Cultura

Testemunho de resiliência em Luandino Vieira

Segundo Tânia Macedo, “(...) nos fins dos anos 1940, quando ocorre o ‘boom’ do café e com isso Luanda, cujo porto é a via de escoamento de uma das maiores riquezas de Angola naquela quadra, recebe o impacto da modernização e a sua população negra é deslocada cada vez mais para longe da ‘Baixa”, o centro urbanizado, branco e próximo do mar, a ‘elite crioula’ é definitivamente apeada do poder, já que um número crescente de metropolitanos chega à cidade e toma os melhores postos de trabalho e as melhores terras” (Macedo, 2008:116).

10/01/2021  Última atualização 15H45
Luandino Vieira © Fotografia por: Edições Novembro
José Luandino Vieira, então morador das franjas dos musseques, mas, ainda assim, aluno do Liceu Salvador Correia (o colégio da elite colonial), ao chegar ao fim da adolescência, angustiou-se diante da percepção da diferença de alguns itinerários. Onde buscar explicação para a imposição de percursos tão diferentes àqueles com quem ele tinha partilhado a infância? Aos leitores da Literatura Angolana a declaração de Luandino traz à memória os versos de António Jacinto:

"Naquele tempo / A gente punha despreocupadamente os livros no chão / Ali mesmo ao lado naquele largo – areal batido de caminhos passados / Os mesmos trilhos de escravidões / Onde hoje passa a avenida luminosamente grande / E com uma bola de meia / Bem forrada de rede / Bem dura de borracha roubada às borracheiras do Neves / Em alegre folguedo, entremeando cassambulas /... a gente fazia um desafio... / O Antoninho / filho desse senhor Moreira da taberna / era o capitão / e nos chamava de ó pá, / Agora virou doutor / (cajinjeiro como nos tempos antigos) / passa, passa que nem cumprimenta / – doutor não conhece preto da escola.”
E ainda:

"E o Venâncio? O meio-homem pequenino / Que roubava mangas e os lápis nas carteiras / Fraquito de fome constante / Quando apanhava um pinhão chorava logo! / Agora parece que anda lixado / Lixado com doença no peito. / Nunca mais! Nunca Mais!” In "Tempo da minha descuidada meninice, nunca mais!” (Jacinto, 1985: 52).

A citação do belo poema "O grande desafio” traz-nos um pouco do clima da Luanda dos anos 50, época em que a cidade conhece alterações significativas na sua fisionomia. A preocupação física espelhará o processo de marginalização dos colonizados, incluindo os assimilados, na composição de um retrato da nova fase da empresa colonial em Angola.

Julgamos que é nesta conformidade que o romance "Luuanda”, pensado sob o céu de Angola nos anos 60, quando a ficção narrativa ganha densidade, ganha contornos especiais. Estamos ali sob o signo da voragem: naquele contexto já convulsionado pela guerra que desvelou o absurdo do processo colonial – prolongado para além da própria dinâmica do capitalismo que o accionara –, a vida nacional é uma espécie de miragem a que os ventos das utopias tentam dar corpo. Os eventos de 4 de Fevereiro de 1961 em Luanda e de 13 de Março no Uíge não deixariam dúvidas quanto à verticalidade da crise.

"Luuanda”: história atribulada

Escrito na prisão de São Paulo, na capital de Angola, em meio a numerosas dúvidas, desânimos e esperanças, o romance "Luuanda”, composto por três contos, como sabemos, tem uma história atribulada, já que foi "contrabandeado” para fora da cela pela esposa do autor, que o inscreveu no Prémio de Novelística.

A obra ganharia o concurso, mas uma campanha difamatória na mídia da época, a prisão de parte do júri que outorgara o prémio e a dissolução da sociedade que o instituíra não permitiram que o autor fosse efectivamente agraciado. Passado mais de meio século da sua publicação, o livro de José Luandino Vieira ainda mobiliza as emoções dos leitores e instiga a crítica, demonstrando a actualidade de uma obra que se mantém em circulação e que suscita novas leituras.

As três estórias que compõem o aclamado livro, e que são reconhecidas como marco na afirmação da chamada estética da angolanidade, são antecedidas pela colectânea "A Cidade e a Infância” (também alvo de perseguição da   PIDE), cuja primeira versão fora ainda destruída na gráfica, devido ao seu suposto conteúdo subversivo de cunho nacionalista.

