Especial

Tentativa falhada de ataque à colónia de Kimbele

Silvino Fortunato

Os acontecimentos que se passavam no então Congo dos anos 60 reflectiam nas comunidades fronteiriça da Angola colonial, com movimentações de pessoas que procuravam incentivar, nas sanzalas, a necessidade de uma revolta violenta.

15/03/2023  Última atualização 10H25
© Fotografia por: DR

O activismo destes nacionalistas inicialmente baseava-se na mobilização da população para contribuírem com 1 escudo, a moeda colonial da época, que serviria para a produção de panfletos, contendo ideais que incentivassem a sublevação popular e o desejo da descolonização.

Entre os nacionalistas que andavam de sanzala a sanzala na região de Kimbele constavam o Pedro Lusuki, Mariano Lunda e alguns religiosos que tinham contactos com os mensageiros provenientes do Congo. "Cada casa, inicialmente, deveria entregar um escudo, mas os homens que tinham duas mulheres entregavam dois escudos. Aqueles que tivessem três ou mais mulheres entregariam os valores que corresponderiam a cada agregado que estivesse sob seu controlo, conforme nos diziam”, conta o mais velho Lucas Gouveia.

Segundo o nacionalista, quando se consumou o processo de cobrança, o dinheiro começou a ser enviado ao Congo, precisamente à direcção da UPA, servindo para a produção de panfletos que chegavam posteriormente às aldeias e sustentavam também as missões dos mensageiros. Precisou que eles traziam depois esses panfletos que tinham palavras para despertarem o povo, da necessidade da libertação da terra

Lucas Gouveia referiu que após os activistas entenderem que as condições já estavam criadas, juntaram jovens dos bairros, que tinham sido mobilizados na própria regedoria de Kimbele, assim como nas regiões de Uamba e Kibokolo, sendo acantonados na aldeia de Kindalulo, que fica a 15 quilómetros da vila de Kimbele.

"Podiam chegar a 500 homens, os jovens de Kimbele que tinham sido preparados e munidos de kanhangulos, paus, catanas e outros instrumentos rudimentares disponíveis para a guerra”.

 

O embate anticolonial em Kimbele

Foi na madrugada do dia 8 de Março de 1961, uma sexta-feira, segundo Lucas Gouveia, que as pessoas arrancaram para irem atacar os brancos da vila. Eles caminhavam animados por uma canção previamente instruída: "UPA, maza”, "UPA, maza”, "UPA, maza”. Enquanto uns diziam UPA, outros respondiam em refrão "maza”. Ou seja "UPA”, "água”, que produzia um barulho ensurdecedor, que se podia ouvir a quilómetros de distância.

Quando chegaram no rio Mfuta, antes da vila, os colonos, despertados pelo barulho provocado por centenas de jovens nativos, ficaram assustados e receosos correram e entraram em trincheiras preparadas para prevenção de sublevações.

Enquanto aguardavam os atacantes atravessaram este rio e começaram a invadir primeiro as casas coloniais que ficavam em direcção a Texaco, cujos escombros ainda existem, ao mesmo tempo que se propuseram a subir para o posto administrativo.

Deste ponto, os brancos já entrincheirados compreenderam que se tratava mesmo de um ataque e abriram fogo. Havia entre estes o Armando e o Eduardo, um mulato de Malanje, que eram bons atiradores, que bem sabiam usar as suas armas. Esses eram os melhores caçadores entre os colonos que moravam na vila de Kimbele, naquele tempo. Os jovens nativos, apesar de destemidos, eram alvo fáceis dos atiradores caçadores e de outros brancos munidos de caçadeiras facilitados pelos pontos estratégicos da vila que ocupavam e que deixavam os atacantes em campo aberto.

Eram tantas as baixas, que fez recuar os sobreviventes, já no dia seguinte. "Os cadáveres permaneceram durante o dia expostos em vários lugares da vila, sendo os próprios brancos se encarregado de os enterrar em uma vala comum, que foi escavado por detrás da antiga administração por uma maquina retroescavadora”.

Viviam na vila, como lembra o nacionalista, o Manuel Lobo, o Amândio, um mulato, o Freitas, o Manuel Bicho, o Pereira, para além dos referidos Armando e Eduardo e tantos outros. Neste ataque não houve qualquer registo de morte de brancos.

Primeiro êxodo para o Congo

"O meu pai tinha uma contradição com certos colonos e quando começa a guerra de 1961, temendo que fosse morto, depois do ataque à vila de Kimbele, fomos os primeiros a deixar o país. O pai decidiu ir embora com a família para o Congo, sem esperar mais pela possível revolta colonial pela ousadia dos nativos”, referiu Lucas Gouveia.

