Entrevista

“Não temos em Angola soro específico para vítimas de mordedura de serpentes”

Helma Reis

Jornalista

Imagine que tenha sido vítima da mordedura de uma serpente da espécie dendroaspis polylepis, também conhecida por mamba negra. Sabe o que lhe pode acontecer? Pode morrer se, em 30 minutos, não receber, de forma rápida e adequada, tratamento médico. O veneno da mamba negra tem uma actuação fulminante. Trinta minutos depois da mordedura, a vítima pode ficar com os músculos respiratórios paralisados e morrer por insuficiência respiratória, se não for mecanicamente ventilada.

14/07/2023  Última atualização 07H15
Médica, Paula Regina Simões de Oliveira © Fotografia por: Rafael Tati | Edições Novembro
A mamba negra existe em todo o país e pode ser encontrada, por exemplo, nas novas urbanizações da província de Luanda. "Eu diria que nós fomos ao encontro delas devido à construção de moradias em áreas até então desabitadas”. A afirmação é de uma autoridade na investigação, em Angola, de serpentes de maior importância médica, que concedeu uma entrevista ao Jornal de Angola. Trata-se da médica toxicologista Paula de Oliveira, que, devido ao trabalho que desenvolve, ganhou o rótulo de "Doutora das cobras”.

 

Em Angola, a senhora é uma autoridade na investigação de serpentes de maior importância médica. Tanto é assim que é rotulada como a "Dra. das cobras”. Sente-se mal por ser assim conhecida? E como começou o seu interesse académico por serpentes?

Antes de mais, gostaria de agradecer ao Jornal de Angola pelo interesse em entrevistar-me, para abordar uma temática, por sinal, negligenciada e cuja advocacia é incessantemente necessária, porque os acidentes ofídicos são um problema real no mundo, em África e no nosso país. Acredito que tal rótulo é utilizado pelas pessoas só para servir de uma mnemónica, nome de uma técnica utilizada com o objectivo de auxiliar a memória, pelo facto de haver poucas pessoas a trabalhar nesta área no país. Mas preocupa-me a sua possível mensagem subliminar de que as investigações que desenvolvo possam estar apenas circunscritas a essa área, o que não corresponde à verdade. A minha veia é de investigação científica em saúde, no geral. E quanto mais complexa a investigação for, mais atraente é para mim!

 

Pode mencionar outras investigações em que esteve, ou ainda está, envolvida?

Quando fomos assolados pela pandemia da Covid-19, coordenei dois projectos de investigação, um sobre a "Síndrome de Bournout” e outro sobre "Factores protectores para a infecção pelo SARS-CoV-2 em contactos de pacientes com Covid-19 em Angola”. E estou a participar também noutros projectos que ainda estão a decorrer, tais como o "Sequenciamento genómico do vírus SARS-Cov-2 em pacientes diagnosticados com Covid-19 em Angola”, o "Cinética da carga viral da infecção pelo SARS-CoV-2 em pacientes angolanos” e o "Estudo da prevalência da Covid-19 numa amostra aleatória na cidade de Luanda”. Outro ainda, mas que não tem nada a ver com serpentes nem com a Covid-19, é o projecto "Futuro”, que teve início em 2020 e terminará em 2024. Este projecto está virado para a saúde sexual e reprodutiva dos jovens com idades compreendidas entre os 15 e os 25 anos. Agora de volta às nossas cobras (risos), o interesse em estudá-las deveu-se ao facto de ter percebido que um elevado número de vítimas de mordeduras de serpentes acabava por morrer. Para reverter esta situação, propusemo-nos a desenvolver um soro antiofídico específico, produzido a partir de venenos de serpentes existentes na nossa fauna.

 

Como foi acolhida, no seio da sua família, a decisão de estudar serpentes?

