Num vídeo amplamente divulgado nas redes sociais no princípio desta semana, a escritora moçambicana Paulina Chiziane, Prémio Camões de Literatura em 2019, narrou os factos, que ela própria considerou “muito estranhos”, da agressão física contra membros da sua equipa por seguranças da Igreja Divina Esperança, em Maputo.
A escritora contou que ela e a sua equipa estavam a fazer fotografias nas imediações da igreja Divina Esperança "quando os seguranças da dita igreja vieram ao nosso encontro e disseram ‘aqui nas imediações nós não permitimos que se façam fotografias’”.
Com um ar visivelmente exausto, prosseguiu: "Até aí estava tudo bem. E disseram que tínhamos de ir à esquadra para resolver a questão. Ficamos à espera mais de duas horas. Os seguranças da igreja não nos diziam nada, até que nós reivindicamos. ‘Vamos ou não vamos para a esquadra?’ O que aconteceu a seguir é que veio um senhor vestido de branco, que parecia ser a pessoa mais suprema da igreja. Abriu a porta do carro com muita arrogância e mandou a sua gente tirar imagens da Paulina, porque não sei, acho que se calhar fiquei terrorista. Moral da história: tiraram as minhas imagens (…) e confiscaram o meu telefone celular. Quem são eles para fazer isso?”
A autora do romance "Niketche”deu ainda a conhecer que os membros da sua equipa foram gravemente agredidos, nomeadamente Eduardo Salmo "o nosso maestro das palavras”, o assessor Vieira Mário, que foi apertado no pescoço e Job, que mesmo doente foi maltratado.
"Quase que eu ia morrendo ao ver aquela coisa horrível”, lamentou a escritora, que acrescentou: "Eu pergunto: quem são eles para me impedir de fazer uma imagem na rua do meu país? Quem são? E porquê que agrediram essas crianças maravilhosas com quem trabalho? O que querem fazer com as imagens da Paulina?”
Paulina Chiziane disse que ela própria sofreu agressão psicológica.
Na segunda-feira, 29/07, a escritora formalizou, na Polícia, uma queixa contra o pastor da Igreja Divina Esperança, visto que, os seguranças terão agido sob suas ordens. E esclareceu à imprensa que, além das agressões físicas, foi acusada de "bruxaria” pelos membros da igreja, pelo facto de a sua equipa transportar uma Timbila, instrumento musical tradicional moçambicano que foi declarado pela UNESCO,em 2008,Património Cultural Imaterial da Humanidade.
Reacções
A Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO) numa declaração assinada pelo secretário-geral Carlos Para dona, emitida na quinta-feira, repudiou"veementemente” a intolerância social demonstrada pela Igreja Divina Esperança contra a equipa de trabalho de Paulina Chiziane, "com o agravo de prática de actos de sevícia e confisco criminoso de bens da escritora”.
A AEMO salientou que tais actos são contraditórios a qualquer postura religiosa e cívica e "constituem uma inadmíssivel ameaça à liberdade de criação artística e ao exercício dos direitos sociais e de cidadania”. E manifestou"total solidariedade” à escritora Paulina Chiziane e a toda sua equipa de trabalho, exortando a cúpula da Igreja Divina Esperança a retratar-se e a "guiar-se estritamente pela observância da lei”.
A comissão organizadora do V Congresso Internacional de Literaturas e Culturas Africanas – Griots 2024, qualificou como "um ataque covarde e injustificável” a agressão a Paulina Chiziane e sua equipa e expressou aos mesmos "total solidariedade”.
"Neste momento de dor e revolta, nos unimos em defesa dos direitos culturais e da liberdade de expressão, elementos essenciais para o fortalecimento da nossa identidade e diversidade cultural. Exigimos que as autoridades competentes tomem as devidas providências para que os responsáveis por este acto de barbaridade sejam punidos e que acções concretas sejam tomadas para prevenir futuros episódios de intolerância e violência”.
O escritor Mia Couto expressou revolta ao tomar conhecimento das agressões sofridas por Paulina Chiziane e sua equipa e exortou o governo de Moçambique a tomar "medidas severas" contra os envolvidos.
"É inaceitável a agressão física, verbal e psicológica cometida contra a escritora Paulina Chiziane e os artistas que a acompanhavam. Medidas severas devem ser tomadas contra os agressores. Sejam quem forem, seja qual for o pretexto dessa violência", declarou Mia Couto.
Nas redes sociais, escritores de vários países de língua portuguesa manifestaram-se indignados com o ocorrido com Paulina Chiziane e sua equipa, a quem dirigiram palavras de solidariedade. "Que atitudes deploráveis! À parte a postura de grande escritora e figura humanista internacionalmente estimada que é a Paulina Chiziane, trata-se de uma senhora de idade avançada e frágil saúde, que, ao contrário de agressão, merece é carinho e cuidados de todos, sobretudo de quem se diz religioso”, expressou Salgado Maranhão, um dos poetas mais laureados do Brasil.
"Que absurdo!”, exclamou o escritor e poeta angolano João Melo. "Que horror! Os neopentecostais são o atraso cognitivo do mundo”, disse a professora brasileira Adrienne Savazonni Morelat.
"Um horror esses pastores! ‘Mãe, Materno Mar’ já denuncia essas igrejas”, salientou a professora brasileira Carmen Tindó Secco, aludindo ao romance mais recente do escritor angolano Boaventura Cardoso.
"Que situação desagradável”, afirmou a poeta angolana Amélia Dalomba, estendendo o seu abraço solidário à escritora moçambicana.
Paulina Chiziane é uma das principais escritoras de Moçambique. Foi consagrada em 2021 com o Prémio Camões, o mais importante em prestígio e em valor monetário no espaço da língua portuguesa. A escritora tem-se revelado, em intervenções públicas e nas suas obras, uma acérrima defensora dos valores culturais africanos e contrária à proliferação de seitas religiosas, que, segundo ela, no seu país "estão em cada esquina”.
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