização de instrumentos que fortalecem a intenção de ampliar a descrição de cenas e de cenários angolanos/africanos têm, com o propósito de induzir à reflexão sobre o projecto de consciencialização defendido por ele, projecto que, conforme observações de Luís Kandjimbo (2008, p. 92), tem as suas raízes nos princípios de justiça da sua formação.

Neto acentua o seu tom de perpetuação nacionalista, escrevendo as grandes peças políticas, históricas e culturais, algumas delas por via da voz poética, Neto conclama-se a força capaz de entrar "nas sanzalas/nas casas/ nos subúrbios das cidades” e inspirar "as consciências desesperadas”. Essa força advém dos ritmos africanos, figurativamente relembrados na menção a instrumentos como o quissange e a marimba, cujos sons se misturam ao violão e ao saxofone, conclamados para compor "os ritmos de ritual orgíaco” (Neto, in "Aspiração”).

 

David Capelenguela

* Poeta e ensaísta

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