Com muita estranheza, porque não havia estudo nenhum do género e, logo, era mais difícil poder fazer comparações ou de ter um guia prévio. Mas, de quem está na ciência, no caso as minhas orientadoras de doutoramento em Ciências Farmacêuticas, recebi incentivos para a pesquisa, porque fazer ciência é isso mesmo: procurar respostas e proporcionar soluções à população que vive uma determinada problemática. No lado familiar, embora os adultos tivessem visto com muita estranheza, houve um momento em que os meus filhos, ainda pequenos, faziam referência aos nomes das serpentes mais frequentes em Malanje, província em que vivíamos, e aos cuidados a ter para se evitar um acidente [ofídico]. E era engraçado, porque eles não pronunciavam tão bem os nomes das espécies, mas quem entendia percebia que tinham conhecimento sobre as mesmas.

O interesse académico por serpentes deve-se a um eventual fascínio por répteis?

Nunca tive fascínio por nenhum tipo de réptil. Sempre vi os répteis como qualquer um os vê: à distância, melhor. (risos) Foi tudo pela necessidade de ficar munida de conhecimentos para poder defender, com propriedade, a tese de doutoramento em Ciências Farmacêuticas sobre venenos e envenenamentos por serpentes de maior importância médica em Angola. Foi uma pesquisa robusta e que teve como objectivos: primeiro, avaliar a actuação dos profissionais de saúde diante de casos de envenenamento por mordedura de serpentes em quatro regiões angolanas; segundo, analisar bioquimicamente venenos das serpentes dessas regiões; terceiro, conhecer a imunogenicidade dos venenos e produzir o soro anti-veneno experimental. Para o cumprimento de tais objectivos, foi feito um desenho metodológico, desenvolvido em três etapas, tendo, na primeira etapa, sido realizado um estudo observacional, descritivo e transversal, com uma amostra de 151 profissionais de saúde. Na segunda etapa, foi feita uma caracterização bioquímica dos venenos e, na terceira e última etapa, uma avaliação do potencial imunogénico dos venenos das serpentes angolanas em modelo animal "murino” e a detecção dos componentes antigénicos frente aos soros "murinos”. Estas duas últimas etapas basearam-se em estudos do tipo experimental, analítico e laboratorial.

 

A fotografia que está na capa do seu livro com o título "Serpentes em Angola - uma visão toxinológica e clínica dos envenenamentos” é de alguma cobra "manuseada” pela equipa de investigadores liderada por si?

Apesar de não simpatizar com cobras, só comecei a gostar um pouco depois de ter criado afecto por uma serpente fêmea da espécie bitis gabonica, a quem demos o nome Francisca. Ficou durante um ano e meio em cativeiro, depois de a termos apanhado. Nenhum de nós julgou que ela fosse resistir tanto tempo. Havíamos ido ao município de Calandula, em Malanje, para um trabalho de campo e lá, enquanto os herpetologistas procuravam por serpentes, apareceu um jovem que nos disse: "já que procuram por cobras, está aqui uma”. Atirou-a contra nós. (risos) Ela sangrava na cabeça e tinha partido todas as presas, que depois cresceram. Em virtude de o jovem que fez tal acção chamar-se Francisco, denominamo-la de Francisca, por ser uma fêmea. Tinha a pele muito linda e era muito sossegada. Poderíamos estar no mesmo lugar com ela, distante claro, mas não se movia, mesmo sendo provocada. Produzia enormes quantidades de veneno. Ou seja, ela tinha mesmo as características comportamentais descritas na literatura sobre as bitis gabonica. Tal foi a admiração que, na capa do meu livro, intitulado "Serpentes em Angola - uma visão toxinológica e clínica dos envenenamentos", a foto que aparece é da Francisca. (risos)


A Dra. Paula de Oliveira liderou uma equipa de dez investigadores, entre angolanos e estrangeiros, que, em Março de 2015, esteve em quatro províncias do país à procura de cobras que se supunha não existirem no país. O que descobriu a expedição "Ndala Lutangila” e por que razão foi dado este nome ao trabalho desenvolvido?

