O uso de falsos perfis nas redes sociais, sobretudo no Facebook, para crimes, como burla, planificação de raptos e violações a mulheres, passou a ganhar contornos alarmantes nos últimos anos, no país, com vários cidadãos a queixarem-se, reiteradas vezes, da falsificação das contas por indivíduos estranhos, que as usam para extorquir os amigos.
A Fundação Dr. António Agostinho Neto e a Fundação Kenneth Kaunda pretendem, no futuro, rubricar vários protocolos de cooperação, assentes nos domínios da promoção da Investigação Científica, Educação Patriótica, Tecnologia e Cultura. A intenção foi manifestada pelas partes durante um encontro de cortesia mantido, na terça-feira, numa sala de reuniões do Hotel Intercontinental, em Lusaka, capital da Zâmbia.
Neste curto percurso das minhas memórias, devo uma justa homenagem a um dos guardas do Campo de Concentração do Tarrafal, pelo seu comportamento exemplar, pelo modo como exerceu a difícil missão de nos guardar, mostrando-se sempre muito solidário para connosco: Agnelo Correia. Embora não fazendo já parte do mundo dos vivos, recordo aqui o último Director do Campo, Eduardo Vieira Fontes, o único que conheci durante os anos em que lá estive preso.
Os dois eram cabo-verdianos da Ilha de Santiago, um de Pedra Badejo (Agnelo) e o outro ("Dadinho” Fontes) de Santa Catarina.
O pessoal auxiliar em serviço no Campo nos mais diversos domínios era, também, originário da Ilha de Santiago - incluo nesse lote os guardas auxiliares, os que funcionavam na cozinha, bem como os que estavam ocupados em outras áreas de serviço. Acredito ter havido igualmente mais cabo-verdianos a trabalhar em outras áreas, com os quais não tivemos qualquer relacionamento.
Em suma: o Campo criou postos de trabalho para muitos cabo-verdianos vivendo na Ilha de Santiago. Não tenho dúvidas de que, ao longo dos anos, alguns tenham seguido o caminho da emigração. Mesmo até depois da Independência do Arquipélago.
É justo recordá-los aqui, pois não retenho na memória alguma vez ter sido hostilizado ou maltratado por esses guardas e empregados. Do meu ponto de vista, limitaram-se a cumprir, de forma discreta e eficaz, o papel que lhes era destinado: vigiar o Campo, prestar outros serviços, confeccionar a nossa alimentação.
Por exemplo, o Sr. Pina (chefe da cozinha), várias vezes tentou "fazer milagres” com os produtos de que dispunha. Daí a sua visível satisfação quando, excepcionalmente, possuísse mais algum condimento para melhorar o nosso rancho. O Pina e todos os outros que com ele trabalhavam na cozinha merecem, pois, este meu registo de memória.
Muitos anos depois de ter regressado a Angola, soube que o Pina chegou a visitar o nosso país - a convite não sei de quem. Um convite merecido, por tudo quanto procurou fazer para "aliviar a dor” do nosso degredo.
Acredito que os meus companheiros ainda sobreviventes (já somos tão poucos…) partilhem também esta minha homenagem ao pessoal cabo-verdiano do Campo. Sei, inclusive, de presos políticos cabo-verdianos que conseguiram criar cumplicidades com alguns desses trabalhadores, autênticos "pombos-correio”, de quem recebiam informações sobre o evoluir da situação política. Um ou dois foram homenageados pelas autoridades cabo-verdianas.
Um registo especial vai ainda para o modo como, nos seus postos de trabalho, os guardas se procuravam movimentavar nos dias que se seguiram à tomada do poder em Portugal pelo Movimento das Forças Armadas (MFA). Encaravam-nos de um modo diferente…. Pelos seus olhares e movimentos, percebia-se que gostariam de nos dizer alguma coisa…. Não o fizeram, certamente por receio de serem apanhados. É que tudo estava ainda indeciso…
No dia 16 de Março falhara uma primeira sublevação militar, para a história registada como "O Golpe Falhado das Caldas”. Apenas no dia em que fomos libertados tivemos tão preciosa informação: antes do "Golpe de 25 de Abril”, falhara o "Golpe de 16 de Março”.
Neste registo de memória, estou, pois, quase de saída do Campo do Tarrafal. Preparo-me, psicologicamente, para fazer o percurso de regresso a Angola.
