Opinião

O ensino, de novo!

Caetano Júnior

Jornalista

A discussão à volta da qualidade da formação que se oferece em Angola reemergiu, nos dias mais recentes. Filipe Zau, Ph.D em Ciências da Educação, logo, conhecedor dos meandros da relação ensino-aprendizagem, fez reacender a abordagem, com uma avaliação crítica contundente. Para uns, realista; para outros, excessiva.

23/05/2021  Última atualização 08H46
 Há ainda quem a tome como politicamente incorrecta. O especialista resumiu o quadro do processo no país com a nota segundo a qual há professores que não sabem ler. Filipe Zau tem credenciais que o atestam como pessoa abalizada no assunto. Por isso, sabe bem do que diz.

O debate que tem gravitado à volta da qualidade do ensino em Angola não é novo, assim como é quase geral o reconhecimento de que já é mais do que tempo de ser repensada. A ideia que se faz do processo de ensino-aprendizagem é-lhe desfavorável - para usar um vocábulo amistoso - e se reflecte na falta de proficiência de técnicos, na fraca competência escrita - e às vezes verbal -, no deficiente domínio dos elementos da profissão, enfim, até no défice de compreensão de enunciados elementares, de informação básica.

É verdade que o défice que se conhece na qualidade geral do ensino não remete o País para um cenário de semi-analfabetismo, como é óbvio, mas pode destapar, em muitos casos, alguns focos de iliteracia, que se dá quando alguém tem dificuldades para compreender e produzir textos simples; escritos primários. Sendo consenso que a Língua Portuguesa é a base do nosso conhecimento, é a ferramenta fulcral na aprendizagem, na passagem da informação, vê o processo de formação ferido quem não a traz sob domínio, porque tem fortemente abalada a compreensão.

Somos um país de fortes raízes culturais, plurilíngue, com os falares nacionais a dominarem alguns contextos de comunicação e a influenciarem a aprendizagem, a compreensão e a reprodução de enunciados em Português, a Língua Oficial. Uma situação que se conhece até do período anterior à Independência, mas que ainda hoje se reflecte na absorção dos elementos para a descodificação da principal língua de interacção. E foi nesse cenário que Angola empreendeu a formação de quadros, nos idos anos 1980, que deu o mote para a massificação do aprendizado. Talvez tenha começado nos anos de Nação recém-nascida o acumular de situações que agora afectam a qualidade do ensino. 


A corrida ao ensino-aprendizagem, embora fosse incontornável, para dar vazão à necessidade de erguer o País, ignorou pressupostos importantes da cadeia de formação - e dificilmente seria diferente -, num contexto em que quase inexistiam manuais e outros materiais de apoio ligados ao conhecimento teórico, referentes à Pedagogia e a áreas que lhes estão adjacentes, e formadores de reconhecida competência profissional. Abriu-se, pois, o ensino a quem precisasse de emprego; foi dar aulas quem procurava trabalho, independentemente de reunir os requisitos exigidos a um professor. Pessoas voluntariam-se para ensinar.

É, entretanto, nos anos mais recentes que o cenário se deteriora. A corrida ao ensino passou a fazer-se para a universidade, para a obtenção da licenciatura. Assiste-se até aos nossos dias à massificação do ensino superior, feita também por quem o vê como espaço não para a obtenção de saberes, de informação e conhecimento, mas apenas para a aquisição do diploma. Para muitos, vale simplesmente o chamado "canudo”, que lhes confere estatuto - são chamados "doutor” - e lhes abre a possibilidade de ascensão profissional e melhoria do salário.

Muitas destas instituições que a cada ano anunciam dezenas de graduados são, entretanto, providas por quadros cuja competência é questionada todos os dias. Fica difícil compreender, por exemplo, que uma unidade tenha, no corpo docente, tantos mestres, mas a qualidade do ensino seja a que todos sabemos. Também surpreende o conhecimento segundo o qual o país reúne mais de mil cursos superiores, distribuídos em 29 instituições públicas e 64 privadas. Portanto, falta juntar ao leque os espaços que funcionam à margem da lei. Os números talvez nos ajudem a perceber por que avultam queixas em torno do nível de recém-formados. Decididamente, Angola não tem estrutura para, com a qualidade que se impõe, suportar nem um tão elevado número de cursos, nem uma tão alta quantidade de faculdades ou institutos superiores.

A cada início de ano lectivo, são identificadas centenas de certificados e diplomas falsos. Uma realidade que só comprova a teoria segundo a qual a aquisição de conhecimentos é, amiúde, desprezada e que, para muitos, a aposta é ganhar reconhecimento público e beneficiar do estatuto de quadro superior. Eis também a razão para que recém-graduados não encontrem saída profissional; não consigam emprego, num contexto de mercado que se revela cada vez mais exigente.
O ensino-aprendizagem no País precisa, pois, de uma profunda reforma estrutural, que lhe retire vícios, reveja currículos que sustentam a formação, condecore a pesquisa e a investigação, reavalie critérios para a docência, redireccione a agregação pedagógica e repense a relação professor-estudante (activos que dividem a meias os louros e o fiasco do processo), sobretudo na forma como o primeiro incide o olhar sobre o segundo.   Afinal, nem o docente é o sumo-conhecedor infalível, nem o discente é um poço de ignorância. Uma turma congrega, necessariamente, uma diversidade de saberes.

A revolução que se impõe deve também impedir que o estudante seja um mero reprodutor de conteúdos, e reencontre o ser pensante que é, e incentivar a relação interdisciplinar. É imperioso que se retorne à base, numa aposta na elevação dos níveis de literacia (Matemática e Língua Portuguesa), e que se consolide o conhecimento nos níveis intermédios. A formação superior tem de oferecer ao graduado uma clara saída profissional e não confundi-lo com cursos pomposos na denominação, mas que acabam por se revelar "becos sem saída”, como os há, e muitos, em instituições espalhadas pelo País.
Talvez assim, a avaliação negativa feita agora por Filipe Zau seja, um dia, um ponto distante no tempo, quando o processo de ensino e aprendizagem em Angola clamava por uma transformação.   

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