Nos dias seguintes, os colonos, que habitavam em Kimbele, organizaram-se e avançaram mesmo contra os aldeamentos, com as suas caçadeiras e outras armas em punho, o que obrigou a que milhares de pessoas procurassem refúgio nas matas, havendo muitos que partiam de imediato para o Congo, deixando para trás as suas sanzalas incendiadas, mortos os incapazes ou os que tivessem sido surpreendidos.

"Todos os sobreviventes das sanzalas atingidas recuaram para as matas e outros foram directo para o Congo, sobretudo os mais novos ou que ainda fisicamente estavam de saúde”, dada a jornada que era preciso percorrer para se atingir o caudaloso rio Kwangu e daí ao município de Kasongo Lunda, que fica imediatamente na outra margem.

Recorrendo ao pouco que disse restar na sua memória, o ancião disse que os que tivessem elementos inaptos, entre os membros da família, para a longa e árdua caminhada para chegarem ao Kwangu, que era a tábua de salvação para o Congo, preferiram encontrar refúgio nas matas, abandonando aldeias inteiras. A sede de Kimbele e o rio Kwangu, segundo sua avaliação, estão separados por mais de 300 quilómetros. "Há velhos que não conseguiam caminhar esta distância toda”.

 

Intervenção do exército colonial

Segundo precisou eram os brancos caçadores e outros comerciantes que empreendiam a perseguição e destruição das aldeias, uma vez que naquele tempo em Kimbele, antes do ataque nacionalista, não havia tropa do exército colonial.

"Mesmo aqui no Uíge, ninguém te engana senhor jornalista, não tinha ainda tropa do exército colonial. Em 1961 existia apenas polícias ou cipaios. A tropa somente começou a ser destacada depois dos ataques que eram realizados contra os aldeamentos de colonos em vários lugares daqui no Uíge”, disse ao rebater a afirmação de Majinjilu João Pedro, que procurava introduzir o argumento da participação do exército colonial nos ataques inusitados contra as sanzalas.

Lucas Gouveia conta que quando os colonos de Luanda enviaram os primeiros aviões que atacavam e perseguiam os fugitivos, ele e sua família já se encontravam no Congo e recebiam informações a partir dos que conseguiam atingir aquele país, que relatavam as atrocidades coloniais que se seguiram ao levantamento.

Majinjilu João Pedro, depois de avivar a sua memória, concordou com o argumento de Lucas Gouveia indicando que os aviões eram de cor branca e tinham faixas vermelhas e que a tropa do exército colonial somente chegou ao Uíge em 1962, quando enviaram também os comandos e implantaram o batalhão tigre em Sanza Pombo, que controlava também o Kimbele, Massau, Milunga e outros lugares.

As regiões do Bembe e Kitexi, como adiantou, tinham batalhões independentes, sendo ainda criado um batalhão central que estava no GAI, um quartel que foi implantado desde então nos arredores da cidade do Uíge e se manteve até à independência nacional, servindo hoje as Forças Armadas Angolanas (FAA).

 

Acolhimento em Kasongo Lunda

As pessoas que conseguiam atravessar o rio Kwangu eram recebidas pelos responsáveis dos primeiros bairros que avistavam, sendo depois distribuídas a outros lugares da periferia do município de Kasongo Lunda, onde eram entregues à guarda de famílias indicadas.

Os refugiados chegavam todos os dias a essas aldeias, sendo recebidos pelos mfumu a vata (chefes das sanzalas) conforme uma orientação que Lucas Gouveia disse ter partido do próprio Presidente Kazavubu e baixada a todos os governadores das províncias que faziam fronteira com Angola, para acudirem a população que conseguia atravessar o caudaloso rio Kwangu e atingir o outro lado.

"Foi no tempo do Presidente Kazavubu, quando se deram esses acontecimentos em Kimbele, que nos fez fugir para o Congo. Ele orientou os responsáveis dos bairros para receberem bem as pessoas que estavam a fugir de Angola. O nosso grupo tinha sido entregue e instalado em casas das pessoas dos bairros periféricos da sede do município”.

O governo de Kazavubu, que acompanhava e considerava grave a situação que se vivia em Angola, baixara uma orientação a todos os governadores das províncias limítrofes com Angola para a protecção dos possíveis refugiados que atingissem os seus territórios.