A ABERTURA DO PORTÃO E A ENTRADA DOS MILITARES DO MFA
Ainda antes de "aterrar” em Luanda, tenho a obrigação de rememorar um pouco daquilo que continuo a guardar na memória sobre os últimos dias de Cabo Verde, já despido da condição de preso.
Eu e os meus companheiros fomos "soltos” pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), a estrutura militar que tomara o poder em Portugal e nos restituíra à liberdade.
Foi assim que tudo se passou.
- O portão de acesso à Ala dos Presos Angolanos abriu-se (escancarou-se mesmo), e por ele entraram oficiais das Forças Armadas Portuguesas. Militares, acompanhados pelo Director do Campo, o Sr. Eduardo Vieira Fontes, e um número restrito de guardas.
- Com os militares entraram igualmente civis cabo-verdianos. Coisa estranha e inusitada para quem ali esteve durante anos sem contacto com o exterior.
No exterior do Campo, havia uma guarnição militar com quem nunca tivemos qualquer contacto. Nós, os presos, relacionávamo-nos apenas com os guardas - polícias e auxiliares. Os militares da guarnição mantiveram-se sempre distanciados do Campo. Tinham por missão proteger o Campo, não fosse o PAIGC fazer alguma das suas… Esses militares não se imiscuíam na vida interna do Campo, tal como os funcionários de serviço na secretaria. Eram praticamente "invisíveis”.
O contacto com os cozinheiros fazia-se pelo postigo, na entrega das refeições.
BREVE APRESENTAÇÃO DO SECRETÁRIO DO CAMPO, OLAVO
Por vezes, aparecia dentro do nosso espaço o Secretário do Campo: o Sr. Olavo, um senhor cabo-verdiano elegante e educado, marido de uma angolana. O Sr. Olavo apenas ganhava "visibilidade” quando, por qualquer motivo, o Director se ausentasse. Ele substituía o Director, acumulando a gestão financeira e a logística. Aí nós percebíamos a mudança pelas ligeiras transformações na comida. Procurava abrir os cordões à bolsa…
Tínhamos a impressão que a esposa angolana do Secretário exercia alguma "magistratura de influência” junto do marido… Por que não: Éramos seus compatriotas ali presos. Acredito que, dentro dela, o sentimento fosse parecido com o nosso… Lembro-me de um dia o Olavo ter feito referência a essa sua ligação, dizendo, inclusive, ter amizade com alguns dos nossos familiares. Tal como o Director, Eduardo Vieira Fontes, o Olavo saíra de Angola para assumir aquele ingrato cargo.
A POPULAÇÃO DO TARRAFAL CERCA O CAMPO DE CONCENTRAÇÃO
Vamos agora ao que sucedeu na manhã do dia 1 de Maio de 1974.
Sem o sabermos, decorria na "Metrópole” a primeira grande manifestação comemorativa do "Dia do Trabalhador”, com a participação dos principais líderes políticos acabados de regressar do exílio: Mário Soares e Álvaro Cunhal. E nós completamente às escuras…
- Vozes que repetiam palavras de ordem de teor político e revolucionário: "Viva o PAIGC!”, "Viva o MPLA!”, "Viva a FRELIMO!”.
- Vozes que se aproximavam cada vez mais dos muros do Campo.
- Vozes misturadas com apitos e alguma fanfarra. Faziam supor muita gente…, destacando-se um megafone a estimular o povo.
Era evidente: o Campo tinha sido cercado por populares, não obstante lá fora haver polícias e uma guarnição militar.
O Director, Eduardo Vieira Fontes, ordenou que fossem abertas as casernas e nos reuníssemos junto da biblioteca, um pequeno espaço para leitura e também para, ao sábado, o padre do Tarrafal fazer a sua pregação semanal.
Foi nesse mesmo espaço que, cerca de um ano antes, Eduardo Vieira Fontes nos reuniu para informar que Amílcar Cabral havia sido «assassinado pelos seus próprios homens». Notícia triste que nos abalou imenso. Perdêramos uma das grandes referências das Nossas Causas…
Agora, nesse dia 1 de Maio, estávamos de novo ali reunidos, sem perfeita noção do real motivo da presença daquele grupo de militares e de civis cabo-verdianos. Era suposto que algo muito importante acontecera… Não era o nosso quotidiano. Estava muito longe de ser a nossa rotina diária…
O Director, os militares, os guardas, e mais: também civis apresentados como sendo advogados. Também o Procurador da República (Disse-nos, na altura, ser originário de Angola – de Nova Lisboa). Apresentados os advogados: Felisberto Vieira Lopes (Kaoberdiano Dambará, poeta revolucionário), David Hopffer Almada e Arlindo Vicente. Também o Engenheiro Jorge Querido. Todos exibindo um ar de grande satisfação. Estavam ali para testemunhar a nossa libertação imediata.
