Opinião

Os democratas distraídos

João Melo*

Jornalista e Escritor

Um dado divulgado no passado domingo nos Estados Unidos atesta que as mentiras e falsidades propaladas pela Internet pelos trumpistas em geral diminuíram 70 por cento após o encerramento das contas do ex-presidente do país (o novo, Joe Biden, assume hoje) e dos seus aliados. Pela parte que me cabe, não tenho dúvidas: isso é bom para a democracia americana e um exemplo para as demais democracias.

20/01/2021  Última atualização 08H49
E, no entanto, não faltam, um pouco por todo o lado, aqueles que afirmam, peremptoriamente, que o cancelamento das contas de Trump pelas grandes plataformas de comunicação é um ato de censura. São os democratas distraídos.
A pergunta a fazer é a seguinte: o incitamento ao ódio e à insurreição contra o sistema democrático é mera opinião? A resposta só pode ser uma: não. É crime. Tal como, por exemplo, é crime não apenas assassinar alguém, mas também mandar fazê-lo.

Durante os quatro anos em que esteve à frente dos EUA, DonaldTrump dedicou-se a espalhar mentiras e falsidades, a promover a divisão e a incentivar o ódio entre os americanos. Contou, para isso, com a benevolência não apenas das grandes plataformas tecnológicas, como o Twitter, mas também de poderosos conglomerados convencionais de comunicação, com destaque para o grupo Fox. Tais meios foram, portanto, responsáveis pela alimentação do trumpismo.

Toda a gente sabe que há uma América racista, xenófoba, negacionista e violenta, entre outros. Mas a verdade é que, durante os últimos quatro anos, essa América foi literalmente intoxicada pelo trumpismo e os seus aliados, o que lhe permitiu crescer, ao ponto de sentir-se encorajada, a 6 de janeiro último, a assaltar o símbolo da democracia americana.

De qualquer modo, o Twitter, seguido das restantes plataformas de comunicação digital, só cancelou a conta do a partir de hoje ex-presidente americano depois do ataque ao Capitólio. Ninguém no seu perfeito juízo, penso, tem dúvidas: o que aconteceu no dia 6 de Janeiro de 2021 nos EUA foi uma tentativa de reverter pela força os resultados eleitorais, ou seja, um putsh. No passado domingo, a imprensa local passou novas imagens desse episódio, que mostraram quão mais grave e dramático foi o mesmo relativamente ao que já era sabido.

O discurso de Trump na manhã de 6 de Janeiro incitando os seus aliados a atacarem o Capitólio passou em todas as televisões do mundo. Vários dos assaltantes afirmaram em directo estarem a obedecer à voz de Trump. As responsabilidades deste último são, por isso, inegáveis. Como continuar a afirmar que as suas declarações se enquadram no sagrado direito à liberdade de expressão e que impedir a sua difusão pelos meios de comunicação – que, privados ou não, têm uma responsabilidade pública – é, alegadamente, censura?

Claramente, a comunicação e o jornalismo precisam de repensar-se com urgência. Da sua articulação com a liberdade de expressão até à sua relação com a política e o mercado, a ideologia da objectividade jornalística, que descamba com frequência para o mero "jornalismo declaratório”, o mito das falsas equivalências e a luta pela audiência – os acontecimentos de 6 de Janeiro de 2021 em Washington vão obrigar o sector a uma profunda reflexão. Os americanos já começaram a fazê-la. Logo a mesma chegará a outras sociedades.

No espaço da língua portuguesa, os brasileiros – talvez por terem dentro de casa uma imitação ainda mais rasca de Trump – também estão a dar sinais nessa direcção.
Comentou o escritor António Prata, em artigo saído no Folha de São Paulo no último sábado: - "Ah, a liberdade de expressão! – Desculpem-me os relações públicas do Apocalipse, mas tocar as trombetas que fazem chover enxofre e transformam o mar em sangue não é liberdade de expressão, é assassinato em massa”.
*Jornalista e escritor

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