Reportagem

O papel dos países do Médio Oriente na instabilidade em África

Faustino Henrique

Jornalista

No Sudão, os esforços da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos para moldar a transição política após a deposição de Omar al-Bashir, em Abril de 2019, conduziram a sucessos parciais, mas também a dificuldades significativas. Embora tenham conseguido afastar temporariamente os rivais Qatar, Turquia e Irão, a sua influência ficou sob um escrutínio mais significativo, tanto da população sudanesa como da comunidade internacional.

25/03/2024  Última atualização 09H50
General Abdel Fattah Al Burhan, Presidente do Sudão (à esquerda) e o ex-vice-Presidente e agora rival, general Daglo © Fotografia por: DR
Os massacres de Junho de 2019, que ocorreram poucos dias depois de o general Mohamed Hamdan Daglo ou "Hemedti”, o vice-chefe do Conselho Militar de Transição, ter visitado Riad, Cairo e Abu Dhabi, tiveram um custo de reputação especialmente grave para os países do Golfo Pérsico. Em Abril de 2021, Cartum restabeleceu as relações diplomáticas com o Qatar, apesar das pressões dos Emirados Árabes Unidos e da Arábia Saudita para não o fazer.

O apoio financeiro dos Emirados Árabes Unidos ao Sudão, por exemplo, não impediu o general Abdel Fattah Al Burhan, Presidente do Sudão, de restabelecer os laços diplomáticos com o Qatar, em Maio do mesmo ano, oferecendo a Doha um papel de mediação na crise. Esse passo das autoridades sudanesas teve um custo elevado, na medida em que a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos não apenas viram, naquelas diligências diplomáticas, uma afronta, mas, igualmente, uma oportunidade para passar a apoiar o outro lado do conflito e intensificar a rivalidade com o bloco formado pela Turquia, Qatar e o Irão.

Intensa competição

A obra "Os países do Golfo reconsideram o seu envolvimento no Corno de África”, de Camille Lons, publicada em Janeiro de 2021, refere que "a Arábia Saudita e os EAU, por um lado, e o Qatar e a Turquia, por outro, têm competido intensamente para contrariar a influência um do outro, projectando as suas rivalidades na política do Corno de África”.

No conflito sudânes, que opõe o Exército liderado pelo Presidente de facto do país, general Abdel Fattah Al Burhan, ao seu ex-vice, o general "Hemedti”, mais uma vez evidenciaram-se os lados que cada um dos Estados e monarquias do Médio Oriente apoia, com todas as consequências para a sub-região.

Em Novembro do ano passado, o general Yassir al-Atta, afecto ao Governo sudanês, citado pela agência britânica Reuters,  acusou os Emirados Árabes Unidos de fornecer armas aos paramilitares das chamadas "Forças de Apoio Rápido” (RSF), uma espécie de "exército dentro do Exército”, liderado pelo general Mohamed Hamdan Daglo, mais conhecido por Hemedti.

"Temos informações da inteligência, da inteligência militar e do circuito diplomático de que os Emirados Árabes Unidos enviam aviões para apoiar os Janjaweed", disse o general Yassir al-Atta, num discurso dirigido aos membros do Serviço Geral de Inteligência, num vídeo divulgado nas redes sociais, referindo-se aos antecessores das RSF, as milícias Janjaweed.

Interferência e rivalidade

Para alguns "Think Tanks”, medias e analistas, o Sudão, como de resto grande parte dos países do Norte de África e, com maior particularidade, os do Corno de África, que enfrentam conflitos armados internos, estão a ser vítimas da interferência e rivalidade entre os países e monarquias do Médio Oriente.

De um lado, estão a Arábia Saudita à cabeça, os Emirados Árabes Unidos, Barhein, Egipto e, do outro, Turquia, Irão e Qatar.

Em Novembro de 2018, sob o título "Os Emirados Árabes Unidos no Corno de África”, a International Crisis Group escrevia que "a Arábia Saudita há muito vê a costa africana do Mar Vermelho como parte do seu perímetro de segurança”.

"Em Janeiro de 2020, a Arábia Saudita fundou o Conselho dos Países do Mar Vermelho e do Golfo de Aden, mas a existência desta plataforma multilateral ainda não ajudou a superar as divisões políticas e os cálculos de soma zero a curto prazo que muitas vezes moldaram a dinâmica regional”, acrescentou a publicação.