As etapas do percurso criativo de José Luandino Vieira estão demarcadas por obras que questionam o mundo angolano (e não apenas) nas suas diversas atmosferas, cruzando uma infinidade de perspectivas que imprimem no seu texto um carácter multifacetado e complexo, mas que, desvendado — o que é propósito desta pesquisa — pode lançar luz sobre as faces que assume o conto angolano.

Num terreno tocado por contradições abertas, o acto de escrever não poderia sequer sonhar com a inocência a que, em certos cenários, se pode ao menos aludir. Sob uma chuva de estilhaços a cair sobre a vida diária, os contornos da relação entre o escritor e o "conglomerado social” que o cercava ganhava certos complicadores. O quadro da exclusão social e económica, temperado pela discriminação racial, multiplicava as indagações: como falar com a camada que ditava a ordem das coisas ou dela se beneficiava? Como distinguir entre as elites os segmentos que poderiam alterar o jogo e as suas regras? Se o acesso à escrita era, ao mesmo tempo, um privilégio e uma condenação, como conduzir a interlocução? O peso de tais questões aponta a superação das fronteiras do texto literário para o exame de processos como o que se projecta sobre um livro como "Luuanda” e toda a sua obra.

Um olhar atento, contudo, permite desmentir a identificação, pois a construção estética que Luandino encerra na sua obra ultrapassa a geografia e foge ao documento sociológico. Mas, dialecticamente, ancora-se e demonstra um conhecimento de Angola: sua música, sua culinária, sua história e suas utopias, confundindo-se com o desejo dos angolanos por liberdade. Dessa forma, pode-se afirmar que a Luanda dos textos de Luandino Vieira é realidade literária complexa que reflecte e refracta Angola, mas de forma que uma enorme gama de singularidades locais, fauna, flora e geografia, receba um tratamento artístico em que se dissolvem as fronteiras regionais – e Luanda se torna o mundo.

Nesse romance, sendo ao mesmo tempo um objecto em que se inscreve a ética e a estética, a linguagem remete ao mundo do musseque, da oralidade e da oratura, na medida em que o Kimbundu falado pelos moradores dos bairros suburbanos referidos nos textos (o Sambizanga, a Lixeira) atravessa as falas das personagens e dos narradores, situando-os não apenas geograficamente, mas também em termos linguísticos. Mas há também as marcas da oralidade nas repetições de vocábulos, na constante parataxe ou ainda nos desvios de linguagem próprios da língua falada.

Notável é ainda o quadro da oratura em que se inscrevem as estórias, na medida em que os missossos "enformam” os relatos, como se pode verificar no início e término das mesmas, que remetem ao intróito e final dos contos tradicionais. É essa a Luanda que se descortina ao leitor. Todo um mapa da cidade capital aparentemente lhe é franqueado, e ele é seduzido pela miragem de uma cidade documentada e documental na ficção. Ora, se o Sambizanga e seus becos, assim como o Makulussu ou o Braga, são topónimos encontráveis na carta geográfica e referencialmente têm a sua existência assegurada, há, todavia, intersecções entre bairros que desorientam o leitor e retiram-lhe as certezas: onde se localizaria mesmo "a confusão entre o Sambizanga e a Lixeira”? E os limites do Rangel? ("A estória do ladrão e do papagaio”, Luanda). Dessa forma, os musseques sobrepõem-se e criam-se fronteiras improváveis, violando a geografia.

A essa luz, não se pode esquecer que, do quadro de contradições engendrado pelo colonialismo, avulta o "drama do bilinguismo”: o colonizado deve assumir a língua do seu conquistador e, paulatinamente, distanciar-se da sua própria forma de expressão, conforme muito bem salientou Albert Memmi: "A língua materna do colonizado, aquela que é nutrida por suas sensações, suas paixões e seus sonhos (...), enfim, aquela que contém a maior carga afectiva, essa é precisamente a menos valorizada (...). Se quer obter uma colocação, conquistar seu lugar, existir na cidade e no mundo, deve, primeiramente, aplicar-se à língua dos outros, a dos colonizadores, seus senhores”. (1977, p. 97).

