Sociedade
Viaturas roubadas em Luanda são vendidas a um milhão de kwanzas
Manhã de uma sexta-feira. O relógio marca sete horas. Rosa Bento sai de casa, na Samba, a caminho do servico, ao volante da sua viatura, um Hyundai i10. O dia corre muito bem para Rosa, que tem muitos planos para o dia seguinte, sábado, como ir visitar uma irmã e uma tia que andam doentes.
29/10/2020 Última atualização 16H55
Ao regressar a casa, por volta das 20 horas, depois do jantar, foi descansar, com os planos traçados para sábado de manhã sair muito cedo. Por volta da uma hora da madrugada, Rosa Bento, mãe de dois filhos, ouve um barulho no portão e acorda o marido. Os dois olham pela janela e notam um grupo de cerca de 10 pessoas, armadas, no interior do quintal. De repente, as portas e janelas são arrombadas e, em poucos minutos, os meliantes estão no interior da residência. O marido de Rosa, Januário Simão, ainda pegou no telefone para chamar pela Polícia. Sem sucesso.
Os meliantes entram no quarto e ordenam o casal que fique calado e que entregue dinheiro e outros bens. O casal, traumatizado, treme da cabeça aos pés, principalmente, quando vê a arma apontada na direcção dos dois.
Os meliantes retiram o televisor, dinheiro, relógios, fios de ouro e vários artigos de valor, incluindo a viatura. Os assaltados imploram para não serem mortos e os bandidos, satisfeitos com o produto da incursão, abandonam a casa com os pertences alheios.
Foi uma noite inesquecível. As lembranças do ocorrido ainda pairam na mente do casal. No dia seguinte, foi apresentada a queixa-crime junto do Serviço de Investigação Criminal (SIC). Este inicia um aturado trabalho de investigação, que culmina com a apreensão da viatura na via pública.
Rosa Bento agradece o trabalho realizado pelos efectivos do SIC e aconselha os automobilistas a colocarem GPS nas respectivas viaturas, para facilitar a recuperação, em caso de roubo. O carro de Rosa Bento apareceu 30 dias depois de ter sido roubado. Não dispunha de GPS.
O SIC Luanda, no âmbito da operação denominada "Mutimba” (fase II), desencadeou acções operativas de forma coordenada, que resultaram no desmantelamento e detenção, mediante mandados, de seis marginais, que se dedicavam ao furto e roubo de viaturas de várias marcas e modelos.
Missões de cada indivíduo
De acordo com explicações da Investigação Criminal, cada elemento do grupo tinha uma missão específica. Alguns localizavam as viaturas, outros tratavam os documentos e outros ainda procuravam pelos clientes. Também havia quem se ocupava da comercialização dos carros, a partir de um milhão de kwanzas, dependendo da marca e do modelo.
Mestre Júnior, 34 anos de idade, encomendava e comprava viaturas roubadas ou furtadas. Tem como preferência as viaturas da marca Toyota, modelo Rav 4, tendo solicitado aos bandidos quatro viaturas, que comprou ao preço de 500 mil kwanzas cada. Desembolsou, para as quatro viaturas, dois milhões de kwanzas.
Com as viaturas em sua posse Manuel Júnior, (mestre Júnior), alterava a cor e o chassi e revendia as viaturas a preços altos que podiam chegar até 800 e um milhão de kwanzas.
As viaturas eram roubadas em várias zonas de Luanda. Paulo Africano (Jeovane), 27 anos, mais um amigo que está foragido, identificado por Tadeu, tinham por missão roubar ou furtar as viaturas, para depois vendê-las ao mestre Júnior. Até à altura da sua detenção, chegou a roubar cinco viaturas na Centralidade do Kilamba e em outras zonas de Luanda, sendo quatro de marca Rav 4 e um Toyota Prado.
Os carros eram furtados de noite, quando estavam estacionados no parque. Os meliantes usavam chaves mestras para abrir as portas e depois faziam ligação directa e levavam as viaturas. Entregavam-nas ao mestre Júnior, que, por sua vez, as comprava de imediato.
O jovem identificado por Bento Metusal (Jim Do) faz parte do grupo de marginais e desempenhava a função de pintor. Depois de outros integrantes roubarem ou furtarem as viaturas, Jim Do tinha a missão de lhes alterar as características. Pintava com outra cor, para não serem reconhecidas, cobrando 80 mil kwanzas por cada viatura.
No grupo de malfeitores, o jovem Teodoro Joaquim (Agege) tinha a missão de tratar outros documentos para as viaturas roubadas ou furtadas, localizar os clientes e comercializar as viaturas.
No grupo, o jovem Ricardo André ( Érik) localizava as viaturas a serem roubadas e comunicava ao Jeovane, para executar o trabalho. Tudo muito bem organizado. Érik recebia 100 mil kwanzas de recompensa, por cada viatura furtada por Jeovane.
O jovem identificado por Panzo Domingos (Die) também tratava os documentos e procurava pelos compradores das viaturas já roubadas e com as características adulteradas.
O grupo lucrava à custa de cidadãos honestos, que juntavam dinheiro durante anos ou meses para adquirir uma viatura. Num instante, viam os carros roubados, como aconteceu com Feliciano Tadeu, que perdeu o seu Toyota Corolla, roubado há dois anos, sem nunca o ter recuperado. A viatura desapareceu no município do Cazenga.
Apreensão
Foram apreendidas, em posse do grupo de assaltantes, três viaturas de marca Toyota, duas delas modelo RAV4: uma de cor bege, matrícula LD-09-33-BT, furtada no município de Belas (Centralidade do Kilamba), a 16 de Setembro último. Foi lesado José Arlindo Capule Kwaya, bancário. A outra tem cor verde, matrícula LD-30-15-BK. A terceira é um Prado, branco, LD-05-89-BP.
Psicólogo aponta males dos eventos traumáticos
O psicólogo clínico João Venâncio considera que as pessoas que sofrem assaltos, fundamentalmente quando lhes são apontadas armas de fogo, podem correr o risco de ter como consequência um transtorno, de estresse pós-traumático.
Explicou que a pessoa vive com o receio de vivenciar novamente essa experiência negativa que a colocou numa situação de vulnerabilidade. O psicólogo acrescenta que a pessoa tem um sentimento de perda, e procura evitar contacto com situações que remetam ao acontecimento. Sequer deseja ouvir falar ou voltar a vivenciar um outro assalto.
O susto faz com que a pessoa não queira sair de casa, tenha medo de motoqueiros ou pessoas que andam de forma suspeita, por exemplo, pois não consegue, durante algum tempo, esquecer o que passou durante o assalto, acrescentou.
João Venâncio disse ainda que a pessoa acaba por reviver várias vezes aquele evento traumático, o que a impede de viver o presente e ter perspectiva de futuro.
O querer ter-se defendido, reviver o momento, na tentativa de mudar o passado, gera a paralisação e desencadeia o transtorno de estresse pós-traumático. Acrescentou que nem todas as pessoas conseguem passar por uma situação dessas, de sofrer um assalto e continuar a seguir em frente; muitos têm um grande sofrimento psíquico, que pode ser aliviado mediante acompanhamento especializado de um psicólogo.