Fico lisonjeada pelo domínio que tem do meu trabalho. No ano de 2015, com o propósito de se ir a campo para captar serpentes, a fim de extrairmos os venenos, para conhecermos a sua composição bioquímica e produzir os soros antiofídicos, percorremos 3.500 quilómetros entre as províncias do Cuanza-Sul, Benguela, Huíla e Malanje. Visitámos várias comunas de, pelo menos, dois municípios de cada uma das províncias mencionadas, tendo sido inquiridas mais de 260 pessoas, entre profissionais de saúde e população de áreas de risco, a maior parte camponeses e pastores. Foram apresentadas cinco conferências sobre a importância da problemática nas principais unidades de saúde das referidas províncias e colocadas placas de aviso de perigo de mordeduras de serpentes nas áreas de maior risco. Foram, também, distribuídos folhetos e posters sobre como prevenir o aparecimento de serpentes e acidentes ofídicos, além da divulgação de medidas adequadas para a prestação de primeiros socorros. No fim desta etapa de campo, foi possível extrair 1200 microlitros de veneno de naja nigricolis, 250 microlitros de veneno de bitis arietans, 1900 microlitros de veneno de bitis gabonica e colectadas 12 serpentes, das quais foi possível a extracção do veneno a posterior. A expedição foi designada de "Ndala Lutangila” por serem termos utilizados, em separado, pela população [rural] para fazer alusão à mamba negra, uma espécie de serpente que, quando morde, não deixa geralmente a sua vítima sair da lavra com vida. Em algumas localidades rurais de Angola, a mamba negra é conhecida por "ndala” e noutras por "lutangila”.

"Os veículos abandonados constituem esconderijos perfeitos para as serpentes”

O estudo que desenvolve sobre serpentes só está voltado para as de interesse em saúde pública?

A pesquisa é feita em torno das serpentes de maior importância médica. Ou seja, aquelas que, em caso de envenenamento, poderão levar a óbito, à amputação de membros e à cegueira, [problemas] que constituem inúmeros entraves ao desenvolvimento económico dos países africanos.

 

A primeira pesquisa sobre a distribuição de serpentes em Angola remonta ao ano de 1895. Qual é a informação actualizada sobre as espécies de serpentes e a sua distribuição por Angola?

De facto, a primeira vez que se abordou a distribuição de serpentes venenosas foi em 1895, por Barboza Bucage, autor da obra "Herptologie D’Angola et du Congo”. Em 2017, publiquei o meu livro sobre serpentes. Há, aproximadamente, dois anos, foi publicado o livro "Serpentes Venenosas de Angola - Guia de Identificação e Primeiros Socorros”, pelo investigador Luís Ceríaco. Nestas duas obras, podem ser encontradas informações actualizadas sobre a distribuição das serpentes em Angola.

 

O resultado da expedição "Ndala Lutangila” é que estabeleceu as bases para a criação de um projecto de produção de um soro antiofídico com venenos de cobras existentes no país?

Podemos dizer que sim. Sem ir a campo e captar serpentes, não poderíamos estudar os seus venenos nem tão-pouco produzir anti-venenos a partir dos mesmos. A expedição foi a base para a percepção das diferenças que observámos nos venenos das serpentes existentes em Angola entre regiões e sexos dos animais de uma mesma espécie. Percebemos que, efectivamente, para a resolução do problema no nosso país, necessitamos de uma aposta séria nesta área.

 

Quantas espécies com alto nível de letalidade existem em Angola e onde se encontram?

Existem, em África, 100 espécies clinicamente importantes, sendo 30 conhecidas por terem causado mortes. No entanto, em Angola, tal como na África Austral e Oriental, a bitis arietans é a responsável pela maioria dos casos de envenenamento grave, seguida das serpentes cuspideiras, que são as naja nigricollis, naja mossambica e as dendroaspis polylepis, também conhecida por mamba negra.

 

Quando o projecto foi concebido, a Dra. era professora e investigadora da Universidade Lueji A’Nkonde, que é, até onde sei, a instituição académica autora do projecto, em parceria com o renomado Instituto Butantan, do Brasil, e com o laboratório de Toxicologia da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto (Portugal). Continua a liderar o projecto, mesmo sendo decana da Faculdade de Medicina da Universidade Katyavala Bwila?