O Major que chefiava os militares (anos mais tarde, numa conferência em que estivemos os dois presentes, na Assembleia Nacional Portuguesa, soube tratar-se do Major Judas) tomou a palavra em nome do Movimento das Forças Armadas (MFA), dizendo que, no dia 25 de Abril, acabara de tomar o poder, destituindo o Governo e o Presidente da República. Tudo novidade para nós.
O Major disse-nos que iríamos ser libertados imediatamente num acto presenciado pelos advogados e pelo Procurador da República – formalismo necessário. Chamados individualmente, pelos nomes completos. Recuperáramos a nossa identidade total…
Em nós só cabia surpresa e alegria. Restávamos no Campo 79 presos angolanos (dos 107 que por lá passáramos), distribuídos por duas casernas. Momento glorioso, mas ainda misturado com incógnitas…
"Dadinho” Fontes não teve coragem em pronunciar a palavra-chave: "Golpe de Estado”
O Director procurou "amenizar o ambiente”: não falou em "Golpe de Estado”, nem em "Tomada do Poder”. Cuidadosamente, lá foi dizendo que tinha havido "Uma substituição no governo…” Atrevidamente, perguntei ao Director: «Sr. Director, será que o Ministro do Ultramar trocou de pasta com o Ministro da Agricultura? Ou coisa assim parecida…?». Embaraçado, o Director respondeu: «O Professor Marcelo Caetano deixou de ser Presidente do Conselho de Ministros e o Almirante Américo Thomaz foi substituído na Presidência da República». A coisa já começava a ficar mais clara…
Com a minha habitual irreverência, disse, então, ao Director que percebia ter havido, de facto, um "Golpe de Estado” em Portugal. Meio engasgado, respondeu-me: «Não se tratou propriamente de um Golpe de Estado, mas, sim, de uma alteração no poder…».
O Major resolveu esclarecer o assunto, para que não restassem mais dúvidas: «Os militares organizados no Movimento das Forças Armadas decidiram tomar o poder e detiveram o Professor Marcelo Caetano, afastando também o Almirante Américo Thomaz!». «Foi criada uma Junta de Salvação Nacional, composta por Generais e Almirantes e dirigida pelo General António de Spínola». Que era por determinação dessa estrutura que eles estavam ali para libertar os presos políticos…. «A partir de agora os senhores deixam de ser presos!».
A MINHA ENTREVISTA À "RÁDIO SOTAVENTO”
Estava presente uma equipa da "Rádio Sotavento”, emissora que emitia a partir da cidade da Praia. Quiseram entrevistar-me. Sabiam que entre os presos angolanos estavam "Os irmãos Pinto de Andrade, Justino e Vicente”. Perguntei ao Major se autorizava que eu falasse. Com o seu assentimento, respondi, então, ao que me foi perguntado: sobre a minha disposição e sobre as minhas expectativas quanto ao futuro de Portugal e das suas Colónias.
É evidente que, naquela altura, de modo algum poderia falar com propriedade sobre o que se estava a passar na "Metrópole” … Pretendendo certamente ajudar-me, o Major foi dizendo que o General António de Spínola ponderava a possibilidade de alargar o âmbito das liberdades políticas para as "Províncias Ultramarinas”. Foi precisamente a expressão "Províncias Ultramarinas” que me colocou de sobreaviso…
Poderia estar em curso mais uma "manobra de diversão”, tal como a anterior, quando o Professor Marcelo Caetano decidiu "elevar” Angola e Moçambique à condição formal de "Estados dentro da República Portuguesa” … E eu disse, claramente, aos microfones da "Rádio Sotavento”, que tal solução não nos satisfaria, porque não era para isso que fôramos presos, condenados, e deportados… O Major do MFA acrescentou que o General António de Spínola escrevera e fizera publicar um livro intitulado "Portugal e o Futuro”, no qual exprimia o seu pensamento sobre como resolver o problema que se vivia.