A International Crisis Group referiu ainda que a disputa entre os países do Médio Oriente, em particular os do Golfo Pérsico, tem degenerado em instabilidade em muitos países africanos, sendo o Sudão a ponta do Iceberg que, em condições normais, deveria levar a União Africana, os blocos regionais do Norte e Corno de África, além dos países individualmente, a denunciar o actual curso de interferência, que está a ter custos elevados em muitos países.

O Qatar e a Turquia, segundo a publicação, procuraram influência no Sudão e na Somália, especialmente entre os islamitas. Israel também tem procurado, discretamente, um papel determinante na região. Mas o actor principal são os Emirados Árabes Unidos. Sendo um Estado pequeno e rico, utiliza representantes para projectar poder e apoia separatistas em desrespeito às normas internacionais. Os "clientes” de Abu Dhabi incluem intervenientes-chave na Líbia e no Tchad e está a posicionar-se como um rei no Corno de África. Os Emirados Árabes Unidos apoiam e armam a Etiópia. Já controla muitos portos na região – incluindo, suspeita-se, o proposto porto e base naval etíope nas terras arrendadas à Somalilândia.

Ainda assim, refere a publicação, Abu Dhabi ainda não clarificou os seus objectivos estratégicos para o Mar Vermelho e o Corno de África. Mas tudo indica que, nessa sua investida, têm passe livre em Washington. Pois, só recentemente os EUA começaram a criticar o aventureirismo de Abu Dhabi no Sudão, apelando ao desarmamento das Forças de Apoio Rápido naquele país.

Se de um lado, os Emirados Árabes Unidos são acusados de alegadamente apoiar as RSF, por outro, há informações recentes segundo as quais o Irão canaliza, igualmente, material letal ao Exército do Sudão, às ordens do general Abdel Fattah Al Burhan, o "Presidente de facto do Sudão”.

Envio de tropas

Os adversários da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos – Turquia, Irão e Qatar – também procuram dar sequência às mesmas diligências de exploração no Corno de África, o que acaba por agudizar a situação em países como a Líbia, onde a Turquia decidiu, em tempos, enviar tropas, na Somália, onde enviou forças navais para alegadamente "defender as águas somalis”, do Sudão, que se apresenta como o centro nevrálgico da competição entre aqueles países.

Quando contactado pela Reuters para rebater as acusações feitas pelo general Atta, um alto funcionário da diplomacia dos EAU alegou que o país "pediu, insistentemente, a desescalada, um cessar-fogo e o início do diálogo" no Sudão. Disse ainda que o Emirado "prestou apoio para aliviar a crise humanitária” no Sudão e nos países vizinhos, nomeadamente através de um hospital de campanha estabelecido na cidade tchadiana de Amdjarass, em Julho.

O facto de países africanos, nomeadamente o Tchad, Uganda e a República Centro-Africano (RCA), terem servido como plataformas de envio de armas para desestabilizar o Sudão, assume contornos que deviam levar o continente berço da Humanidade a reflectir sobre a forma como está a ser usado, com todas as consequências que advêm.

A guerra no Sudão

Há cerca de um ano, quando o país se preparava para elaborar um cronograma de transição, com base no diálogo e concertação que envolveria os militares, liderados pelo Presidente e Vice-Presidente, Abdel Fattah Al Burhan e Mohamed Hamdan Daglo, respectivamente, e os partidos políticos, os dois primeiros desentenderam-se, ao ponto de darem início a um conflito armado de grandes proporções.

No dia 15 de Abril de 2023, as Forças de Apoio Rápido entraram em confronto com  o Exército sudanês, em Cartum. O conflito teve origem na disputa por poder dos dois generais que, até então, comandavam o Sudão, embora tenha, inicialmente, começado com divergências relativas à integração das milícias nas Forças Armadas. O Presidente do Conselho de Transição, Abdel Fattah Al Burhan, pretendia uma integração faseada, enquanto o vice-presidente, Mohamed Hamdan Daglo, discordava, razão pela qual, acrescentada às interferências externas, acabaram por fazer eclodir o conflito. Mais tarde, a luta se espalhou por todo o país, causando centenas de mortos e milhares de feridos, na sua maioria civis.

RSF, uma herança de Omar al Bashir

 As Forças de Apoio Rápido desenvolveram-se a partir das milícias Janjaweed e são compostas principalmente pelos membros dessas milícias, que lutaram em nome do governo sudanês durante a Guerra de Darfur, matando e estuprando civis e incendiando casas.

