Entrevista

“Um grupo musical para ficar coeso tem que reinar nele a democracia”

Isaquiel Cori

Jornalista

Mestre Kituxi é o pseudónimo artístico de Miguel Francisco dos Santos Rodolfo, fundador da banda de música tradicional angolana Kituxi e Seus Acompanhantes.

12/05/2024  Última atualização 09H18
© Fotografia por: Luis Damião | Edições Novembro

O músico e pesquisador, que em Agosto deste ano completa  84 anos, está aposentado dos palcos mas continua a ser uma das principais referências da música angolana. Único integrante vivo da banda que fundou, Mestre Kituxi mostra-se orgulhoso por terem surgido jovens músicos empenhados na música de raiz, claramente inspirados na obra e na trajectória dos Kituxi e Seus Acompanhantes. O veterano músico contou para o Jornal de Angola parte da sua riquíssima história, recheada de prémios, entre os quais avulta o prémio Nacional de Cultura e Artes em 2023, precisamente pela preservação dos estilos e instrumentos musicais tradicionais

Como é que a música entrou na sua vida? Tinha familiares que tocavam e cantavam?

Tinha mas eu não os conhecia. Por volta de 1957, eu tinha 17 anos, tínhamos aquela coisa das turmas. Formamos a turma Vagabundos do Ritmo, com o Antoninho Parte-os-Cornos, o Bibiano, e outros. E fazíamos espectáculos através do senhor Pedro Bonzela Franco, que tinha um salão no Bairro Operário. Foi lá onde fizemos o primeiro espectáculo. Foi uma maravilha. E daí continuamos.

 
Por quê a opção pela música tradicional?

Depois dos Vagabundos do Ritmocriamos o grupo Feitiço Negro, com o senhor Pedro da Cunha, pai do Almirante Gugu. Isto ainda em 1957. Os instrumentos que então usávamos eram o tambor, a dikanza, a puita e a viola. Em 1962 um moço chamado Joy, que estava no Fogo Negro, conjunto fundado por Oliveira de Fontes Pereira (o Manuel Malamba, irmão do Euclides de Fontes Pereira do Ngola Ritmos), que sabia que eu tocava puita, chamou-me para o seu grupo, onde passei a partilhar o palco com o Ngola Ritmos num salão chamado Pôr-do-Sol, aí na zona do Palácio. Foi assim que conheci todos os elementos do Ngola Ritmos: Zé Maria, Nilo Ndongo, Xodó, Zé Cordeiro, Gegé… O mais-velho Liceu Vieira Dias estava preso. A convite do Roldão Ferreira fiz parte do grupo Ngongo, criado também pelo Oliveira de Fontes Pereira.

 
Um grande tocador de hungo foi o Mestre Kamoso, que certamente conheceu. Chegou a actuar com ele?

A dada altura conheci o Kamoso em Catete. Ele também tocava o hungo. Em 1978 formei um dueto com ele e chegamos a ensaiar para participarmos no 11º Festival Mundial da Juventude e Estudantes em Cuba. Os ensaios não deram certo. O que ensaiávamos num dia, no dia seguinte ele esquecia, já não dava conta. Acabei por viajar para o festival sem ele.

 
O Grupo Kituxi e Seus Acompanhantes ainda não estava formado mas o Mestre Kituxi já viajava em representação de Angola…

Em 1980 convidaram-me para participar no Festival Internacional de Expressão Ibérica (FITEI) na cidade do Porto, Portugal. Fomos com o Ballet Nacional, dirigido por Violante Ferrão, também foi o Waldemar Bastos, os marimbeiros Francisco e Armindo e um grupo coral regido pelo Paz Vitorino. Nas viagens de avião eu sempre levava a cabaça em mão, que eu praticamente considerava como um ovo, para não se partir. Despachava apenas os paus. Ao desembarcar no Porto os paus tinham desaparecido, fiquei apenas com a cabaça. Pedi aos organizadores um pau e eles arranjaram-me um pau de vime, onde montei a cabaça. Funcionou em palco. O mesmo aconteceu numa viagem à Alemanha. Eu sempre construí os meus instrumentos: puita, hungo e dikanza.

