Opinião

O direito ao atrevimento

Apusindo Nhari

Jornalista

Desconfiamos dos conselhos para sermos “meninos bem comportados”, ou para aguardarmos pelas “sábias e clarividentes” sentenças dos especialistas e doutores que estudaram os assuntos, ou pelos ainda mais sábios pareceres dos professores doutores estrangeiros que escreveram tratados e dão aulas sobre a temática.

23/05/2021  Última atualização 08H54
Conhecemos bem a démarche de, durante uma discussão, se recorrer às credenciais académicas, à "ampla experiência” ou outra qualquer "fonte de autoridade”, para fugir aos argumentos ou para desvalorizar, à partida, uma posição de que se discorde.

Mesmo que o texto da Constituição não inclua qualquer artigo ou alínea a consagrar o "direito ao atrevimento”, estamos convictos que é fundamental que o cidadão comum possa, e deva, ser autónomo no seu pensamento, na sua capacidade de questionar e de opinar, exprimindo-se publicamente, sem ter de apresentar um certificado ou diploma sobre a matéria que estiver em discussão. Não que se dispense o conhecimento dos especialistas ou que não seja necessário que os leigos se esforcem para se informarem sobre os temas em debate. É antes por valorizarmos o olhar fresco e descomprometido da criança que gritou "o rei vai nu” quando todos fingiam ver algo apenas por medo de desafiar a autoridade e o "conhecimento superior”, que consideravam fora do seu alcance, e apenas dominado pelos "sábios” que a todos enganavam. É por sabermos quão frequente é haver especialistas a defenderem posições opostas, uns por terem realmente uma posição, outros mais por terem interesses ainda mais fortes do que qualquer argumento...

A revisão da Constituição - apesar de ser ainda um documento pouco utilizado para orientar a nossa convivência - diz-nos a todos respeito. Os especialistas em Direito Constitucional, e os peritos nos distintos domínios tocados pela revisão, terão seguramente um papel e uma palavra importante para iluminar os possíveis meandros do que está em jogo. Mas aos cidadãos cujas vidas são afectadas pela acção governativa, e pelas regras que a norteiam, cabe um papel decisivo.


Devemos por isso, informar-nos sobre o que está a ser proposto, sobre as distintas posições sobre o assunto, e atrever-nos a discutir, questionar e opinar. Começarmos por uma atitude de abertura para ouvir o que se propõe, mas exigir também de quem conduz a revisão, igual abertura para que, ao longo do processo, se escute e pondere as opiniões que forem surgindo. Abertura para escutar com um sentido de obrigação em responder e esclarecer as dúvidas e preocupações que forem expressas. Com um compromisso de incorporar as ideias consensuais, construídas no debate.

Agradou, pois, saber que a Assembleia da República decidiu incluir organizações de cidadãos, de variadas sensibilidades, na auscultação sobre a revisão proposta pelo Presidente da República. Já agradou menos saber que o convite avisava que apenas poderiam opinar sobre algumas das ideias constantes do documento Proposta de Lei de Revisão Constitucional, limitando a participação da já de si exígua parte da sociedade envolvida.

Mas, mesmo os que não são politólogos, nem comunicólogos, ou constitucionólogos, devem atrever-se a exprimir o que pensam sobre as alterações propostas, para além das opiniões relativas aos processos deficientes, às metodologias ou aos procedimentos de auscultação. Um processo constituinte - ou de revisão constitucional - necessita, mais do que qualquer outro, de assentar num pacto alargado para a definição das regras chave da nossa sociedade, e não ser transformado em objecto de manobras da luta partidária. Nestas lutas, as vitórias de alguns, no curto prazo, e quando obtidas por expedientes e habilidades, podem acabar por ter custos elevados para todos, a médio e longo prazos. Frequentemente apenas atrasam os aperfeiçoamentos nas regras de fundo, que são de esperar de um processo de revisão constitucional e que temos de continuar a construir.

São bem-vindas as propostas de mudança quanto ao aumento da autonomia do Banco Nacional, de tão fundamental que é o desenvolvimento de instituições reguladoras, fortes, autónomas e geridas na base do conhecimento.
Por outro lado, parece consensual que a proposta de clara subalternização do Tribunal Constitucional face ao Tribunal Supremo, e as outras alterações no edifício judicial, entendidas como desvalorizadoras do papel dos juízes nos vários níveis, não contribuem para o objectivo de reforçar o Estado de Direito. Assim como o apequenamento da Provedoria de Justiça em relação à posição que tinha anteriormente - e que já estava espelhado na forma acintosa como foi transferida do espaço onde funcionava. Tudo isto parece exprimir uma visão que secundariza a independência da justiça e a importância do acesso a ela pelos cidadãos.

Mas, o que mais preocupa é o podermos estar a fazer algo provisório, talvez à pressa - seguramente pouco amadurecido, dada a limitada discussão - sem que isso seja o resultado da evolução dos consensos entre várias forças e actores. Resta-nos talvez contribuir para transformar este exercício num momento de reforço da participação cidadã, abrindo os canais adequados para a motivar e informar, criando as bases para que as contribuições resultantes possam enriquecer o produto final.


Uma revisão constitucional não é seguramente tarefa reservada apenas a especialistas. Todos somos chamados a participar.

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Opinião