Segundo  a estação televisiva Aljazeera, "a força foi formada oficialmente em Agosto de 2013, sob o comando do Serviço Nacional de Inteligência e Segurança, após uma reestruturação e reactivação das milícias Janjaweed, para combater grupos rebeldes na região de Darfur”.

Dados apontam que fazem parte das referidas forças paramilitares perto de 100 mil homens que, na era do Presidente Omar Al Bashir, deposto em 2019, passaram a constituir "um Exército dentro do Exército”, servindo de contrapoder para evitar um eventual golpe de Estado. Mas essa visão do ex-Presidente Omar al Bashir veio provar-se ser um verdadeiro "cavalo de Tróia”, na medida em que os fins de salvaguarda do regime, para os quais serviriam as RSF, acabaram por servir para derrubá-lo, em 2019.

 Mecanismo Alargado

O Mecanismo Alargado sobre a Crise do Sudão foi estabelecido na Sessão Especial Ministerial sobre o Sudão, convocada pelo presidente da Comissão da UA, Moussa Faki Mahamat, a 20 de Abril de 2023, para coordenar e harmonizar os esforços regionais, continentais e internacionais em apoio a uma resolução pacífica do conflito, para acabar com o sofrimento do povo sudanês. A segunda reunião do Mecanismo Alargado foi realizada em Adis Abeba, a 2 de Maio de 2023.


Deslocados enfrentam uma grave escassez de alimentos e não têm acesso à água potável


Crise humanitária afecta 25 milhões de pessoas

Segundo um grupo de especialistas dos Direitos Humanos das Nações Unidas, mais de 25 milhões de pessoas, incluindo 14 milhões de crianças, enfrentam uma crise humanitária urgente no Sudão, desencadeada pela guerra entre as Forças Armadas Sudanesas e as Forças de Apoio Rápido, desde Abril de 2023.

Os peritos da ONU apontaram para a extrema necessidade de assistência, salientando que cerca de 3 milhões de crianças com menos de cinco anos sofrem de desnutrição aguda.

Além disso, o país vive uma situação de deslocamento em massa sem precedentes, com aproximadamente 9,05 milhões de pessoas deslocadas internamente, representando cerca de 13% de todas as IDP (pessoas deslocadas internamente, sigla em Inglês) globalmente.

Com quase 4 milhões de crianças deslocadas, o país também enfrenta a maior crise de deslocamento de crianças do mundo. Mais de 170 escolas em todo o país transformaram-se em abrigos de emergência para pessoas deslocadas internamente.

Segundo os peritos, 20 milhões de crianças sudanesas não estão a frequentar a escola e estão expostas ao risco de venda, abuso sexual, exploração, separação familiar, sequestro, tráfico e recrutamento e uso por grupos armados.

A maioria dos deslocados internos - 67% - reside em comunidades anfitriãs e nos chamados "locais de reunião", incluindo escolas, assentamentos informais ou áreas abertas e prédios abandonados, e vive em condições terríveis com apoio limitado de organizações de ajuda internacional.

Os especialistas afirmam que eles enfrentam uma grave escassez de alimentos e não têm acesso à água potável, assistência médica, suprimentos médicos essenciais e saneamento básico. A superlotação resultou na rápida disseminação de doenças.

Cerca de 10 mil casos suspeitos de cólera, incluindo 275 mortes associadas, foram relatados em todo o Sudão, inclusive em locais onde os deslocados internos se refugiaram.

Fome e doenças

De acordo com os dados do grupo de especialistas, cerca de 17,7 milhões de sudaneses, 37% da população, enfrentam fome aguda devido ao conflito, exacerbando tensões entre comunidades.

A escassez de recursos, ajuda humanitária limitada e presença militar aumentam riscos, incluindo violência direccionada, restrições de movimento e abusos generalizados, incluindo violência sexual. A situação é agravada por ataques étnicos e políticos.

O acesso à saúde continua limitado, com 70 a 80% dos hospitais do país supostamente inoperantes devido à deterioração da situação de segurança ou à falta de centros médicos em áreas de deslocamento.

As vítimas de violência baseada no género não conseguem ter acesso à assistência e aos cuidados de que necessitam, devido a uma combinação de insegurança, falta de assistência humanitária suficiente e falta de acesso dos agentes humanitários às pessoas afectadas pelo conflito.