A cada chefe da aldeia (mfumu a vata, que correspondia em Angola a denominação "soba”, criada pela autoridade portuguesa para o controlo das comunidades) recebia certo número de pessoas refugiadas, havendo quem recebesse 10, outros 15, 20 ou mais, disse.

Por sua vez, acrescentou, os "mfumu a vata” entregavam entre três e quatro pessoas a uma família congolesa, para o acolhimento final, que inicialmente indicava ao refugiado lugares para construírem as suas casas e terras para trabalharem. Antes disto as famílias acolhedoras sustentavam com alimentos das suas próprias produções, uma empreitada que somente terminava depois que as lavras dos refugiados começassem a dar frutos.

A base de Kizamba

O nacionalista Vuemba André foi o primeiro enviado da UPA, mandatado para contactar o administrador do município de Kasongo Lunda, pedindo-lhe autorização para proceder ao recrutamento de mancebos, nos assentamentos dos refugiados angolanos.

Após a concertação com o comissário de zona, conforme a organização administrativa na altura do Congo, o Nvuemba e os seus companheiros entraram em negociações com os pais refugiados para estes mobilizarem os filhos e outros que se encontrassem sob sua tutela nos bairros, para ingressarem nas forças da resistência.

"Os nossos pais começaram a entregar os jovens. Quem tivesse um jovem, dava, quem tivesse dois ou três, dava. Eu e o meu miúdo, Manuel, fomos entregues à organização, onde ficamos até conseguirmos libertar a nossa terra”, disse o revolucionário Lucas, esclarecendo que todos os pais tinham a consciência de que os colonos tinham de ser combatidos, por isso, ninguém hesitou quando os mobilizadores chegaram nas aldeias dos municípios.

Eram mais ou menos 150 os homens, todos eles adolescentes, que seriam os primeiros mancebos do recém-criado centro de recrutamento de Kinzamba, que ficava no território do município de Kasongo Lunda, no então Congo dos anos 60. Os novos recrutas da revolução tinham sido mobilizados entre os filhos dos refugiados que tinham fugido a repressão colonial que se seguiu a tentativa do ataque contra o posto administrativo de Kimbele, em Março de 1961.

Os mais pequenos, como Lucas Gouveia, sem idade para a recruta, foram sendo integrados na organização de pioneiros que era a "génese”. "Nós, os miúdos, primeiro iniciamos na génese, que evoluiu depois para JFNLA (Juventude da Frente Nacional de libertação de Angola) de onde sai em 1965 para as fileiras das forças”, isso depois de treinar na base de Kizamba.

Lucas disse ter participado, embora menor, na formação da base de Kizamba, que era a segunda base da UPA depois de Kinkuzu, que fora criada como julga, em 1964, integrado no grupo dos primeiros mancebos.

Quando seguiram para o centro de Kizamba, este ainda não tinha qualquer infra-estrutura montada. "Fomos nós que começamos a criar a base de Kizamba. Capinamos, erguemos as primeiras casas, de pau-a-pique e capim. Depois o André Nvuemba voltou a Kinshasa. No seu regresso fez-se acompanhar dos instrutores Noé, Kalundungu, Fernando Kihindu, Mavitidi, todos já falecidos, que já tinham passado por Kinkuzu. A maioria destes já tinham também cumprido a tropa colonial portuguesa, por isso já possuía experiência militar”.

Lembra que André Nvuemba, Francisco Kalundungu, que depois passaram para a UNITA, e Buaca Mesu, que treinara em Kinkuzu, foram os primeiros responsáveis da unidade de preparação dos guerrilheiros. "Foram estes os nossos primeiros instrutores e fundadores do centro, que mais tarde viriam a formar e a comandar as primeiras unidades de guerrilheiros enviadas para a frente de Malanje e de Kimbele, no Uíge, que foram abertas também por eles”.

A cerimónia formal da abertura do centro foi dirigida, de acordo com as suas memórias, por André Nvuemba, que tinha sido mandatado a propósito pelo presidente Holden Roberto. Todos os cinco chefes que participaram na cerimónia da abertura do centro ficaram depois os primeiros responsáveis do mesmo.

Refere que mais tarde o Kalundungu foi também o chefe das operações das frentes então criadas em Malanje, comandando muitos instruendos preparados na base de Kizamba, como ele que desempenhou a função de operador, depois de fazer o curso de comunicações, em Kinkuzu, que era a principal base de treinamento dos guerrilheiros da UPA no Congo.

Ainda se lembra que "o primeiro instrutor que tínhamos era o falecido Noé” e que também contavam com o concurso de instrutores estrangeiros que participavam na instrução ligada a parte das comunicações, que eram de nacionalidade chinesa.

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