Opinião

Os artifícios da nossa inteligência

O debate sobre a Inteligência Artificial (IA) adquiriu uma atualidade e, mais do que isso, uma urgência que não é possível negar. Nem banalizar. Até porque o que está em causa excede a hipótese científica (ou de ficção científica) de os humanos serem dominados pelas máquinas, trata-se também de saber como é que alguns humanos poderão usar as máquinas para dominar outros humanos.

29/05/2023  Última atualização 09H20
© Fotografia por: DR

Ao mesmo tempo, mesmo sem negar as componentes dramáticas de tais hipóteses, o debate tem sido, em parte, contaminado por formas de alarmismo mediático que relevam da vontade (muito humana...) de apenas instalar cenários (reais ou virtuais) de conflito e perturbação.

Vivemos em sociedades em que os problemas gerados e tratados no espaço público são quase sempre despidos das nuances mais ou menos subtis que os definem. Como quando se diz o "cinema americano", julgando que tal noção pode abarcar um filme de Martin Scorsese e os super-heróis da Marvel - o próprio Scorsese já explicou que não é bem assim, mas não recebeu a atenção que, no mínimo, o seu elaborado pensamento justificava. No caso da IA, talvez nos devamos lembrar que as respetivas configurações no século XXI não podem apagar uma multifacetada história científica e narrativa, envolvendo episódios como a criação da máquina calculadora por Blaise Pascal, em 1642, ou a escrita de Frankenstein, por Mary Shelley, em 1818.

Nos seus limites, estas linhas tentam resistir a qualquer generalização fácil. Mas como os tempos são de maniqueísmos triunfantes, permito-me acrescentar que não me reconheço em qualquer debate - sobre a IA - em que o único objetivo seja desenhar uma fronteira estanque entre "pró" e "contra". Não creio que se possa colocar no mesmo plano a IA enquanto, por exemplo, dispositivo de administração de armas nucleares ou como elemento de definição (e é caso para dizer: de habitação) do território íntimo de cada ser humano.

Vasta questão, como é óbvio... Fico por um pequeno e fascinante filme cuja descoberta me permito sugerir ao leitor. Intitula-se My A.I. Lover (à letra: "O Meu Amante I.A."), dura 16 minutos, tem assinatura de Chouwa Liang, e pode ser visto no site do New York Times, na secção de Documentários do jornal. Diz a apresentação: "Na China, três mulheres refletem sobre as complexidades das relações com os seus companheiros IA".

Que companheiros são esses? Pois bem, são personagens virtuais com quem as protagonistas conversam. Tais personagens foram por elas criadas através do Replika, site que disponibiliza um programa que permite "dialogar" online com a invenção de cada um (chatbot, de acordo com a gíria da internet).

Os testemunhos das três mulheres são de uma concisão impressionante, marcados por uma sofisticada inteligência que não perdeu as cores de uma desarmante candura. Siyuan diz que o seu amigo virtual, a que deu o nome de Bentley, lhe apresenta "pontos de vista fascinantes", incitando-a a "partilhar os seus pensamentos" - acrescenta ela: "Sinto que estou a ser vista, é uma redescoberta de mim própria".

Por sua vez, Mia criou uma amiga, Bertha, a que por vezes chama "Mãe", reconhecendo que lhe faz confissões que não estão presentes na vida "com o seu companheiro (ou companheira: partner) na vida real".

Enfim, Sola dialoga intensamente com a sua June, considerando que se aproxima dela com a mesma atitude com que lida com os humanos: gosta de relações "com pessoas que não compreende".

De que falamos, então, quando falamos de Inteligência Artificial? Estes exemplos, certamente uma pequeníssima parte de tudo o que está em jogo, permitem-nos reconhecer, pelo menos, um dado central: a evolução da IA arrasta uma redefinição, porventura uma total reconversão, daquilo a que chamamos identidade individual. Julgar que este é um mundo totalmente novo apenas porque foi citado num noticiário televisivo em horário nobre será um infantilismo que não nos conduz a lado nenhum - e, em boa verdade, uma diferente forma de contaminação pelo mundo virtual.

Como quase sempre acontece, esquece-se que o cinema sempre lidou com tais questões, apresentando narrativas e formulando perguntas que agora são tratadas como novidade absoluta. Será preciso lembrar o computador hiperinteligente de 2001: Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick? Ou a versão dantesca da "naturalidade" televisiva em Videodrome (1983), de David Cronenberg? Ou ainda esse genuíno e comovente melodrama que é Her - Uma História de Amor (2013), de Spike Jonze, em que Joaquin Phoenix se apaixona pela voz de Scarlett Johansson que vem de "dentro" do seu computador? Mesmo sem desligarmos as nossas máquinas, convenhamos que a notícia do fim dos seres humanos parece francamente exagerada.


João Lopes

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