Cultura

Simbolismo da máscara Mukixi wa Mwata

Victorino Matias | Dundo

Jornalista

O povo Cokwe utiliza a palavra mukixi (akixi) para se referir a um espírito ancestral ou da natureza que é encarnado por uma máscara. O mascarado é completamente coberto por indumentárias e adereços próprios, vestindo um fato colado ao corpo feito de fibras entrelaçadas e calçando luvas. Na parte sublime do rosto da máscara coloca-se um chapéu de verga de estilo aparentemente rudimentar.

28/05/2023  Última atualização 05H52
© Fotografia por: Benjamin Cândido| Edições Novembro

Através da intervenção dos akixi percebe-se que a arte Cokwe, com uma dimensão estética fundada na expressão do ritual e da religião, consiste também em  marcas da personalidade deste povo.

As  máscaras existem enquanto veículo de perpetuação e transmissão do património de uma cultura sem um sistema de escrita convencional. O povo Cokwe usa as máscaras como meio de conexão com os seus antepassados.

Em geral acredita-se que o mukixi (singular de akixi) é uma pessoa regressada da morte, que se ergue da terra numa área isolada, depois de um ritual feito no cemitério, partindo ovo de galinha sobre uma das campas.

O soba Henrique Quexinganji  disse ao   Jornal de Angola que depois de cumprida a cerimónia ou ritual, o mukixi sai já trajado com elementos acessórios como chapéu e fato, representando várias formas do espírito evocado, conhecido na  cultura Cokwe como mahamba.

De acordo com o nosso entrevistado, ao  mascarado exige-se, de forma imperiosa, que a figura seja interpretada como uma arte de assombro (Kutungumuka), devendo espantar e surpreender, numa dualidade entre atracção e repulsa,  repelindo as ameaças e os maus presságios, com vista a atrair o invisível, o que está escondido sob o signo do Mukixi wa Mwata.

O soba da regedoria Komboio conta que até há pouco tempo as mulheres e as crianças ou tchilima (não circuncidado) eram proibidos de estar próximos do homem mascarado.

Henrique Quexinganji deu a conhecer que entre todos os akixi, o Cikungo ou Mukixi wa Mwata é o que se encontra no topo da hierarquia, daí ser denominado por "máscara do chefe” ou "máscara do soberano”, representando a espiritualidade dos antepassados do povo Cokwe. Guardada fora do centro habitacional, só aparece quando é necessário fazer um sacrifício para o bem-estar da comunidade, explicou.

O soba descreve que a máscara Mukixi wa Mwata possui um chapéu imponente, composto de uma estrutura em forma de leque, com asas ou discos largos de cada lado,  transmitindo  a ideia de uma imagem do Ndala Kaitanga (Deus na mitologia Cokwe), acreditando-se  possuir poderes para expulsar espíritos malignos.

Citando o  investigador português  que trabalhou na Administração  Colonial na então província da Lunda,  José Redinha, que em 1965  escreveu na obra  intitulada  "Instrumentos Musicais de Angola”: "As formas e as cores utilizadas na confecção das máscaras integram-se num quadro simbólico-estético, uma vez que não são unicamente decorativas, pois, estabelecem conexões entre as  pessoas. Ou seja, a parte ‘invisível’ da máscara é tão real e acessível como  o  lado material”.

O soba  explicou   que o corpo do homem mascarado é ainda coberto por um fato de rede (civuvu) que completa a máscara, igualmente decorado com motivos como os losangos concêntricos (majiku) representativos do fogo ou os triângulos concêntricos dando a sensação de uma segunda pele.

"Ele, o Mukixi wa Mwata, geralmente vem trajado de lupula (pano) que o cobre até aos pés, casaco, que lhe caracteriza de soberano, luvas brancas e duas catanas em cada mão, para além da corda, através da qual é controlada a sua fúria”, revelou o soba, acrescentando que o seu andar é intimidatório, com exibição e movimento brusco de catanas.

Henrique Quexinganji explicou  que  aquele movimento é uma clara demonstração do acto subsequente que o mukixi vai realizar na cerimónia para onde foi chamado,  que consiste em decepar a cabeça de um animal. Com um só golpe, de acordo com o soba, a cabeça do galo ou do pembe wa kunji (bode) é decepada, dando o sinal do início do acto.