Já não sou decana da Faculdade de Medicina da Universidade Katyavala Bwila desde 2021, mas sim investigadora auxiliar do Centro Nacional de Investigação Científica (CNIC), que se encontra em Luanda. Como sabe, houve um redimensionamento das regiões académicas de ensino superior. A Universidade Lueji A’Nkonde tutelou o ensino superior, na província de Malanje, até 29 de Outubro de 2020. Por força do Decreto Presidencial nº 285/20, foi criada a Universidade Rainha Njinga a Mbande na província de Malanje, sendo agora a responsável pela Faculdade de Medicina e, por via desta, do CIMETOX (Centro de Informação e Investigação de Medicamentos e Toxicologia), que faz parte daquela unidade orgânica. O projecto ficou paralisado aproximadamente seis anos, já com o soro "equino” produzido. Nessa altura, não foi possível a realização do ensaio clínico, algo que deveria ter sido feito no Brasil, antes do soro "equino” vir para o país. Não foi feito o ensaio clínico no Brasil, porque, neste país da América do Sul, não há acidentes ofídicos envolvendo serpentes que existem na fauna angolana. Resultado: acabámos por perder o soro experimental "equino”, por ter vencido o seu prazo de validade. O projecto vai ser reiniciado e continuarei a liderar a equipa para o efeito. 

 

Em quanto está orçado o projecto e qual é a origem do financiamento que o suporta?

Como já disse, o protocolo de cooperação existente anteriormente era entre a Universidade Lueji A’Nkonde e o Instituto Butantan, do Brasil. Necessita de ser actualizado e já com a Universidade Rainha Njinga a Mbande, isto em termos burocráticos-documentais. Em termos de execução, pretendemos trabalhar de forma diferente para que possamos produzir os soros em Angola, sem ter esses entraves de, por um lado, não poder trazê-los sem ensaio clínico prévio no Brasil e, por outro, não se poder realizar o ensaio lá por não ter as espécies de serpentes que existem em Angola. De momento, ainda estamos a criar os termos para uma cooperação profícua e para um projecto diferente do anterior, isto é, produção em Angola. Depois passaremos para a fase da orçamentação, incluindo a busca de financiamento, na sequência de um estudo para o efeito.

 

A informação de que disponho é de que foram produzidos, entre 2014 e 2017, dois soros antiofídicos experimentais, o "murino” e o "equino”, com venenos de serpentes de importância médica em Angola. Está correcto o que disse? 

Realmente, foram produzidos soros experimentais "murino”, cujos resultados demonstraram que os venenos das serpentes de importância médica em Angola, envolvidos nos acidentes ofídicos, são imunogénicos. No entanto, os venenos viperídeos (B. arietans e B. gabonica) são mais imunogénicos em relação ao veneno elapídico (N. nigricolllis), e os soros "murinos” produzidos reconheceram um considerável número de componentes dos referidos venenos. Devemos ter em conta que estes não são para uso humano. Em relação ao soro "equino”, apesar de se ter criado um projecto para avaliação clínico-terapêutica do soro "equino”, pelas razões acima apontadas na pergunta anterior, não foi possível realizar. Por esta razão, desta vez, pretende-se fazer de forma sustentável e exequível até ao fim.

 

Caso os dois soros experimentais venham a ter os resultados esperados, ambas vão ser colocadas no mercado em simultâneo?

O soro "murino” tem resultados, mas não é para utilização humana. Constitui a base para se pretender avançar para a produção do soro "equino”, porque já tínhamos o conhecimento prévio de que eram venenos imunogénicos e que produziriam anticorpos nos cavalos que foram inoculados.

 

Cada soro corresponde a um projecto ou ambos estão em apenas um projecto?

Foi sequencial a produção do soro "equino”, sem ambos estarem diferenciados por projectos. Por não ter vindo ao país o soro experimental "equino”, reconheço que se perdeu uma oportunidade de se avançar para a conclusão do projecto. Mas posso assegurar-vos que a equipa de investigadores continua optimista e com grande interesse em colaborar para que seja encontrada uma solução para um problema real no nosso país.

 

O investimento é totalmente público ou é fruto de uma parceria público-privada?

