Cultura

O que se extrai dos livros: mel ou veneno?

José Luís Mendonça

Na nossa conversa de irmãos, embora separados por três países, Japone socorreu-se de uma citação do grande filósofo alemão, Frederico Nietzsche: “os leitores extraem dos livros, consoante o seu carácter, a exemplo da abelha ou da aranha que, do suco das flores retiram, uma o mel, a outra o veneno”, para me perguntar o que eu tinha a dizer dos nossos leitores, quem são e se existem, e o que tiram dos nossos livros.

07/03/2021  Última atualização 14H07
© Fotografia por: DR
Ora, disse-lhe eu, só se pode falar com propriedade dos leitores, com base num inquérito. Na falta deste, pode-se aferir sobre os leitores, analisando o sistema de ensino, a realidade académica, principalmente na disciplina de Língua Portuguesa e, também, analisando o discurso da nossa imprensa. O primeiro, o sistema de ensino, diz-nos que já pouca juventude lê. O que se escreve nas nossas universidades, salvo raras excepções, é lastimável. Há alunos da universidade que nem sabem copiar certas palavras já escritas nos enunciados ou no quadro da sala de aula.

Analisando o segundo, os média, verificamos que não existe o que há em Portugal, por exemplo, que é um conjunto de jornalistas especializados na crítica dos livros, ainda que uma simples resenha ou resumo. A Leya, de Portugal, antes de lançar uma obra, envia uns 50 exemplares para toda a imprensa, para jornalistas que geralmente fazem as tais resenhas ou análises, mesmo que não muito profundas (estas cabem aos académicos). Ora, estes jornalistas estão sempre a ler as obras que saem. Nós não temos este tipo de cidadãos. Somos paupérrimos, neste domínio. Em Angola e Moçambique lê-se muito pouco. Por isso, é difícil dizer o que os leitores tiram dos nossos livros. Uma solução para este mal, é reformatar os nossos professores, levando-os a ler, para depois serem capazes de transmitir esse gosto pela leitura aos alunos.

Uma vez, em Maputo, eu disse que os jovens moçambicanos não estavam a entender a poesia de José Craveirinha. Japone perguntou-me se eu me estava a referir ao nativismo, à questão de exaltar a terra e se os novos escritores angolanos entendem os seus antecessores.
O que eu quis dizer, respondi-lhe, é que grande parte dos jovens moçambicanos não lêem José Craveirinha. Isso nota-se na poesia que escrevem. O mesmo se passa em Angola. Quase nenhum jovem escritor da novíssima geração analisa profundamente a poesia de Cordeiro da Mata, Agostinho Neto, ou de Arlindo Barbeitos. Em resultado dessa lacuna, o que escrevem, em poesia, é oco como um boneco de palha. Não tem vida africana, além de ser extremamente livresco.

É só palavras e quase todas iguais, tudo muito abstracto. José Craveirinha, Agostinho Neto e Arlindo Barbeitos, ou Mário António ensinaram-nos que a poesia deve expressar o ritmo-emoção do homem africano e da terra africana. Aliás, os poetas portugueses, belgas, suecos e americanos ou russos, fazem isso mesmo. Os grandes poetas trazem para a poesia a alma dos seus povos. Contudo, noto que há alguns poetas da nova geração, tanto em Angola como em Moçambique a fazer um esforço de telurização da poesia. É digno de nota esse esforço. Por exemplo, em Angola, o Kardo Bestilo, procura esse caminho do retorno às origens. Precisam é de ler muito mais. Falta-lhes o arcaboiço da Cultura Literária e da Cultura Geral. Camões sabia tanto de Geografia e de História e de Filosofia e Religiões, que era uma coisa espantosa.

Como dialogar?
Depois conversamos sobre as formas como o escritor mais velho estabelece o diálogo entre as gerações na literatura angolana, e se é que existe esse diálogo.
O diálogo é exíguo, disse-lhe eu, porque as jovens gerações furtam-se a esse diálogo. Furtam-se como? Não indo beber às fontes dos precursores. E como é que não vão? Vou dar um exemplo. Se um jovem escritor moçambicano  quiser estabelecer um diálogo com José Craveirinha, como é que vai realizar esse diálogo? Craveirinha já morreu. Por isso, a única forma de diálogo possível é o jovem adquirir a obra de Craveirinha e FALAR com Craveirinha, através de Karingana Wa Karingana, ou Xigubo. O mesmo se passa com os escritores vivos. Um escritor, como eu, que trabalha arduamente, não pode ficar o dia inteiro a receber jovens escritores para falar com eles.

Os jovens escritores devem falar comigo, lendo os meus livros, ou indo às palestras que profiro em vários fóruns. Eventualmente, recebo jovens na minha casa ou no gabinete, mas o número dos que me vêm procurar é enorme e já não tenho tempo para analisar as suas obras. É materialmente impossível. E a maior decepção que colho é que as recomendações que dou aos jovens para ler certas obras em profundidade não são acatadas. Os jovens continuam a vir com a mesma obra incipiente meio corrigida, em vez de ler bastante...
Actualmente, os nossos livros são editados em tiragens de 400 ou mil exemplares. Para um país de 30 milhões de habitantes, quem nos lê? E a venda desses livros demora bastante. Por isso tenho aconselhado os jovens escritores a superarem os grandes mestres, antes de lançarem obra no mercado, porque o mercado, a nível mundial, está saturadíssimo. O espírito e um homem culto é mais democrata do que um homem sem conhecimento livresco. Para isso, é preciso dar-lhes a beber palavras dos livros.

Poesia ou prosa
Há sempre um livro que mudou as nossas vidas, um livro que nos levou a querer escrever, ou mesmo um livro que gostaríamos que fôssemos nós a escrever. Japone quis saber qual era o meu livro.
O livro que mudou a minha vida, respondi-lhe, que eu gostaria de ter escrito, é a Bíblia Sagrada, mas pela sua beleza literária, a sua arrumação formal, o seu imaginário criador. Li-a aos nove anos e fiquei deslumbrado. Depois li outras obras, como Os Nus e os Mortos, de Norman Mailler, Karingana Wa Karingana, de Craveirinha, Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Marquez, e tantos outros, que me marcaram profundamente. Há um livro em particular, que é Zorba, o Grego, que me deixou uma marca tão profunda que um dia quero morrer de pé, a ver o mar de uma janela, como morreu o marinheiro Zorba.

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