 

Derramamento de sangue como símbolo de bênção

Os animais que são apresentados ao Mukixi wa Mwata para serem sacrificados são, geralmente, machos, para que sejam dignificados, explicou Henrique Quexinganji.

Depois de se decepar a cabeça do animal, o sangue deve ser vertido no chão como forma de abençoar a cerimónia do início da época chuvosa, perspectivando, deste modo, a boa colheita nas actividades agrícolas  ou mesmo o êxito no tratamento de uma pessoa.

De acordo com o soba, o início da época chuvosa  costuma coincidir  com  o primeiro mês do calendário Cokwe, no caso o Kamoxi (Agosto) e é  marcado com  músicas que exaltam alguns dos hábitos e costumes locais,  exposição de produtos do  campo, utensílios de trabalho agrícola e  artefactos para a pesca e a caça.  O aparecimento da lua nova, segundo a autoridade tradicional que vimos citando, anuncia o momento ideal para as festividades, normalmente no fim de Agosto. Nestes momentos, compete ao Rei invocar os "mahamba”, espíritos dos antepassados, de forma a transmitir ao povo prosperidade, fartura, paz e saúde. "O mesmo aparece também em todos os actos de investidura dos grandes chefes tradicionais”, acrescentou.

A preservação do ritual, continuou, ajudava a alcançar  os resultados almejados, mesmo sem a presença do soberano em funções no acto. "Em casos extremos, como a morte de um membro da realeza, a actividade fica circunscrita ao bairro”, explicou.

Henrique Quexinganji disse, com o semblante a denotar  grande tristeza, que nos últimos tempos, por consequência da globalização e da proliferação de seitas religiosas na província, a aparição do Mukixi wa Mwata acontece com mais frequência nas visitas do Rei Mwachissengue wa Tembo.

Disse  ainda que o Cikungo, como é também chamado, na mitologia Cokwe, é uma figura com que não se deve cruzar na calada da noite, pois "pode representar perigo de morte para aquele que atravessar o seu caminho”. 

 

Experiência inusitada

Por seu turno, o jovem Sonhi Trindade conta a experiência que teve numa cerimónia onde o Mukixi wa Mwata esteve presente.  Lembrou que  foi um evento inesquecível, tendo em conta o medo e os  arrepios que sentiu naaltura em que observava a acção do mascarado.

Na época,  Sonhi Trindade contava com apenas  11 anos quando foi levado ao tchota (jango) do soba  para tratar de uma enfermidade  que o assolava. O jovem disse que foi arrepiante ver a cabeça do galo a ser cortada pelo mukixi.

"Desde aquela data, nunca mais vi o mesmo mukixi, porque não voltei a ter aquela enfermidade que tanto sofrimento causou à minha vida, assim como estar em eventos onde se precisou da presença dele”, explicou.

Como a coreógrafa Ana Clara Guerra Marques escreveu no seu livro sobre o significado das máscaras Cokwe na dança, os aspectos que se prendem com a posição do povo Cokwe, relativamente à arte, têm a ver com o facto de esta ser encarada como uma espécie de "medicina social”, pela sua capacidade de proteger e defender a comunidade das "doenças sociais”.

Na sua obra, Ana Clara Guerra Marques explica ainda que é a multiplicidade de referências dos akixi que confere à máscara a capacidade de instigar a acção da sociedade através de um vasto repertório de símbolos e desenhos.

"Analisando as actuações dos akixi enquanto elementos mediadores, é possível perceber-se a existência de uma relação entre essa simbologia gráfica inscrita nas esculturas, nas máscaras, no corpo ou nos desenhos na areia (tusona) e as figuras espaciais produzidas durante a dança”, refere.

Além do Mukixi wa Mwata, existem outras referências na cultura Cokwe  como o grupo Mukixi a ku Mukanda, que controla as cerimónias de iniciação dos jovens, representado pelo Cikunza, que  por sua vez  desempenha um papel muito importante, por ser o protector principal dos circuncidados.

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