Eu não diria que houve um investimento, porque, quando falamos em investimento, se pensa na lucratividade a curto, médio ou longo prazo. E a produção de soros só seria lucrativa se houvesse comercialização e exportação dos mesmos. Por exemplo, muito recentemente, o instituto de produção de vacinas da África do Sul, que produz os soros, deixou de os exportar. Apenas produz para o próprio país. Para a produção dos dois soros, houve apoios públicos e privados e uma profunda entrega dos investigadores para que se chegasse aonde se chegou.

 

A produção industrial vai ser entregue a uma empresa farmacêutica? Se for, já há uma seleccionada ou indicada?

Quando a produção for industrial, ela poderá ser mesmo gerida pelo próprio centro de produção de soros. Se olharmos para a produção de soros como um negócio rentável, este produto, cuja produção é onerosa, não chegará aos que mais necessitam, que são os camponeses e populações carenciadas do nosso país. Por isso, sempre defenderei a sua gratuitidade, para que sejam assim cumpridos os princípios da integralidade, universalidade e equidade.

 

Na introdução da sua tese de doutoramento em Ciências Farmacêuticas na especialidade de Toxicologia é referido que, na década de 1990, houve, na maioria dos países africanos, uma crise de abastecimento de soro antiofídico. Esta crise abrangeu Angola?

Fico feliz em saber que já leu a minha tese de doutoramento. Pude perceber que as perguntas aqui feitas demonstram domínio fora do comum sobre o assunto. (riso) Essa crise ainda existe, infelizmente, e também abrange o nosso país. Esta é uma das razões de a OMS ter desafiado os Estados-membros, subscritores da reentrada das mordeduras de serpentes na Lista de Doenças Tropicais Negligenciadas, a diminuírem em 50 por cento a morbimortalidade até 2030. Cada país deve dar passos firmes para que tal meta seja atingida.

 

Qual é a informação de que dispõe sobre a prevalência de mordeduras de serpentes em humanos em Angola?

Segundo dados do Programa de Doenças Tropicais Negligenciadas, houve, em 2022, um total de 561 casos que resultaram em 37 óbitos. O Uíge, com 118 casos, é a província que notificou o maior número de casos, seguida de Benguela, com 116 casos. No entanto, devido às limitações no acesso às populações que mais sofrem com esta situação, acredito que há casos que não são notificados no país.

 

A maioria dos países africanos importa anti-veneno do continente asiático, sobretudo da Índia. O soro importado é eficaz?

Sim, a indústria farmacêutica asiática é muito forte, competitiva e de qualidade. No entanto, em países com elevado índice populacional existe uma maior probabilidade de se produzirem fármacos contrafeitos para darem resposta à demanda e, às vezes, o oportunismo em facturar, principalmente, em países africanos, fala mais alto. Há cerca de seis anos, verifiquei que alguns hospitais tinham adquirido um soro da VINIS, cuja composição farmacológica não tinha o veneno da bitis arietans. Logo, este soro para nós não serve, por não ter sido feito com o veneno da bitis arietans, a serpente que mais acidentes ofídicos causa em Angola. Daquilo que tem sido a minha advocacia, enquanto investigadora junto do Ministério da Saúde, fui informada de que este ano será feita a aquisição de soros antiofídicos para uma melhor intervenção, bem como vai ser reforçada a formação de técnicos para a aplicação correcta de soros e o controlo das reacções adversas, após a sua administração.

 

O que pode acontecer a uma vítima de mordedura de serpente se receber um soro que não tenha veneno de serpentes autóctones do país?

O ideal seria que fosse de serpentes de Angola devido à variabilidade bioquímica que existe entre regiões no nosso país. Mas, se for um soro importado, deve ao menos ter o veneno de espécies que existem no nosso país. Caso seja administrado, não terá efeito nenhum para reverter o envenenamento e poderá ainda ter reacções adversas graves.

  "A acumulação de lixo doméstico pode atrair serpentes

Para os casos em que não há certeza da eficácia de um soro importado, a Dra. defende que o tratamento convencional pode ser complementado com a inclusão de terapias tradicionais?