Na semana passada, a directora de Operações e Defesa no Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários das Nações Unidas, Edem Wosornu, alertou o Conselho de Segurança que, nas próximas semanas e meses, 222 mil crianças podem morrer de desnutrição no Sudão.

A responsável lembrou que o conflito no país, que em breve completa um ano, está a causar uma crise alimentar, que já atinge milhões de pessoas. Por isso, pediu uma cessação urgente dos combates para evitar que uma geração inteira seja destruída e a região mais ampla seja desestabilizada.

  Outras crises com envolvimento externo

A Arábia Saudita redescobriu os seus interesses estratégicos em África, pouco depois da chamada "Primavera Árabe”, em 2011, sobretudo com receios  de expansão das zonas de influência do maior rival regional, o Irão.  No trabalho "África Subsaariana: um teatro para as lutas pelo poder no Médio Oriente”, publicado em Setembro de 2020,  Jens Heibach refere que o engajamento das monarquias do Golfo Pérsico, embora tenha como escopo o desenvolvimento das relações económicas, financeiras e comerciais, envolve, também, a expansão da fé islâmica que, por sua vez, está na origem das dinâmicas políticas e militares por que passam muitos países. "Além de serem mercados de exportação para petróleo bruto e produtos de hidrocarbonetos, a segurança alimentar foi outra razão pela qual alguns estados africanos permaneceram na agenda saudita. Em 2007, o reino — através do Fundo de Desenvolvimento Agrícola — lançou a Iniciativa King Abdallah para Investimentos Agrícolas.  Nessa altura, os investimentos agrícolas sauditas já tinham ido para a Etiópia, Quénia, Mali, Níger, Senegal, África do Sul, Sudão, Tanzânia e Uganda. Embora Riade tenha investido grandes somas na construção de infra-estruturas educativas, por exemplo, na África Ocidental, bem como na formação de académicos africanos no reino, o factor saudita é apenas um entre muitos responsáveis pelo aumento do jihadismo local”, escreve a investigadora.

Queda de Kadhafi

Após a queda do regime de Muammar Kadhafi, em 2011, o controle político e militar na Líbia entrou em colapso. A luta entre diferentes facções se intensificou em 2014, contexto que motivou o grupo formado, por um lado pela Arábia Saudita, EAU e, por outro, Turquia, Qatar e Irão a estenderem além fronteiras as suas rivalidades. 

A campanha foi marcada por muitas implicações estrangeiras, incluindo o apoio da Turquia ao Governo do Acordo Nacional e o apoio dos Emirados Árabes Unidos, do Egipto, da Rússia, da Arábia Saudita ao Exército Nacional Líbio. O embargo de armas imposto pela ONU é violado abertamente e muitos mercenários sírios, russos e sudaneses estão envolvidos nos combates. A intervenção da Turquia na guerra, em Janeiro de 2020, com o envio de drones e milhares de mercenários do Exército Nacional Sírio, no entanto, dava  a vantagem ao Governo de Trípoli. Em Junho de 2020, as forças do Exército Nacional Líbio foram completamente expulsas dos arredores de Trípoli.

Riad passou a ver África como uma região de valor estratégico. O reino saudita procura usar o seu potencial para uma ofensiva contra concorrentes, incluindo a Turquia, mas, sobretudo, o Irão. Esta visão estratégica também não se restringe à região do Mar Vermelho. A Arábia Saudita apoiou, no passado, financeiramente a Força Militar Conjunta do Sahel, num desdobramento da coligação mandatada pelo G5 para combater o terrorismo, o crime organizado e o tráfico de seres humanos no Burkina Faso, Mali, Mauritânia, Níger e Tchad. Embora com o apoio da União Africana, o fim último desta empreitada visava combater a influência do Irão. Outros exemplos de competividade envolvendo os dois blocos mencionados, com consequências em África, são a Nigéria, onde Riad tem tentado enfraquecer o Movimento Islâmico financiado por Teerão,  no Senegal, onde o reino aumentou o financiamento para mesquitas geridas por salafistas, para contrariar a influência das instituições educativas financiadas pelo Irão,  e na África do Sul, onde Riad — tal como na Nigéria e no Senegal — investiu pesadamente na economia do país para perturbar as relações entre a África do Sul e o Irão.

Os países africanos precisam de despertar do actual quadro de competição entre os países e monarquias do Médio Oriente, que transformam regiões de África em palco das suas rivalidades, fomentando conflitos armados.

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