E Luandino, considerado um escritor engajado que assumiu, explicitamente, uma série de compromisso em relação à colectividade, que se ligou de alguma forma a ela por uma promessa e que joga nessa partida a sua credibilidade e a sua reputação, procurou engajar-se, ou seja, dar a sua pessoa ou a sua palavra em penhor, servir de caução e, por conseguinte, ligar-se por uma promessa ou juramento constrangedor. Esse engajamento do escritor faz lembrar outro seu romance, "A vida verdadeira de Domingos Xavier”, cujo  herói principal, Domingos Xavier (operário-militante), foi preso e torturado até a morte, pela causa da independência do país. Além de narrar o percurso sofrido e simbólico de Domingos Xavier, retrata a história dos musseques dos bairros periféricos e dos luandinos revolucionários e comprometidos com a luta, por exemplo, as personagens: Xico Kafundanga, Mussunda, vavô Petelo, miúdo Zito, bem como trata da triste e tensa experiência da personagem esposa Maria nas andanças em Luanda em busca de informações sobre o paradeiro do esposo Domingos Xavier.

Arco temporal em "Papéis da Prisão”

O outro título, que nos fornece dados interessantes para compreendermos melhor a própria escrita literária de Luandino, consiste num alentado volume com mais de mil páginas e que congrega os cadernos do cárcere do escritor. O subtítulo do livro, "Apontamentos, diário, correspondência (1962-1971)”, explicita o heterogéneo material e o extenso arco temporal que o compõem, e que permitem ao leitor não apenas penetrar nas celas do regime colonial português, como também acompanhar a génese de alguns dos personagens e estórias do autor. Veja-se, por exemplo, como os traços de um pequeno meliante trancafiado na mesma prisão de Luandino comporão, futuramente, uma das personagens de "Estória do ladrão e do papagaio”. O jovem malandro é descrito em "Luuanda” como "Um rapaz coxo, estreitinho, puxa sempre a perna aleijada. Mulato. (...) um mulato-claro, o nome dele é Garrido, olhos azuis, quase um monandengue ainda, não é?” (VIEIRA, 1982, p. 38).

Assim, a constituição do depoimento de Luandino Vieira sobre as suas experiências na luta pela independência de Angola, expresso em "Papéis da Prisão”, olhando a sua obra como um espaço de recordação, evidenciando a escrita de testemunho como instrumento de memória individual, de uma dimensão de memória pública de cunho político do período, mas também de demonstração de resiliências, nas relações que estabelece com a história dos espaços de língua portuguesa, marcada por eventos extremos durante o século XX; e a elaboração dos cadernos autobiográficos como escritas de si – exercícios de escrita íntima que funcionam como matéria-prima para a elaboração de obras futuras, além de maneiras de indagação e produção de formas de subjectividade a partir do exercício da escrita de si para si e de si para outros, constituindo um mecanismo de autoinvestigação, autoadestramento e individuação a partir da literatura que subjaz daquilo a que se pode buscar na valorização do "outro” para a construção do "eu”, venha, sobre este percurso, construir potências complementares da construção do sentido e exercício de estar vivo, como dizia Ruy Duarte de Carvalho.

A curiosidade inicial do escritor, que o faz inclusive realizar um desenho de António Garrido no seu diário, seguida de certa irritação pelo facto de o mesmo não o "largar mais”, será substituída no conto por uma grande simpatia pelo jovem habitante do musseque que rouba o papagaio da amada, a jovem Inácia. É interessante notar a passagem do real extratextual da cadeia à "estória” da esquadra, na medida em que o trabalho artístico de Luandino Vieira se configura a partir da solidariedade com as personagens marginalizadas, com uma linguagem em que não se sobrepõe a voz do narrador à das criaturas do relato, e que deixa entrever uma função da literatura.

Entre outras características, sempre positivas, desse monandengue do musseque, há um traço do seu falar que merece ser referido:
"Na boca estreita de Garrido Fernandes tudo é por acaso. E as pessoas que lhe ouvem falar sentem mesmo o rapaz não acredita em sim, não acredita em não. Uma vez falou tudo o que ele queria não saía mais certo e tudo o que ele não queria também o caso era o mesmo; só passava-se tudo por acaso. Então, por acaso, vamos lhe encontrar na hora das cinco e tal no dia de ontem. Então, por acaso, vamos lhe encontrar na hora das cinco e tal no dia de ontem desse dia em que agarraram o Lomelino carregando o saco com os patos proibidos, metido na sombra da mandioqueira do quintal da Viúva, esperando Inácia.” (VIEIRA, 1982, p. 38).