O único tratamento eficaz para o envenenamento por mordedura de serpentes é feito com soros antiofídicos poliespecífico. Não aconselho a utilização de terapia tradicional, porque, apesar de serem utilizadas substâncias como plantas, que poderão até ter uma acção anti-inflamatória, a utilização das mesmas poderá levar a infecções a partir da solução de continuidade da pele, feita pelas presas da serpente, e não existe qualquer evidência médico-científica que sustente que as práticas utilizadas pela terapia tradicional sejam eficazes no tratamento do envenenamento. Porém, na nossa realidade, a terapia tradicional é amplamente utilizada pelas populações das zonas mais recônditas. Tenho conhecimento de um caso de Benguela, envolvendo uma criança de dois anos que, infelizmente, acabou por falecer devido à ida tardia a uma unidade hospitalar.

 

Em Angola, há sempre disponibilidade de soro antiofídico, mesmo nos locais mais recônditos?

Não há nos hospitais de nível terciário, nem nos de nível primário, nem nos locais mais recônditos do país. Porém, creio que este cenário mudará em breve. Angola deverá dar passos concretos para reduzir a morbimortalidade por esta causa, em pelo menos 50 por cento, até 2030, em cumprimento a uma recomendação da Organização Mundial da Saúde.

 

O envenenamento por mordedura de serpentes pode fazer vítimas fatais se não forem atendidas rapidamente? Qual é o comportamento do veneno no corpo?

Nem todas as mordeduras causam envenenamento. Por isso, o aconselhável é ir para o hospital e ficar em observação por, pelo menos, 24 horas, pois há serpentes que causam transtornos graves da coagulação e insuficiência renal aguda, após 20 horas de ocorrência do acidente. Em relação ao tempo de actuação do veneno, tudo depende da espécie.  A dendroaspis polylepis, também conhecida como mamba negra, tem uma actuação fulminante. Em 30 minutos, poderá levar à paralisia dos músculos respiratórios e a pessoa morrer por insuficiência respiratória, se não for mecanicamente ventilada. Quanto ao comportamento do veneno, tudo depende da espécie. Por exemplo, as citotóxicas, como as do género bitis, levam a edema exuberante do local da picada e alterações da coagulação.

 

Será que, depois da inclusão pela OMS, em 2009, das mordeduras por serpentes na lista das Doenças Tropicais Negligenciadas, Angola criou um plano estratégico que, além de garantir a seroterapia em todo o país, tenha incluído a educação comunitária, para a redução do risco de ataques de serpentes, sobretudo em áreas de alta incidência de acidentes ofídicos?

Os envenenamentos por mordeduras de serpentes foram retirados, em 2011, da Lista das Doenças Tropicais Negligenciadas, provavelmente, devido à percepção de que não eram um agravo tão importante quanto as doenças infecciosas. Em Maio de 2016, durante a Assembleia Mundial da Saúde, houve a discussão para a reentrada dos mesmos, mas só voltaram a ser reconhecidos, em 2017, como doença tropical negligenciada. Segundo informações constantes do Plano Nacional Estratégico de 2021-2025, os envenenamentos por mordedura de serpentes estão incluídos. Mas, até ao momento, como já disse, não temos soros no país. Penso que precisamos de executar o que foi planificado para o cumprimento das metas preconizadas.

 

Tem havido notícias sobre o surgimento de serpentes nas novas urbanizações que surgiram, por exemplo, na província de Luanda. O estudo que desenvolve está também direccionado para as espécies de serpentes existentes em Luanda? Se estiver, diga-nos o grau de letalidade.

Eu diria que nós fomos ao encontro do habitat delas devido à construção de moradias em áreas até então desabitadas. As espécies existentes em Luanda são as bitis arietans, bitis heraldica, também conhecida como víbora de Angola, bitis gabonica najas e dendroaspis polylepis. Ou seja, as de maior importância médica existem na capital do nosso país. Sobre o grau de letalidade, depende do tipo de serpente e do manuseio clínico que se tenha em ambiente hospitalar. Por exemplo, em Angola, já conseguimos salvar uma senhora mordida por uma mamba negra. A picada de uma mamba negra é, por norma, letal.

 

O risco de ataques de serpentes em áreas rurais, principalmente, é maior em que estação do ano, durante o Cacimbo ou no período das chuvas?

Apesar dos acidentes poderem ocorrer durante todo o ano, o período de chuva é o que maior frequência de casos apresenta.

