Opinião

Naus frágeis

Pedro Kamorroto

O homem constrói, é partícipe (passivo) do seu próprio funeral a cada sol que nascepassa. Os seus contemporâneos acompanham-no na sua derrocada por mero formalismo, usando o disfarce da compaixão. Um mecanismo usado para que todo amor, apoio d(o)ado outrora, a qualquer momento seja retribuído. Tudo é permuta, a compaixão é comboio, anda nos caminhos férreos da mercantilização.

17/09/2023  Última atualização 08H52

Somos todos naus frágeis, mesmo que a autoridade das águas profundas não seja de todos.

A trama romanesca da mortificação do homem entrelaça-se, tem a sua desenvoltura no dia-a-dia multipolar. Este ser vivente é um personagem intrigante, controverso, acumulador de inúmeros conflitos e desilusões internas.

O homem comete um assassinato hediondo contra si mesmo, autoflagela-se, autoimola-se. Não tem sentido activado para ver o fogo a deflagrar contra o seu corpo. Pudera! O seu corpo já não é corpo nos moldes conhecidos, é um inerte aguardando a compaixão de um abutre para não acabar em escória ou em cão feito tapete asfáltico.

A morte que se ergue silenciosamente tem pouco a ver com as leis da natureza.

A morte é peçonhenta ou é o dia-a-dia? Quem entreos dois temelevada carga viral e bacteriana que nos torna e nos toma por meras estátuas?

Se não morrermos pra vida ainda vale apenas viver? Consumirmo-nos na ainda chama ardente da esperança, anularmos a realidade esmagadora para que o sonho volte a gerar vida?

O homem às vezes precisa montar esforçadamente um potro, ter consigo todas rédeas e cavalgar em direcçãoaos sonhos mesmo que nada significarem, mesmo que estes estiverem adormecidos, significarem sombra, taciturnidade.

Suspendo o coração, faço com que o mesmo não bombeie mais fogueiras, para encontrar o homem, colocá-lo no centrogravitacional de toda preocupação que visa realizá-lo ouno mínimo idealizá-lo.

É de todo meu interesse numismático encontrá-losalvo e lúcido, todavia, encontro ruínas, escombros, craveiras, reminiscências dele. É a partir da reminiscência que finjo que posso mitificá-lo, reconstruí-lo, dar-lhe maior preenchimento, acabamento, sopro estético, torná-lo num ser de sentimentos,alimentá-lo de religiosidade.

Contudo, "todo desejo é um desejo de morte” – como diz o(possível)velho ditadojaponês.

Como se o mesmo guiasse os homens, os conduzisse até aos seus intentos nobres, insanos e sombrios.

Cada vez que o homem deseja mais galga passos largos para sua autodestruição, para sua queda aparatosa. Encontra-se num banquete farto de comes e bebes. É um bon vivant, mas num banquete, único prato disponível é o desejo, quem mais desejar, tiver gula, atraí-lo para o redutodo seu bucho, não só apanha uma fulminante congestão, como também desligamento da máquina vital, acaba por consentir a sua própria eutanásia, morte assistida pela gula. Como se o desejo fosse o sumo bem, o bem dos bens que deve buscar de forma incessante sem colocar as consequências numa balança.

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