Coronavírus

“Passaporte da vacina”, mais um item de discriminação

Osvaldo Gonçalves

Jornalista

Muitos terão sido os angola-nos que, ao verem as imagens passadas de forma repetida nos vários canais de televisão, mais do que a picada da agulha, terão sentido entrar-lhes no corpo e circular no próprio sangue a primeira dose da vacina contra a Covid-19, aplicada a Amélia do Amaral Gourgel, 71 anos, profissional de Saúde reformada.

24/03/2021  Última atualização 08H42
© Fotografia por: DR
 "Tia Amélia” (assim lhe chamamos, mesmo sem pedir licença para tal) deu, de forma literal, o ombro ao manifesto e deixou muita gente envolvida num misto de sentimentos, entre os invejosos que gostarian de lhe tomar o lugar, os que procuram todo e qualquer poro para expelires os seus feles e aqueles que não atam nem desatam, a ter em conta certas declarações proferidas por alguns dos abrangidos na primeira leva de vacinados.

Longe de nós aplaudirmos aqueles que se pautam pelo discurso politicamente correcto, eivado de promessas de continua na linha da frente da luta contra a pandemia, mas constituiu para nós motivo de preocupação ouvir alguém dizer que agora, com a vacina e correspondente certificado, já ia poder viajar. Mesmo sem o ensejo, ao usarem tais palavras, os seus autores acabaram por minimizar a importância da vacinação contra a Covid-19.


Certificados de vacinação

Ao ouvirmos isso, vieram-nos à cabeça argumentos passíveis de originar as mais acesas polémicas pelo facto de alguns países, nomeadamente os mais ricos, e por organizações regionais de uma espécie de "passaporte da vacina”, o qual, mesmo com a sua natureza desvalorizada por certos governantes e altos funcionários aumentaria o fosso em relação aos mais necessitados.

Referir que os certificados de vacinação para viajar já existiam antes da Covid-19 são mais difíceis de aceitar no cenário actual, pelo que ganham força as queixas de discriminação. Nos países onde a questão se coloca com mais acutilância, nomeadamente na Europa, as discussões andam sobretudo, à volta da privacidade dos cidadãos.

O assunto é tratado quase exclusivamente em relação às viagens dentro da União Europeia, embora seja bem-sabido o peso que os documentos emitidos nesses países e nos Estados Unidos sempre tiveram nas demais Nações.
Desde o início da vacinação nos países ditos desenvolvidos, passaram a figurar no dicionário de algumas pessoas termos como "turismo de vacina” e "vacina de camarote”, mesmo se sabendo que, com as restrições de viagens por causa da Covid-19, o continente africano vai perder, só no sector do Turismo, milhões de empregos e de dinheiro daí proveniente.


Situação em África

Estudos apontam que 51 por cento dos turistas em África chegam da Europa, fluxo que foi afectado pela necessidade de cumprirem quarentena. Nesse sector, os países africanos terão perdido, na melhor das hipóteses, 7,6 milhões de empregos e 53 mil milhões de dólares.

Embora as previsões sejam consideradas "afro-pessimistas” por alguns, a Comissão Económica para África da Organização das Nações Unidas (UNECA) estimou que a pandemia da Covid-19 pode levar à morte cerca de 300 mil africanos e mais de 29 milhões de pessoas à pobreza extrema. Nalguns países africanos, é notória a resistência à vacinação com base em argumentos que, além de falta de informação, denotam preconceitos, uns novos, motivados por campanhas anti-vacina, outros mais antigos, como sucede na África do Sul com elementos da população que viveram sob o regime de apartheid.

Curioso é verificar que, enquanto vários países europeus membros da EU paralisam a imunização devido a complicações causadas por uma das vacinas que receberam luz verde das autoridades europeias de medicamentos, mantém-se resistentes em relação a imunizantes originários da Rússia e a China, países que possuem já disponíveis milhões de vacinas contra a Covid-19.


Vacina de camarote
No braço-de-ferro diplomático, pressionado por forças políticas de direita e pela grande desinformação das populações, os círculos europeus anti-vacina, no geral, e anti-esquerda, em particular, encontram agora um forte aliado nos círculos do poder.

"Se os nossos cidadãos começarem a questionar a segurança de uma vacina, caso não tenha passado por rigorosa análise científica que prove a sua segurança e eficácia, será muito mais difícil vacinar uma proporção suficiente da população”, avisou a Comissão Europeia quando, no Outono passado a Hungria anunciou estar a pensar em comprar vacinas da Rússia.

Agora, nas discussões à volta da emissão de um "passaporte da vacina” anti-Covid-19 pela União Europeia, responsáveis daquele organismo, após darem sinais claros de discriminação em relação às demais regiões do Planeta, pondo em questão a própria autoridade da OMS e da ONU no assunto, chegam a despir a pele de cordeiro com que abordam toda uma série de matérias relativas ao bem-estar e sobrevivência da Humanidade.

Daqui a alguns anos, após esta tempestade passar, cá chegarão os ecos sobre o tratamento reservado nesses países aos refugiados e migrantes provenientes de países e regiões assolados por guerras e por climas de instabilidade que todos ajudaram a instaurar.  Então, restarão os galardões usados para reclamar para si uma posição cómoda e de acordo com os seus ideais.
 Até lá, enquanto uns se digladiam na artena, outros continuam a assistir a este espetáculo triste e a tomar a vacina no conforto dos seus camarotes.

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