 

Há alguma diferença entre cobra e serpente?

Cobra e serpente são sinónimos. Só que, para a nomenclatura taxonómica herpetológica, quando designamos "cobra”, estamos a referir-nos ao género naja.

 

Que recomendações devem ser transmitidas também às pessoas que vivem nas áreas urbanas para que tenham sempre em mente a necessidade de prevenção?

As serpentes têm um importante papel no ecossistema, pois elas alimentam-se de ratos. Se assim não fosse, teríamos uma elevada incidência de doenças causadas por roedores. Portanto, se quisermos evitar as serpentes perto de nossas casas, seja em áreas rurais ou urbanas, devemos evitar a acumulação de lixo doméstico perto das habitações, assim como devemos aplicar redes mosquiteiras nas janelas, proteger as frestas das portas e remendar qualquer tipo de fenda ou buraco nas paredes ou tecto. Evitar ainda ter galinheiros perto de casa, porque as najas gostam muito de ovos de galinhas. Evitar ter madeiras, capim, materiais de construção e veículos abandonados, porque constituem esconderijos perfeitos para as serpentes. Quando se vai ao campo, deve-se usar botas altas de borracha e sempre abrir o capim com algum pau comprido no local onde se vai pisar para que não se pise inadvertidamente numa serpente que lá esteja a descansar e, devido à pisada, atacar.

 

As serpentes  aquáticas não estão incluídas no estudo que é desenvolvido sobre ofídios nativos de Angola?

De momento, temos priorizado as serpentes terrestres.

 

Tem algum conhecimento do grau de letalidade das serpentes aquáticas existentes em Angola?

Angola está banhada pelo Oceano Atlântico e, nesta extensão de água salgada, segundo a literatura, não tem serpentes marinhas. A Hidrophiinae é uma sub-família de serpentes venenosas, que são encontradas em águas costeiras quentes dos oceanos Índico e Pacífico, algumas das quais têm veneno mais letal do que as serpentes terrestres.

 

Os soros antiofídicos servem também para uso animal? Ou seja, há soros só para animais?

Os soros antiofídicos também podem ser produzidos especificamente para uso veterinário.

 

O propósito da investigação angolana está apenas circunscrita à produção de um soro antiofídico ou vai ser alargado, no futuro, à produção de mais produtos para fins farmacêuticos e medicinais, com recurso, por exemplo, a toxinas, enzimas e outras substâncias activas de serpentes?

Gostaríamos muito de poder ter um leque alargado de linhas de investigação em torno de toxinas e até dos venenos das serpentes que têm inúmeros benefícios. Existem produtos estéticos e para o tratamento da hipertensão que são derivados de venenos ou toxinas de serpentes. Por exemplo, o captopril foi descoberto, em 1975, a partir do veneno da bothorps jararaca. Há uma substância, a mambalgina, que foi isolada do veneno da mamba negra e é um potente analgésico em estudo para ser usado futuramente.

 

Uma vez que me disse  não haver soro antiofídico no país,  sabe  qual é a terapia que é submetida às vítimas de mordeduras de serpentes?

O tratamento é sintomático. Isto é, o médico faz a correcção das alterações que o paciente venha a ter. Por exemplo, se tem alterações da coagulação, trata-as; se há paragem respiratória, intuba e ventila mecanicamente. Quando se consegue algumas ampolas de soro antiofídico, é possível reverter o envenenamento mais rapidamente.

 

Já se recorreu ao Fundo para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico, criado há dois anos, para um pedido de financiamento do projecto de produção de um soro antiofídico?

Não se recorreu, porque, na altura em que o edital foi lançado, estávamos convictos de que se resolveria o impasse de receber o soro "equino”, produzido no Brasil, que já estava a aguardar o ensaio clínico e tal ocorreria com um financiamento que se pediu ao PDCT [Projecto de Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia] com a apresentação do projecto "Ensaio de avaliação clínica terapêutica do soro antiofídico trivalente em três províncias de Angola”.

 

A administração de soro antiofídico a uma vítima depende da gravidade do estado de saúde ou todas as vítimas de mordedura de cobras venenosas devem, em princípio, receber, se houver, soro antiofídico?