 
O Grupo Kituxi e Seus Acompanhantes durou décadas, até o desaparecimento físico de quase todos os seus membros. Qual é o segredo dessa longevidade?

Um grupo musical para ficar coeso tem que reinar nele a democracia.

 
Há quem diga o contrário, que para ser coeso o grupo tem que ter um chefe forte, que impõe as suas ideias…

A coesão vem da partilha igual e honesta. Tudo equitativo. Apesar de dar nome ao grupo eu não me achava superior aos outros. Não ganhava um tostão a mais que os outros. Isso deu consistência ao grupo, até que os seus fundadores foram morrendo. Restei apenas eu. Naquela de morrer um e outro, chegaram a entrar no grupo uns com ideias diferentes, de ganhar mais que os outros, mas foram repelidos.

 
Mestre Kituxi completa este ano 84 anos. Como está a sua saúde física e espiritual?

Carrego há 59 anos uma doença. Aos 25 anos de idade, no dia 8 de Agosto de 1965, estava com um colega do grupo Fogo Negro, o José Rodrigues, no Marçal, na casa da Joana Arantes Dias dos Santos, a comer uns mufetes e a beber um vinhozinho, quando me foram chamar dizendo "olha, a tua mãe está a ser agredida pelo teu primo”. Saí de lá a disparar. Como já tinha bebido uns copos, naquela coisa de intervir caí e fiquei com sequelas na cervical até hoje. Desde 2011, de dois em dois anos vou para tratamento na Alemanha, onde vive um filho meu. É graças a isso que ainda estou de pé.

 
A opção pela música tradicional chegou a atrair resistências contra o grupo?

Éramos muito solicitados, as viagens ao estrangeiro em representação de Angola eram constantes. Alguns convites vinham já direccionados, queriam a nossa presença. Isso despertou algumas resistências, até mesmo de funcionários do Ministério da Cultura. Um desses funcionários, que também era músico, chegou a dizer "weza mutala ó ikumbi” (do Kimbundu: "vieram só para ver o sol nascer”). Criei o grupo para preservação dos instrumentos dos nossos ancestrais e da nossa identidade na indumentária e nas mensagens. Cantamos sempre em Kimbundu. "Santa Maria” é a nossa única música em português.

Mestre Kituxi chegou a fazer parte dos Kiezos?

Nunca integrei Os Kiezos. Partilhávamos o mesmo palco e colaborávamos. Por exemplo "Rosa Rosé”, que Os Kiezos cantam, é minha música. Os Negoleiros do Ritmo cantaram "Panda” (Adultério) também minha. "Nguitabule” foi gravado pelos Merengues.

 
Qual foi a viagem mais memorável que fez a uma província de Angola?

A mais memorável foi a Benguela em 1984. Estávamos numa sala de espectáculos abarrotada e de repente a luz foi. Ficamos às escuras mas não parámos, continuámos a tocar. No dia seguinte saiu no jornal o título: "O som que venceu a escuridão”.

 
Está preocupado com a preservação dos instrumentos musicais tradicionais?

Tenho pedido ao meu sobrinho[Jorge Mulumba, um dos fundadores do grupo de música tradicional Nguami Maka, cantor, executante e divulgador de vários instrumentos tradicionais] para aprender a tocar a kakosha, esse instrumento que está em vias de extinção. Tem um som bonito, é originário de Calulo e da Kibala. Não é o único em vias de desaparecer, há também a tchumba, que é tocada actualmente pelo Paulo Kaita, da Huíla. Em 1983 o levei ao Brasil, quando fui para uma demonstração de como se toca o hungo. A dikanza, graças a iniciativas de Jorge Mulumba e outros, que fabricam, tocam e distribuem, está segura. Os grandes, exímios e viajados tocadores de marimba já morreram. Creio que a Acção Cultural tem de fazer alguma coisa para preservação desses instrumentos.

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