Especial

Na hora de verter a cultura pacífica em movimento de rebelião

Falta-lhe à PIDE e às autoridades governativas do território coragem para o processar criminalmente. Ao contrário não lhes faltou, com alguma ousadia diga-se, determinação na incriminação dos nove sacerdotes a quem entre meados de 1960 e princípios de 1961 impôs a prisão para alguns e o exílio para todos, procurando também por esta via estancar a caudalosa corrente independentista que ia crescendo no território, convergindo para uma luta que só teria o seus desfecho mais de uma década mais tarde.

15/03/2023  Última atualização 09H30
© Fotografia por: DR
Concluamos como também o fizemos no nosso Ensaio de biografia política do Cónego Manuel Joaquim Mendes das Neves.

"É provável que o cónego Manuel das Neves tenha evoluído da ideia de um separatismo alcançado através de um progresso por via pacífica, apadrinhado pela ONU, para a necessidade de uma independência conquistada através de uma revolta ou revolução, violentas porque necessário. Provavelmente, é nesta evolução do seu pensamento que radica o impulso que o leva à militância política em agrupamentos locais, mas sobretudo na UPA de quem teria sido talvez o principal "dirigente" ou  "representante"  no território de meados dos anos cinquenta até à sua prisão.

Terá dito " ter chegada a hora de os africanos converterem a sua cultura pacífica de protesto num grande movimento de rebelião capaz de provocar um violento abanão no edifício colonial português em Angola". Ainda que nos interrogatórios policiais se tenha furtado a assumir um compromisso claro com a revolta armada, voltando a  insistir que só concordaria na separação de Angola da Metrópole "depois de se terem  esgotado todos os meios pacíficos para conseguirem que os naturais de Angola tivessem as mesmas regalias que os da Metrópole." Concluiria todavia que esgotados os "meios pacíficos" restaria a revolta.

Mas essa defesa perante a PIDE é um estratagema para evitar uma condenação pesada, atentas as acusações que o perseguiram em todo o processo de investigação. Os seus conterrâneos recordam as suas proclamações quanto à necessidade de:

"uma rebelião para emocionar a opinião pública mundial e tomar Portugal  réu  nos debates da ONU, pois só com essa rebelião os países Afro-Asiáticos encontrariam argumentos sólidos para obrigar o país a conceder a independência a esta Província".

 

Joaquim Pinto de Andrade recorda palavras do Cónego:

"Não é coisa para fazer guerra e vencer, não, é só fazer um acto que dê brado, que galvanize as pessoas no seu nacionalismo e que dê brado lá  fora  e  quebre  o  mito". "Anos seguidos me falou da necessidade de um levantamento militar de angolanos porque, dizia ele, era preciso acabar com este mito, porque Portugal faz tanta propagandana ONU."

É ainda Joaquim Pinto de Andrade que recorda a previsão de Manuel das Neves quanto a um "levantamento" insurrecional a desencadear de acordo com circunstâncias favoráveis de divulgação internacional concluindo portanto "que o homem, o artífice do "4 de Fevereiro" foi o cónego Manuel das Neves". Ausente do território "ouvi pela rádio os acontecimentos e disse: curioso está a acontecer tal e qual o cónego Neves me dizia todos os dias."

Esta conjetura do seu colega no arcebispado de Luanda condiz com o que é possível apurar sobre as responsabilidades de Manuel das Neves no levantamento do "4 de Fevereiro". Responsabilidades que vão muito para além da "mera inspiração" como muitos referem e que o colocam na primeira linha quanto à preparação e desencadeamento de um processo violento que ocorreria, como estava previsto inicialmente, algures entre finais de 1960 e princípios de 1961, ou talvez coincidindo com a grande ofensiva da UPA no Norte do território a partir de 15 de Março. Responsabilidades que se estendem à sua activa participação na obtenção de fundos destinados à aquisição de armas, seja as de fogo que se aguardavam vindas do Congo, seja as catanas que Manuel das Neves adquire e armazena em instalações da própria Sé.

(. ..) É do seu prestígio como sacerdote e militante das causas do separatismo e da independência que emana a capacidade de liderança política que todos lhe reconhecem, mesmo aqueles que por sectarismo político o pretendem alhear de maiores responsabilidades no desencadear da luta pela independência. E que explica a dificuldade da sociedade luandina, e não só a comunidade católica, aceitar a prisão e deportação, o que pode ter potenciado a resistência à opressão colonial e o aprofundamento da crise deste sistema que, em conflito aberto, ainda sobreviveria por mais de uma década."

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Especial