Com base no velho provérbio de “quem casa, quer casa”, o anúncio de que, até ao ano 2027, o Executivo vai disponibilizar para a população, em todo o país, um milhão de lotes de terrenos, destinados à autoconstrução dirigida, funciona como uma boa nova para todos os cidadãos desprovidos de tão essencial equipamento social.
No tempo antigo, antes da escrita, a palavra tinha um valor especial. “No princípio era o verbo”. Com a palavra se fazia oratura, poesia, cantigas para responder ao rufar dos tambores e às mensagens dos xingufos. Com a escrita, a palavra deu origem a guerras, mas foi com a palavra escrita que se pararam as guerras.
Quando tinha 18 anos, há muito tempo, portanto, ouvi pela primeira vez uma canção de um intérprete brasileiro que militava, não apenas artisticamente, contra a ditadura militar do seu país, a qual me veio agora à memória, a propósito dos ataques racistas de que o atleta Vinícius Júnior tem sido alvo no campeonato espanhol de futebol e que, depois da jornada do último fim de semana, adquiriram uma verdadeira dimensão global.
O músico de que me recordei foi Geraldo Vandré e a canção tem por título "Para não dizerem que não falei de flores”. Essa associação foi, posso dizê-lo, automática, quando ouvi o treinador do Real Madrid, Carlos Ancelotti, afirmar enfaticamente à repórter que o entrevistava no final do encontro contra o Valência que não queria falar de futebol, mas do grave episódio de racismo a que se tinha acabado de assistir.
Por conseguinte, hoje vou deixar de lado os conflitos geopolíticos globais, o neoliberalismo, a financeirização da economia, o protofascismo tecnológico, a crise da democracia, a ascensão da extrema direita, as perplexidades da esquerda, os dilemas e equívocos das lutas identitárias, o moralismo pós-moderno e vou falar de futebol. Como fazê-lo, entretanto, ignorando um facto insofismável? É que aquilo que se passa um pouco (?) nos estádios de toda a Europa, sobretudo, está, evidentemente, ligado aos fenómenos económicos, tecnológicos, políticos, sociais, culturais e morais que nos últimos quarenta anos estão a mudar o mundo, levando-o ninguém sabe para onde. A frase de Gramsci é certeira: - "O velho mundo está a morrer. O novo tarda em aparecer. E nessa meia luz, surgem os monstros”.
A recente onda de racismo e de outras formas de discriminação a que se assiste no Ocidente Alargado (e que pode ser mimetizado em todas as paragens) tem, quanto a mim, duas causas básicas: por um lado, os mecanismos e processos fundamentais em que assenta a transformação neoliberal da economia (desmantelamento do Estado social, globalização, aprofundamento da exploração neocolonial e substituição acelerada da mão de obra humana pela tecnologia) geram uma série de frustrações sociais, propícias ao surgimento de todos os demónios; por outro lado, a resistência dos vários grupos historicamente discriminados e os relativos sucessos por eles alcançados, seja por mérito individual (caso, entre outros, do desporto) ou colectivo ou, ainda, por concessão tática das forças sociais dominantes, aumenta a frustração em especial dos membros das camadas médias e baixas dos grupos hegemónicos (esse é, diga-se, o perfil dos espectadores-tipo dos estádios de futebol europeus e não só).
Os acontecimentos do estádio do Valência no último fim de semana, assim como vários outros, ocorridos em diferentes contextos, confirmam que a xenofobia e o racismo estão a tomar conta da Europa, o que, reitero, pode generalizar-se a todas as outras regiões do planeta, com consequências dramáticas. Urge, por conseguinte, reagir decididamente contra isso.
Como é óbvio, as causas de fundo de tais acontecimentos levarão tempo a ser superadas, se o forem. A verdade é que o racismo é fruto do comércio transatlântico de escravos e da modernidade capitalista (não há, com efeito, nenhuma relação unívoca entre a escravatura pré-moderna e o racismo). Os ataques racistas aos desportistas negros que actuam nos estádios e recintos europeus, no fundo, são uma manifestação da velha mentalidade escravocrata: os negros servem para trabalhar e/ou distrair os seus "senhores”, não merecendo, pois, qualquer consideração ou respeito, pois não são "humanos” (são "monos”, palavra espanhola para "macaco”), mesmo que tenham salários milionários, como Vinícius Júnior. Superar radicalmente isso – pergunto – não implicará superar o modelo capitalista hegemónico?
De qualquer modo, nenhum indivíduo civilizado tem dúvidas de que há medidas que, no plano imediato, podem e devem ser tomadas para combater o racismo nos estádios. Deixo algumas sugestões: os clubes que permitirem quaisquer actos de cunho racista praticados pelos seus adeptos, atletas ou dirigentes devem ser severamente punidos, perdendo os pontos que tiverem conquistados, pagando multas pesadas, tendo os seus estádios interditados; aqueles que tiverem cometido quaisquer actos racistas devem ser julgados e condenados a prisão; os patrocinadores, caso não o façam voluntariamente, devem ser legalmente proibidos de financiar tais clubes.
Finalmente, confesso, tenho um sonho: ver todos os atletas negros e todos os atletas antirracistas fazerem greve em todas as competições que permitam que factos como os que aconteceram no estádio do Valência se repitam impunemente.
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LoginEstes tempos novos, feitos de segundos, que constroem minutos, antecessores das horas que, umas sobre as outras, originam sucessivamente dias, meses, anos, voam velozes como jamais, numa correria sufocante de sentimentos promotores de injustiças reflectidas em egoísmos.
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