Opinião

O último polícia

Soberano Kanyanga

Jornalista

A patrulha, transportada em turismo branco, estava parada na rotunda do Cemitério do Alto das Cruzes e abordava, aleatoriamente, viaturas que vinham do Largo do Ambiente e do Miramar em direcção ao Kinaxixe.

01/09/2024  Última atualização 09H55
© Fotografia por: DR
Saído cansado do trabalho, às dezanove e vinte de uma semana prenhe de pilhas de papéis para despachar, reuniões algo intermináveis e imprevistos ao longo da jornada, apenas a casa, a filha derradeira e o netinho me vinham à cabeça.

A habitual saudação "boa noite, papy" e "boa noite, avô, me trouxeste o quê", à chegada, têm sido o bálsamo para aliviar toda a tortura do dia-a-dia de um meio-operário e meio-intelectual de gabinete.

Usando um carro de idade avançada, sem mais força suficiente para a transpor a acelerador leve a rampa do Intercontinental e fazer a curva à direita, foi, exactamente, ainda a terminar de "escrever" o ângulo recto que o polícia se colocou à frente, fazendo-me sinal para parar e estacionar.

_ É o quê então? Fiz o quê ou o quê que devia fazer e não fiz? - Caiu-me um céu de interrogações ditas em surdina.

À diante de mim estavam já duas outras viaturas abordadas, sendo que uma delas tinha a porta aberta, vendo-se a perna do condutor pousada sobre o pavimento, enquanto um elemento de farda azul, caki, lia os documentos a frente da viatura que tinha os faróis à meia luz.

Meio aborrecido, todavia obediente, estacionei entre o carro branco da polícia e o que fora abordado antes de mim.

Como sempre, apressei-me em baixar o vidro e procurei pelo interruptor da lâmpada que acendi às pressas, antes que o homem, alto, 1,76 ou mais, pele escura e massa muscular a apontar-lhe uns 85 ou 90 quilogramas, me dirigisse aquelas palavras de "dá cá isso, mostra lá aquilo, por que não tem aquil'outro?".

O homem abeirou-se de mim, sem pressa, mas também não se fazendo demorar. Controlei-lhe os passos, os gestos e até as ideias e, antes mesmo de me dirigir a saudação, levei a mão ao casaco e retirei a carteira da algibeira que ficou à mostra, esperando que me pedisse os documentos.

_ Boa noite, meu director!

_ Boa noite, senhor agente! _ respondi-lhe meio desconfiado.

Antes, levei os olhos aos ombros dele a tentar descobrir o grau da patente que não tinha. Tratei-o apenas por "senhor agente" o que não é dislate.

_ caro condutor, desculpe a abordagem. Vejo que está com a carteira na mão. Não precisarei de lhe pedir os documentos. Estamos a fazer uma abordagem preventiva e pedagógica. Sabe que há muita delinquência e não sabemos quem anda nos carros, se são pessoas em segurança, ou raptadas. Normalmente, fazemos revistas dos carros.

Enquanto se explicava, eu transformava a "raiva" do impacto inicial em cordialidade. Afinal, fora uma abordagem inesperada e primeira naquela hora e local de passagem diária, pelo menos de segunda a sexta-feira de todos os meses que já somavam dois anos e tal.

Mal o homem terminou de pronunciar a última palavra do discurso explicativo, baixei os vidros traseiros e aumentei a iluminação interior para que visse que não havia nada mais para além do vácuo e da minha vida, mas ele, diligente e mostrando que é bem-educado, retorquiu.

_ Também não precisarei de revistar a sua viatura. Muitos não gostam, por isso é que lhe estou a explicar. Aliás, para se revistar tem de haver ou mandado ou indícios que nos levem a desconfiar de algo e cumprir com esse procedimento. _ Explicou, deixando-me mais tranquilo e feliz também.

_ Afinal, ainda temos bons polícias. O senhor é muito polido e cortês. Muito obrigado! Polícias como você podem até parar-me cinco vezes no meu trajecto do trabalho a Viana.  Pena é que são poucos! _Brinquei.

O homem fez uma continência e o imediato sinal de que eu estava liberado.

_Obrigado, senhor polícia! Você transformou positivamente a minha noite! _ Disse-lhe a sair.

E como não é todos os dias que assim acontece, deixo este testemunho.

A 11.07.2024 fui abordado cortês e cordialmente por um agente da polícia. Afinal, ainda resta um que age como a sociedade espera que todos se comportem.

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