Em diferentes ocasiões, vimos como o mercado angolano reage em sentido contrário às hipóteses académicas, avançadas como argumentos para justificar a tomada de certas medidas no âmbito da reestruturação da economia ou do agravamento da carga fiscal.
O conceito de Responsabilidade Social teve grande visibilidade desde os anos 2000, e tornou-se mais frequente depois dos avanços dos conceitos de desenvolvimento sustentável. Portanto, empresas socialmente responsáveis nascem do conceito de sustentabilidade económica e responsabilidade social, e obrigam-se ao cumprimento de normas locais onde estão inseridas, obrigações que impactam nas suas operações, sejam de carácter legal e fiscal, sem descurar as preocupações ambientais, implementação de boas práticas de Compliance e Governação Corporativa.
Em dois textos anteriores desta série, formulei perguntas que parecem ter tido respostas na corrente argumentativa. Contudo, é necessário compreender o modo como se desenvolve o discurso e o pensamento sistemático das sucessivas gerações de intelectuais, escritores e políticos, bem como o sentido da acção anti-colonial, enquanto experiência partilhada pelos Africanos.
À luz das propostas apresentadas em "Origens do Nacionalismo Africano”, (1997), uma história das ideias políticas do grande intelectual pan-africanista angolano Mário Pinto de Andrade (1928-1990),esse universo de iniciativas, constituído por pensamento, discurso e acção configuram os germes do nacionalismo moderno dos PALOP. Por isso, designou-o por "protonacionalismo”, ocupando acultura, o jornalismo e a literatura um lugar importante na definição dos seus fundamentos.
Acção: conceito e tipologia
De um modo geral, os dicionários de filosofia contêm um verbete que fornece uma definição deste conceito. Mas a qualificação que aqui lhe associamos aflora um outro problema que vem sendo abordado no âmbito da Filosofia da Acção. Neste sentido, aacção anti-colonial implica a existência de agentes, pessoas que agindo de modo individual ou colectivo lhe conferem a necessáriaracionalidade e intencionalidade. De acordo com a concepção defendida pelo filósofo norte-americano Donald Davidson (1917-2003), o que racionaliza uma acção é a razão que lhe está subjacente e a que corresponde uma crença e um desejo do agente ou dos agentes. No dizer de D. Davidson, a acção caracteriza-se através de dois traços distintivos: a) a atitude favorável que se revela através de desejos, vontades e impulsos dos agentes; b) a crença dos agentes na natureza da acção.
A racionalidade e a intencionalidade dos agentes da acção anti-colonial podem ser identificadas nos objectos em que se concretizam. Em primeiro lugar, osactos de resistência comunitária nas zonas rurais. Em segundo lugar, as obras literárias, os discursos e as ideias políticas. Em terceiro lugar, a estratégia, a acção política e militar contra o colonialismo português.
Assim, o problema aqui suscitado sugere que o campo de incidência da acção anti-colonialcobre três tipos de agentes e acções: 1) os líderes das comunidades, populações rurais e urbanas que empreendem diversos actos de resistência; 2) os intelectuais e escritores com a produção reflexiva e criativa; 3)aselites políticase a actividade específica de engajamento. Deste modo, as razões em que se fundamo pensamento, o discurso e a acção anti-colonial relevam do domínio da filosofia moral e da filosofiapolítica.
Marcos e ciclos
Correspondendo aos tipos de agentes e acções referidos, há, no século XX, um quadro analítico do discursoe da acção dos referidos intelectuais, escritores e políticos. É constituído por trêsciclos. Assim, temos: 1) as revoltas e rebeliões das populações rurais e urbanas, tal como as narrativas históricas dos PALOP atestam; 2)as acções de resistência cultural, económica e política desenvolvida no espaço geopolítico interno do chamado império colonial português; 3) as acções conduzidas no exílio e legitimadas pelos ideais que emanam das revoltas e rebeliões. O primeiro ciclo permite demarcar as acções registadas na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. O segundo ciclo segmenta um período particularmente intenso, entre os anos 30 e 50. Este ciclo assinala a importância das acções registadas nos principais centros urbanos africanos do chamado império colonial português, tais como Benguela, Luanda, Malanje e Sá da Bandeira, actual Lubango, (Angola); Mindelo (Cabo Verde); Bissau (Guiné); Beira, Lourenço Marques, actual Maputo, Quelimane (Moçambique); S. Tomé (S. Tomé e Príncipe), onde resistiam as anti-colónias.
O terceiro ciclo é um período de iniciativas culturais, jornalísticas, associativas e literárias anti-coloniais que têm iníciona capital portuguesa, Lisboa,merecendo referência ilustrativa a criação do Centros de Estudos Africanos e o Movimento Anti-Colonial (MAC). Inscrevem-se aqui as acções desenvolvidas no exílio, após a fuga massiva de muitos intelectuais, escritores e políticos para outras capitais europeias e países africanos já independentes. A I Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), realizada na cidade marroquina de Casablanca, de 18 a 20 de abril de 1961, é a manifestação política mais eloquente da acção anti-colonial unitária e concertada.
Filosofia anti-colonial?
