Opinião

O tempo vestido de branco

Manuel Rui

Escritor

Eu acabava de sair de uma cadeira, da cadeira que eu menos gosto. A cadeira de dentista, marcado pelo tempo em que meu pai me levava ao dentista em Nova Lisboa e me arrancavam dentes sem anestesia. No entanto, a cadeira, disse-me um estomatologista, é democrata. O quê? Sim. Deixa-lhe abrir a boca…

14/09/2023  Última atualização 06H10
Saí. E de dentro do carro vi a rua pejada de manchas brancas. Pareciam aqueles pássaros do mar, dimbondos. Porque era um mar de crianças de bata e mochila. No meu tempo não havia mochilas. A minha mãe fez à mão, de agulha e linha, o pano era cáqui castanho e ficou a minha sacola de pendurar atravessada. A bata também costurou e como o dinheiro não era muito o pano foi de sacos de açúcar do Cassequel.

Afinal a Dipanda está a continuar aqui. Tem os que vão continuar. Mas tem os que vão entrar na primeira cabunga. No meu tempo era a primeira atrasada e depois a primeira adiantada. Havia dois instrumentos didáticos: a vara de bambu e a palmatória de "cinco olhos.”

Desde a nossa independência quantas escolas foram feitas e quantos alunos passaram por elas? É um bom passa tempo para os que só dizem mal e…às vezes têm duas nacionalidades e os filhos a estudar na Melói, com casa própria…tudo com dinheiro que vai daqui pelas formas mais diversas…são heróis do mar!

Mas reparem nesta imagem a forrar Angola de batas brancas e mochilas, algumas com rodas. Os mais pequenos vão acompanhados por familiares adolescentes.

O filho da empregada gatinhou, começou a andar e a falar aqui. Depois arranjei-lhe uma cadeira com escrivaninha como essas dos congressos. Foi gastando papel. Desenhava abstracto. Depois letras e números. Outro dia comprou-se o material escolar, os preços variam, quanto mais fora da cidade menos caro. Aí, a mãe equipou o meu amigo e veio aqui vai dar de bata e mochila. Foi um grande dia, almoçou comigo com elegância. Dei-lhe quinhentos kwanzas para guardar na mochila e prometi-lhe um telemóvel daqueles que só recebem.

E fico a pensar que estas meninas e meninos saíram de ventres de mulheres angolanas. Os pilares desde que o homem existe com consciência de ser e estar. Os pilares que todos os dias fazem renascer a esperança quando há um novo parto. Também ir à escola é renascer. Deviam gravar depoimentos dos caloiros. E das professoras e dos professores. Como ensinam. Se batem ou não batem. Se acabou a sórdida e criminosa gasosa. Se há actividades extra escolares como canto, música, ginástica, teatro e desportos. Se há merenda. Ó donos de bananais! Quem dá uns cachos de bananas para as escolas? Ó donos de padarias! Quem dá pão para as escolas?

Antigamente que quer dizer anteontem, as crianças levavam para a escola latas vazias de leite. Sentavam-se nas latas. Não havia carteiras. O país vivia uma guerra burra. Até se fazia pão burro.

Quantos que estudaram sentados em latas hoje são doutores? E quantos não terão guardado as latas? Seria bom fazermos um pequeno museu das latas com as paredes enfeitadas de fotografias dos que estudaram sentados nas latas, artes plásticas e música. Quem aceita o desafio? A liberdade começa na escola. E os livros escolares? Isso é outra conversa que não conta para este dia de festa. Estou esperando mais uma semana para o meu amigo que eu trato por colega me contar como foi esse primeiro dia de "serviço.”

Escrevi, no hino da alfabetização (se calhar já deitaram fora para desmemória passada): "só é livre quem estuda e ensina para aprender…”

Também já dei aulas. Paguei o meu sétimo ano dando explicações. Em Portugal dei noções de Comércio e na Suécia dirigi um grau académico de literaturas africanas em língua portuguesa. Sempre que ensinei aprendi. Ainda fui director da Faculdade de Letras do Lubango para, criminalmente, a matar e fazer o ISCED que podia ser feito sem matar as letras Foi um aprendizado surreal pela interferência do governador sempre bêbedo ao ponto de eu lhe ter torcido o braço e levá-lo para a cama. Eternizei-o dando o nome àquele pai violento do "Quem me dera ser onda.”

A escola pública devia ser absolutamente gratuita, incluindo o material escolar, a merenda e a saúde. O futuro é agora. Amanhã é ontem.

Também seria interessante inventarmos um jornal para onde a miudagem mandaria os seus trabalhos.

Todos os anos, os melhores alunos deveriam ter direito a fazerem uma pequena viagem de avião. Para além disso, as excursões interprovinciais deveriam começar a ser programadas já agora.

Tenho saudades da minha escola 33 em Nova Lisboa, perto do sapalalo, o único prédio com primeiro andar e da Rua do Comércio onde meu pai teve a primeira livraria da cidade.

Tenho saudades e nostalgia. Precisava vestir uma bata e uma mochila com uma maçaroca assada lá dentro misturada com a ardósia, o livro, o caderno e o lápis.

Só pelas ruas se pintarem de branco valeu a pena o 11 de Novembro!

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