O soro antiofídico deve ser administrado quando clinicamente o médico determina que o paciente está com sinais clínicos de envenenamento. A gravidade vai determinar a quantidade de soro necessário.

 

Uma vítima de mordedura de serpente venenosa que não receba o soro específico deve ter acompanhamento médico por toda a vida?

Não necessariamente, porque o soro, quando não é específico, não reverterá os sintomas e o organismo, conforme o tipo de veneno, irá absorver ao longo do tempo.

 

Na última etapa de um ensaio clínico de soro antiofídico entram cobaias humanas, possivelmente expostas à mordedura de serpentes vene- nosas? Faço esta pergunta por ter a Dra. dito, se bem entendi, que chegou a ser feito, no Brasil, um ensaio clínico do soro "equino” com o recurso a cavalos.   

O soro anteriormente produzido no Brasil para o ensaio clínico é o "equino”, ou seja, feito em cavalos. O cavalo, por ser um animal de grande porte, consegue produzir grandes quantidades de plasma, que é rico em anticorpos necessários para o soro. Exsanguinotransfusão é o processo pelo qual é retirado o sangue do animal para separar as hemácias do plasma sanguíneo, que é, como já se disse, rico em anticorpos necessários para o soro, sem que ele tenha efeitos adversos de todo este processo, o que o torna o animal de eleição. Em relação ao ensaio clínico, não faríamos pessoas de cobaias, mas sim teríamos, nas províncias seleccionadas para a pesquisa (Luanda, Malanje e Uíge) profissionais de saúde, previamente formados por nós, em unidades de saúde seleccionadas, para que, quando os pacientes acorressem às unidades, pudessem, em caso de necessidade, receber o soro antiofídico e terem o devido acompanhamento, que estava descrito na metodologia do ensaio, quer para aferir possíveis reacções adversas ao mesmo, assim como o grau de reversão dos sintomas devidamente cronometrado.

 

A investigação feita pela equipa que lidera, para a produção de um soro antiofídico com venenos de cobras da nossa fauna, ganhou, em 2015, um prémio na Feira Internacional de Nuremberga (Alemanha). Esta distinção não vos abriu as portas para a divulgação, a nível internacional, do vosso trabalho de investigação científica?

De concreto, foram três prémios, sendo uma medalha de ouro, em 2015, outra, em 2016, e a distinção pela Federação Internacional de Associações de Inventores (IFIA), como melhor trabalho de investigação apresentado na Feira de Nuremberga, em 2016. Após isto, o trabalho notabilizou-se imenso na esfera internacional e penso que é por essa razão que hoje faço parte do grupo de peritos da Organização Mundial da Saúde (OMS) que trabalha com esta temática dos soros e envenenamentos. Tenho sido convidada por instituições internacionais para apresentar conferências, dar aulas e para fazer parte de comités científicos. Este ano já apresentei, em Portugal e Cabo Verde, trabalhos científicos desta linha de investigação e, muito recentemente, no II Congresso Internacional de Medicina da Universidade Privada de Angola (UPRA).

 

Onde há capim há sempre cobras?

Onde há capim há, sim, maior probabilidade de encontrar cobras. para as casas”

PERFIL
Paula Regina Simões de Oliveira

Nacionalidade - Angolana

 

Naturalidade - Luanda

 

Estado civil - União de facto

Filhos - 2

Habilitações académicas - Doutorada

Profissão - Médica

Percurso profissional - Docente universitária, vice-decana da Faculdade de Medicina da Universidade Lueji a Nkonde, em Malanje, por seis anos; decana da Faculdade de Medicina da Universidade Katyavala Bwila, durante seis anos; investigadora com a coordenação, até hoje, de 17 projectos de investigação científica.

Livros publicados 1 como autora e 2 como co-autora.

Passatempo - Ler e ver documentários sobre desastres aéreos da National Geographic

Prato preferido - Bacalhau com natas

Bebida- Sumo de ananás com hortelã

Religião - Cristã

Animal de estimação - Cão

Músicos (nacional e estrangeiro) - Gerilson Insra e Calema

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