Abundam as vozes que formam a polifonia do cepticismo acerca da existência daquilo que temos vindo a designar por Filosofia Anti-colonial ou Filosofia Política dos PALOP. Uma destas vozes é a do camaronês Hubert Mono Ndjana, professor de Filosofia da Universidade de Yaoundé, que invoca a guerra, especialmente para o caso de Angola, como a causa de impossibilidade da eclosão de um pensamento filosófico assinalável. A outra voz é a da especialista austríaca de filosofia intercultural, Anke Graness, professora da Universidade de Viena. Filia-se nessa lista, por força da avaliação que faz no capítulo que assina no manual de filosofia africana, "The Palgrave Handbook of African Philosophy”, editado por Adeshina Afolayan e Toyin Falola, em 2017.
Anke Granes considerava que a filosofia da parte africana de língua portuguesa, ou seja, países como Angola, Moçambique, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, ainda é amplamente excluída do discurso filosófico – dentro e fora do continente africano. Pouco se fala sobre a filosofia nos PALOP em antologias que circulam nos meios académicos, dando a impressão de que não existem. A este propósito, acrescenta que apenas a obra de Amílcar Cabral tem sido discutida em monografias e artigos filosóficos.
Paradoxalmente, reconhecia o facto de as origens das tradições filosóficas dos tempos pré-coloniais e coloniais dessa parte de África não ter sido explorada, admitindo a possibilidade de o nascimento da filosofia política moderna ter as suas raízes nos círculos de estudantes africanos em Lisboa, no final dos anos 40 e início dos anos 50. Destaca aí os escritores, intelectuais e líderes dos Movimentos de Libertação Nacional. No entanto, o interesse dessas referências reside na relação que se estabelece entre a literatura e a política, de tal modo que se revela necessário conhecer e estudar essa Filosofia Anti-colonial dos PALOP.
Literatura, moral e política
Se a literatura, a moral e a política coexistem, não podem ser ignorados os papeis que desempenham, especialmente na sua compatível relação com a construção da verdade,no campo da Filosofia Anti-colonial. Estão em causa as respostas atinentes à questão de saber se as artes de um modo geral, as formulações poéticas e as ficções narrativas podem estar ao serviço e serem compatíveis com a produção do discurso anti-colonial. Por outras palavras, tem interesse saber, a título de exemplo, se a poesia de Jorge Barbosa (Cabo-Verde, 1902-1971), Agostinho Neto (Angola, 1922-1979), José Craveirinha (Moçambique, 1922-2003), Noémia de Sousa (Moçambique,1926-2002), Alda do Espírito Santo (São Tomé e Príncipe, 1926-2010), Vasco Cabral (Guiné-Bissau,1926-2005) podia constituir-se como veículo de denúncias veridictivas contra o colonialismo português e fonte de fundamentos para questionar a justificação do Estado colonial, bem como a obediência às suas leis. Por conseguinte, a compatibilidade discursiva da poesia com a natureza argumentativa e proposicional do discurso filosófico sustenta igualmente a possibilidade da sua classificação como instância da verdade.
A consagração institucional das literaturas africanas escritas em língua portuguesa permite hoje chegar a várias conclusões. O evasionismo cabo-verdiano de Jorge Barbosa, através do dilema moral de querer ficar e ter que partir, exprime a denúncia de um colonialismo que submete os habitantes do arquipélago à condição desumanizante que conduz à errância da emigração. "Este convite de toda a hora / que o Mar nos faz para a evasão! / Este desespero de querer partir / e ter que ficar!”.
Num discurso de veridicção, o poeta angolano Agostinho Neto caracteriza a "civilização ocidental” associando-a a imagens da perversão moral, questionando a sua presumível superioridade,numa descrição dominada pela paisagem coberta de miséria humana e privação de liberdade:
Civilização ocidental
Latas pregadas em paus / fixados na terra / fazem a casa / Os farrapos completam / a paisagem íntima / O sol atravessando as frestas / acorda o seu habitante / Depois as doze horas de trabalho / Escravo / Britar pedra / acarretar pedra / britar pedra / acarretar pedra / ao sol / à chuva / britar pedra / acarretar pedra / A velhice vem cedo / Uma esteira nas noites escuras / basta para ele morrer / grato / e de fome.
O escritor moçambicano José Craveirinha dizia ser "Poeta fabricante de vaticínios infalíveis / Poeta fabricante de problemas e vaticínios mais tarde ou mais cedo / sempre certos”. Por essa razão, no seu livro Karingana ua Karingana, escrevia:
Vim de qualquer parte / de uma nação que ainda não existe / vim e estou aqui / [...] / Tenho no coração / gritos que não são meus somente / porque venho de um país que ainda não existe.
Conclusão
Portanto,
como veremos no próximo texto, que continuará a tematizar o tópico, os textos
artísticos e literários traduzem a efectivação de uma acção como consequência
da prática de um agente. A intencionalidade dos artistas e dos escritores tem
aqui um inestimável valor. Isto significa que não fazemos a apologia do
formalismo puro reduzindo a intenção a uma falácia, a chamada "falácia” da
intenção. A interpretação e a crítica dos textos artísticos e literários dão
consistência ao esforço de categorização ontológica que, no contexto da luta
anti-colonial, tiveram modelos nos conceitos de angolanidade,
cabo-verdianidade, guineidade, moçambicanidade e santomensidade. Deste modo,
faz sentido atribuir dignidade a uma filosofia artística e literária que se foi
edificando através da actividade ensaística, jornalística e do trabalho
académico de intelectuais, críticos literários e escritores dedicado às artes e
literaturas dos PALOP, em toda a segunda metade
do século XX.
*Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia
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