Opinião

Novelos da noite

Peguei no meu dirigível há muito carcomido pelo imperdoável e inevitável tempo, fiz as devidas manutenções, segui à risca o que estava escrito no catálogo, activei o modo cautela, de seguida, após várias experiências, pus de novo o dirigível a trabalhar em pleno.

16/05/2021  Última atualização 06H00
Já a bordo do dirigível confiante do que fizera anteriormente, movido por uma fé que conforta a alma, adentrei no imo da noite escura. Cirandei em volta dela. Me senti um mero objecto espacial a rasgar lentamente o espaço cósmico, esperançoso que há-de alcançar a tão desejada posição orbital ou o seu ponto de trabalho. 

Ninguém conhece de cor e salteado a madame noite. Como se antecipasse ou conhecesse os meus absortos pensamentos, essa estranha ofereceu-me gentilmente uma chávena cheia de diálogo. Enquanto via à minha volta tudo a esfumar-se como uma nuvem de fumo, a forasteira chamada noite mesmo não estando na sua fase derradeira ofereceu-me educadamente dois ou mais dedos de conversa. 

E lá fora os cães de Ras vigilantes como sempre lançam sonantes brados, os latidos da praxe. É como se estivessem a me alertar para algum perigo iminente, por mera curiosidade aproximo-me da janela à procura de uma fresta qualquer, que me permite ter uma visão mínima do que se esteja a passar lá fora, mas penso que é só mais uma alma perturbada e coitada a tentar mendigar atenção da noite ou a buscar por alguma côdea de distracção.

Diante de mim e ante a minha passividade vejo objectos a levitarem, tento buscar da gaveta mental algo que me anime, mas me sinto cada vez mais um corpo em puro estado de inércia. Rumo até à cozinha, abro lentamente o frigorífico e não encontro nada bebível.   
Entediante madrugada adentro, ligo a tevê só por ligar, nem com isso vejo passar o tempo, uma sequência de eventos parece não obedecer a cronologia alguma, o relógio de parede maldito parece atacado por uma histeria, escusa de fazer o seu papel. 

Há muito que não me solidarizo com o som da tevê, as luzes e as vidas que saem da caixinha mágica não despertam o meu lado contemplativo-afectivo ou empático, nada me dizem, tudo me sabe entediante, uma comida difícil de ser tragada. E uma vez mais lá vem a senhorita noite a convidar-me para um incaracterístico pé de dança. Aceito?
O aparelho de som como se entendesse a forma e a linguagem dos meus desejos, fez-se prestativo, a música do estilo rock alternativo "dá-me amor ou ódio” dos Mundo Cão irrompeu calmamente do aparelho de som, agigantou-se e fez-se minha companheira durante a noite de vigília involuntária.

"Porque o tempo é feito de ti e mim, e tudo o resto é demais.”
 "Amor ou ódio, tanto me faz, deus e diabo querem assim. Assim será.” Enquanto a madrugada adentro me consumia, cantei efusiva e desesperadamente o incisivo e contundente refrão dos Mundo Cão. Foi de grande serventia. Há quem advoga fervorosamente que cada música tem a sua hora, o seu momento específico. Nem todas as músicas adequam-se a todas as horas.

Cá para mim, não faz o menor sentido, tanto faz, é-me indiferente, desde que não perturbe o silêncio da vizinhança.
Procuro ene formas de me desenvincilhar desta noite que me importuna, que me coloca de atalaia.
Num roer das unhas dou de frente com os livros da minha biblioteca, como se quisessem ser lidos mostram-me alguma simpatia, selecciono aleatoriamente um: calha-me o sortudo  "O jardim das delícias” de um tal João Aguiar, folheio, mas não sinto o farfalhar das folhas, ler as primeiras páginas é uma vã tentativa, a leitura soa forçada, não torna-se-me um jardim das delícias. Sem dar rodas à cabeça, outra escolha não tive senão colocar o livro no lugar sagrado.

De repente algo irrompe em meio ao nada, invade o silêncio, a quietude da noite, era um gato famélico a ronronar, talvez estivesse (também) à procura de restos de alguma comida deixada pelo humano supérfluo. No princípio era a noite, no fim idem e, a noite continuou noite.... teimosamente parecia não se liquefazer rapidamente num zero e num um de alguma lógica binária.

Às vezes sinto-me agarrado ao resto da noite que espreita a aurora. Há noites a acontecerem em mim. Não foi preciso expulsar do diafragma o mais acústico dos sons para ter o talento do galo mais capão para antever uma aurora que fingi não sentir o meu pesar, a minha fatalidade encurralada pela madrugada cáustica.

Noites passadas, noites paralelas. Pareço-me um médium, só que no sentido inverso: não comunico com seres que viveram outras vidas, não sou um pretenso intermediário que estabelece contactos entre os viventes e os não viventes, comunico-me simplesmente com a noite ou é ela que se comunica comigo. Das duas, uma.
Talvez ela seja um espírito, uma vida que não cabe no recipiente da (simples) percepção humana. Talvez ela seja a representação fiel de todos estes seres que partiram deste reino para o eldorado e que constantemente  dialogam comigo, privam comigo e indicam caminhos.

O tempo é íman, atrai-nos sempre para o seu lado mais reluzente ou para o seu lado mais obscuro. Estou neste impasse se a noite é somente escuridão, ausência temporária de luz ou é algo que a fresta mais ousada não nos ajuda a enxergar. Enquanto me transformo numa sentinela, vejo a cidade ao lado a adormecer, vejo todo mundo a adormecer ou a fingir que adormece, ela, a impiedosa noite rasga-me a alma como se fosse uma legista forense. Entro na defensiva e pergunto à noite o  que quer de mim? E num tom irónico, parecendo escárnio, responde:

- De ti quero o nada de nada, quero esse tesouro que nem todos veem, que o tataravó Midas não teve tempo de cobiçar.
Confuso, como se tivesse despertado dum terrível distúrbio do sono, disse de mim para mim: Ó noite, não há nada em mim para cobiçares, cansei de esperar por dias arco-íris, por auroras, aliás, nunca me disseram nada, só vejo nuvens de fumo a enviesarem o meu pobre horizonte. Reitero: não há mais nada para cobiçares em mim, morreram-se-me todas as ilusões, cada vez mais sou um engenho falível, colecionador de tantos nadas e dúvidas existenciais.

Vejo o mundo à minha volta a colapsar e já não há o reino da simpatia social a revirar a minha gaveta mental à procura de algum espaço e, a cada dia que passa a contemporaneidade mostra que é um tigre de papel, está insuflada de rugidos e ilusões vulcânicas. E o mundo anda a conta-gotas, está em de(u)sconstrução permanente, onde as teias de relações com o conhecido-desconhecido é o status quo impactante.
Sem mais auroras à minha espera, aliás, assassinei barbaramente todas as ilusões e expectativas que tinha acerca dela, e ao fim e ao cabo, percebi que é mais fácil caber na fresta estreita da agulha camaleónica que deslindar os novelos da noite.

Pedro Kamorroto

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