Opinião

O costume, o direito costumeiro e a economia informal

Questão epistemológica Sendo a economia informal um costume, por que não é enquadrada no direito costumeiro?

03/06/2023  Última atualização 06H05

Há necessidade de clarificar dois conceitos: costume e direito costumeiro.

O costume pode ser entendido, grosso modo, como a prática reiterada de um determinado acto, comum às pessoas que observam de uma forma espontânea, fazendo com que todos ajam em consonância com essa prática, tornando-a´costume´.

O costume pode ter relevância jurídica, ou mesmo judicial, para a solução justa de um determinado conflito. Por exemplo, no cumprimento de um contrato entre duas pessoas que estão inseridas no mesmo contexto cultural e onde o costume é o mesmo, essas pessoas podem não ter sido rigorosas na formulação contratual de uma regra, no pressuposto de que ambas a entendem como habitual. No momento em que o contrato é executado pode haver dúvidas sobre esse ponto que não ficou definido com rigor.

Quem tiver a responsabilidade de fazer a avaliação do caso seja ao nível amigável, arbitral, ou mesmo judicial, pode averiguar se há algum costume que as duas partes normalmente observam, e que pode ter servido para interpretar essa falta de rigor contratual. Neste caso, o costume pode ter relevância jurídico-interpretativa.

O direito costumeiro, também referido como direito consuetudinário, é bem diferente. Embora não seja escrito, é um verdadeiro direito, porque as regras que ele exprime existem, são observadas pela comunidade, estabelecem uma determinada ordem jurídica costumeira e a sociedade tradicional convive e estabelece laços num determinado espaço social com base nessas regras. Em virtude disso, os artigos 223º, 224º e 225º da Constituição da República de Angola referem expressamente o princípio do reconhecimento do "direito consuetudinário que não contrarie a Constituição”, sobretudo no que tange ao estatuto, ao papel e às funções do poder tradicional, bem como às normas das organizações político-comunitárias tradicionais, ao regime de controlo e de responsabilidade do património dessas instituições.

Sendo uma forma jurídica oral de definir regras de conduta, normalmente é expresso através de parábolas. Estas constituem formas concretas de expressão popular que resultam da sedimentação de filosofias e sabedorias populares seculares ou milenares, que se traduzem depois numa espécie de palavra de ordem (em umbundo diz-se alussapo).

Na verdade, são conceitos e noções que traduzem um sentido de ordem, de direito costumeiro, cujos guardiões são as autoridades tradicionais e os mais velhos, que as herdam dos seus antepassados e depois aplicam a casos concretos da vida quotidiana para interpretar questões complexas, dirimir conflitos, ou simplesmente construir alinhamentos de pensamento sobre um mesmo assunto nas conversas entre adultos e nos ensinamentos aos mais novos. Essa é a raiz jus-antropológica do direito costumeiro.

Tratando-se de regras observadas de um modo jurídico-costumeiro, proporcionam um sentimento de ordem próprio, no qual a comunidade toda se revê. No momento em que for necessário resolver conflitos e diferendos, essa mesma comunidade invoca essas regras e aplica-as ao caso concreto controvertido, para então buscar uma solução justa.

Portanto, há aqui uma diferença conceitual considerável entre costume e direito costumeiro.

Respondendo à questão epistemológica de saber se é possível enquadrar a economia informal no direito costumeiro, diríamos que a economia informal não decorre do direito costumeiro, mas sim do costume.

A questão do direito costumeiro coloca-se mais em sede da economia tradicional, que, na sua gênese histórica, entronca no tipo estruturante de "propriedade comunitária”, uma forma de propriedade reminiscente do sistema jurídico-económico tradicional pré colonial, que englobava juridicamente, na tradição, no direito costumeiro, os bens comunitários, como algumas terras e os respectivos recursos, cujos representantes "titulares” normalmente eram os sobas e os anciãos, as pessoas que estavam no cimo da pirâmide social.

Nas suas origens sistémicas tradicionais, a terra não era de uma determinada pessoa. Ainda que na comunidade as pessoas dissessem que iam à "sua lavra”, todos tinham noção de que o terreno da lavra pertencia à comunidade; o rio onde ia pescar, acarretar água e realizar outras actividades não era de ninguém em particular, era da comunidade; as casas da aldeia, embora estivessem afectas a cada família, o kimbo, a aldeia em geral, era da comunidade; a protecção da aldeia, a sua manutenção, eram comunitárias. O sentido de condomínio que hoje se desenvolveu e está muito sofisticado em termos de regras jurídicas, nasceu dessa ancestralidade costumeira, pois a aldeia e o kimbo também se organizavam em termos condominiais para a sua manutenção e salubridade.

Naturalmente que esse direito costumeiro pode ser transformado em direito positivo (o direito escrito), quer dizer, na altura da elaboração das leis pode-se beber muito daquilo que é o direito costumeiro que vigorou em tempos recuados, e que ainda existe nas comunidades tradicionais, de modo espontâneo, e transformar as soluções respectivas em regra jurídica escrita.

Por inspiração dessa realidade jurídico-económica tradicional, a Constituição da República de Angola inseriu no Título III – Organização Económica, Financeira e Fiscal, o artigo 92º, sobre os Sectores Económicos, que confere dignidade constitucional ao uso e fruição dos meios de produção das comunidades rurais.

Em relação à economia informal, o raciocínio é outro. Ela passou a ser um costume, porque num determinado contexto social todos observam as práticas que resultam do seu exercício. Quando vamos ao mercado informal observamos a maneira como o comércio informal se realiza, de modo mais ou menos uniforme, com os agentes informais a actuarem de acordo com certas práticas, que se tornaram comuns, embora possam conhecer pequenas variações de região para região. A natureza dessas práticas não é consuetudinária, isto é, não encerra na sua estrutura uma determinada filosofia de vida tradicional ancestral. São apenas práticas conjunturais. Desaparecendo o ambiente sócio-económico que lhes dá suporte, a prática também desaparece.

No entanto, no quadro das políticas públicas de inclusão dos agentes da economia informal na economia oficial, tais práticas também podem inspirar a criação de regras jurídicas específicas. É o caso de muitas das regras do Processo de Reconversão da Economia Informal – PREI que, assumindo certos costumes como património cultural dos agentes informais, pode transformar tais costumes em regras jurídicas, integrando dessa forma os agentes que as observam na economia clássica, que é a economia que funciona com regras jurídicas escritas, estudadas e aplicadas sob a tutela do Estado.

Talvez aqui, sim, o costume pudesse aplicar-se como fonte de inspiração de soluções jurídicas para o enquadramento legal da economia informal, não como fonte de direito.

As fontes tradicionais do direito são as leis, certos tratados internacionais e a jurisprudência dos tribunais superiores.

 

 

 Francisco Queiroz (*)

(*) Professor Associado da UAN,  Ex-Decano da FDUAN, Ex-Ministro da Justiça e dos Direitos Humanos

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