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Relatório aponta "pesada responsabilidade" da França no genocídio tutsi

A França "tem uma pesada responsabilidade" pelo "previsível" genocídio de 1994, no Ruanda, e ainda se recusa a reconhecer o seu papel na tragédia, concluiu um relatório encomendado por Kigali a advogados norte-americanos e publicado hoje.

19/04/2021  Última atualização 17H50
Investigação tem quase 600 páginas, encomendada em 2017 pelo Ruandas Levy Firestone Muse © Fotografia por: DR

A investigação de quase 600 páginas, encomendada em 2017 pelo Ruanda à empresa de advogados Levy Firestone Muse, considera a França um "colaborador indispensável" do regime hutu que orquestrou o massacre de mais de 800.000 pessoas em três meses, na sua maioria da minoria tutsi, de acordo com números das Nações Unidas.

O documento rejeita também a ideia de que Paris estava "às cegas" em relação ao genocídio que estava a ser cometido, como concluiu recentemente uma comissão de historiadores franceses chefiada por Vincent Duclert e criada pelo Presidente Emmanuel Macron. "O Estado francês não estava cego, nem inconsciente sobre um previsível genocídio", asseguram os autores do relatório.

Pelo contrário, acreditam que a França sabia que o genocídio estava a chegar, mas continuou a dar "apoio inabalável" ao regime hutu do Presidente Juvenal Habyarimana, mesmo quando as suas intenções genocidas "se tinham tornado claras".

"A nossa conclusão é que o Estado francês tem uma pesada responsabilidade por ter tornado possível um genocídio previsível", dizem os autores, que estudaram vários milhões de páginas de documentos e entrevistaram mais de 250 testemunhas.

No entanto, a sua investigação não conseguiu estabelecer qualquer prova da participação de funcionários ou pessoal francês nas mortes que tiveram lugar entre Abril e Julho de 1994.

O papel da França, acusada de não ter feito o suficiente para impedir ou parar os massacres ou mesmo de ter sido cúmplice dos mesmos, envenenou durante anos as relações entre Paris e Kigali, onde Paul Kagame, antigo líder da rebelião predominantemente tutsi da Frente Patriótica Ruandesa (RPF), tem estado no poder desde que pôs fim ao genocídio, derrubando o regime hutu.

A publicação do relatório Muse surge algumas semanas depois do relatório Duclert, que concluiu que a França tinha uma responsabilidade "pesada e condenável" pela tragédia, considerando que "nada prova" que tenha sido cúmplice do genocídio.

Pouco depois da sua publicação, o Presidente Kagame considerou que este trabalho constituía um "importante passo em frente". O genocídio começou em 07 de Abril de 1994, um dia depois do avião do Presidente Habyarimana ter sido abatido sobre Kigali. Em poucas horas, as milícias hutu começaram a matar tutsis e hutus moderados a uma escala maciça e com extrema brutalidade.

De acordo com o relatório Muse, nenhum Estado trabalhou mais estreitamente com o regime hutu do que a França, então presidida por François Mitterrand, que foi identificado como o principal "responsável" pelo "apoio irreflectido" do seu país a um regime que se preparava para um genocídio.

A França prestou apoio militar e político para proteger os seus próprios interesses e ignorou as advertências internas, enquanto o discurso do ódio e a violência contra os tutsis progredia, refere o texto.

"Apenas o Estado francês foi um colaborador indispensável no estabelecimento de instituições que se tornariam instrumentos de genocídio. Nenhum outro Estado estrangeiro estava consciente do perigo representado pelos extremistas ruandeses enquanto apoiavam esses mesmos extremistas", acrescenta.

"O papel do poder francês era singular. No entanto, o Estado francês ainda não reconheceu o seu papel e ainda não pediu oficialmente desculpa por isso", lê-se no texto.

O relatório Muse acusa a França de ter levado a cabo nos últimos 25 anos "uma operação de encobrimento para enterrar o seu passado no Ruanda".

"Este encobrimento continua hoje", aponta, assinalando que vários pedidos de documentos relacionados com a investigação foram ignorados por Paris.

Em 7 de Abril, 27 anos após o início do genocídio, a França anunciou a abertura ao público de importantes arquivos, incluindo os de Mitterrand. A decisão foi saudada como um possível "passo em direcção à transparência" pelo relatório Muse.

 

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