Sem afirmar nada, para o Garrido de "Estória do ladrão e do papagaio” tudo é "por acaso”; ainda que no momento em que enfrenta os seus comparsas Lomelino e Via Rápida se torne assertivo, o seu carácter é desenhado a partir da oscilação. Esse adolescente, cujos traços são dados com grande positividade pelo narrador – a ponto de o mesmo assumir a expressão "por acaso” da personagem para iniciar a narração dos acontecimentos do dia em que os "causos” ocorreram –, tem uma génese descrita em "Papéis da Prisão”:

"Chama-se António Fernandes Garrido. Pergunta-me sempre se tenho ‘Jornal d’hoje’. Ontem perguntei-lhe porquê? Por acaso é para ver se vem o nome dos detidos. Disse-lhe que só a ‘província’. Agora não me larga. A razão: quer ver o nome dele no jornal! É baixo, magro e nodoso, com uma pequena cabeça de pássaro esperto. Camurcina azul, da marinha. Calções e quedes. Coxo duma perna, recordação de paralisia infantil. Está preso porque matou um papagaio! O bicho era bonito e falava bem e ele não gramava a dona! Pergunto-lhe, olhando para a pele bem clara dele e o restante aspecto: – É cap’verde? – Por acaso sou mestiço! – De Luanda! – Por acaso de fora de Luanda! ‘Tudo por acaso...’  E não me larga mais para ler o jornal onde pensa virá o nome e a história do papagaio (Louro) que é o seu orgulho.” (VIEIRA, 2015, p. 351).

O livro "Papéis da Prisão” foi lançado em 2015 e é composto por uma selecção de cartas, apontamentos sobre a sua escrita, recortes de jornais, pensamentos sobre teoria e prática literária, além dos seus diários do cárcere. Traz também a entrevista "O Tarrafal é a prisão em mim”, em que o autor reavalia o seu percurso como escritor e activista pela libertação de Angola do colonialismo português, além das marcas produzidas na sua vida pelos longos anos de encarceramento.

Criação e combate directo

Se o passado é escrito pelo futuro, essa realidade define a legitimidade de uma reinvenção que está indiscutivelmente associada a uma história maior que a do próprio autor. Uma história que permanece repercutindo no presente e no passado de um país e que torna mais significativo o lugar da literatura na ordem e na desordem dos dias. Os cerca de cinco séculos de presença portuguesa constituíram forte entrave à sistematização da literatura angolana, pois apenas na década de 1950 toma corpo um sistema literário coerente no país, integrando a tríade autor-obra-público.

Este sistema traduz-se em autores conscientes do seu papel, nas obras veiculadoras de conteúdos eminentemente nacionais sob aspectos codificados de linguagem e estilos e no conjunto de receptores, ainda que pequeno, formado por angolanos alfabetizados e preocupados com a sua especificidade cultural. Conforme bem assinala Carlos Ervedosa, "enquanto (os escritores) estudam o mundo que os rodeia, o mundo angolano de que eles faziam parte, mas que tão mal lhes haviam ensinado começa a germinar uma literatura que seria a expressão da sua maneira de sentir, o veículo de suas aspirações, uma literatura de combate pelo seu povo.” (1979, p. 102)

A tradição oral veio a funcionar dentro da obra do ficcionista, como na de outros escritores, mesmo em menor intensidade, como modelo de ligação ou busca de uma ideia de "nacional” anterior, ou ancestral. Na fuga da ancoragem em modelos estrangeiros e na busca de forjar uma "voz” tipicamente angolana, como propunham os ideais estéticos anunciados pela Geração da Mensagem, inicia-se, então, uma volta ao "passado da cultura local”.

Esse movimento se dá, sobretudo na segunda metade do século XX, quando escritores despontam a partir do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola. Essa volta foi anunciada pelos intelectuais a partir do "Vamos descobrir Angola” que "(...) congregaria assim os filhos (...), em torno do projecto da construção de um nacionalismo autêntico (...) no campo da literatura.” (TRIGO, 1977, p.148). Como reflexo disso, escritores que adoptaram determinada postura no campo da narrativa passaram a auto intitular-se ou serem intitulados pela crítica como "griots modernos”.

Ora, a literatura oriunda de tal tomada de consciência dos seus produtores não estava dissociada da certeza de que o sistema colonial deveria ter termo. Dessa forma, autores como Agostinho Neto, Costa Andrade, Luandino Vieira, Jofre Rocha, Mário Pinto de Andrade e outros têm os seus nomes ligados tanto às melhores produções literárias angolanas quanto a um combate directo pela independência do seu país.
* Ensaísta
David Capelenguela |*  

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