Foi durante o mandato do General Spínola na Guiné-Bissau, que morreu Amílcar Cabral, assassinado em Conacri. Para mim, o General Spínola era suspeito… Finda a entrevista – partilhada também pelo meu irmão Vicente, a quem passei a palavra – fomos autorizados a preparar as nossas "bicuatas” (nossos parcos pertences).
SAÍDA DO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO
Saímos do Campo ao mesmo tempo que os presos políticos cabo-verdianos instalados na outra Ala. Caminhei ao lado do Pedro Rolando dos Reis Martins – o "Xinói”.
O Pedro era muito alto e bem conhecido pelo povo da Ilha. Ao encaminharmo-nos para a multidão que cercara o Campo, do alto dos seus cerca de 2 metros de altura, levantou o punho e gritou: «Viva a Independência de Cabo Verde!», «Viva Amílcar Cabral!». A multidão rompeu a barreira policial e da tropa, levando-nos para o seu meio.
Queriam tocar-nos com as mãos. Queriam ver-nos de perto. Queriam sentir a nossa respiração. Queriam olhar-nos bem nos olhos. Éramos os seus heróis que, finalmente, saiam do cativeiro.
Entre a multidão, de megafone em punho, gritando palavras de ordem, estava o Carlos Tavares (o homem do megafone…), um ex-preso político do Tarrafal que já estava em liberdade. Pertencera ao grupo de presos cabo-verdianos que encontrámos na "Caserna 3”, ainda na Ala dos angolanos: Carlos Tavares, Luís Fonseca, Jaime Ben Hare Schofield, Carlos Lineu Miranda.
O Carlos Fonseca regressara agora ao Campo para nos resgatar. Foi extraordinário vê-lo ali entre a multidão comandando o protesto, colocado na linha da frente, nesse momento inesquecível… O abraço dado pelo Carlos Tavares ao Pedro Martins, ao Lineu Miranda, ao Luís Fonseca, ao Jaime Schofield e aos restantes prisioneiros. Companheiros de luta que se reencontravam fora dos muros do Campo do Tarrafal, saboreando pela primeira vez a libertação.
O Campo deixara de ser a nossa morada. Víamos agora com mais nitidez todo o ambiente à volta do Campo, com o povo ali reunido, sorrindo de esperança. Víamos o Carlos Tavares de megafone na mão, esperando por nós, na linha da frente. Tão bom, tão reconfortante…
Transportados em viaturas particulares, caminhámos juntos para a cidade da Praia, acenados pelo povo da Ilha postado ao longo da estrada. Queriam ver e vitoriar os presos políticos finalmente libertados. Presos angolanos e cabo-verdianos. E muitos populares que se juntavam a nós e engrossando a nossa caravana. Passámos por Santa Catarina (Assomada) – terra do Pedro Martins e do Carlos Tavares – grande viveiro revolucionário do PAIGC na Ilha de Santiago. Por coincidência, também a terra do Director "Dadinho” Fontes.
CIDADE DA PRAIA, VITORIOSOS!
Depois de uma caminhada extenuante para quem tinha acabado de sair da prisão, entrámos na cidade da Praia. Entrámos em apoteose. Dirigimo-nos para o Coreto, onde se improvisou um comício, o primeiro da minha vida.
"XINÓI”, O HERÓI DO MOMENTO
O Pedro Martins ("Xinói”) e o Mais-Velho Carlos Lineu Miranda eram seguramente os presos cabo-verdianos mais emblemáticos. O Mais-Velho Lineu Miranda que tinha um longo percurso de vida e de luta – pertencia à geração de Amílcar Cabral - manteve-se discreto. Mas o Pedro Martins, jovem cheio de entusiasmo e muito famoso na Ilha de Santiago, subiu para o Coreto levando-me de arrasto. Gigante, bom orador, dirigiu-se, em crioulo, ao público presente. Fez um empolgante discurso de victória. Era o jovem herói de regresso ao convívio do seu povo. Era um "filho muito querido”. Terminado o seu discurso, deu-me a palavra. Também falei, mas não me lembro do que disse. Nem sei se falei bem. O certo é que também fui muito aplaudido.
O povo ali presente descobriu que eu era o tal "Pinto de Andrade” que momentos antes dera uma entrevista para a Rádio, a partir do Campo da Morte Lenta. Pediram que o meu irmão Vicente também subisse ao Coreto e falasse. Queriam ver o outro "Pinto de Andrade”, o irmão mais novo. Éramos dois jovens irmãos, eu de vinte e seis anos e o Vicente, com vinte e quatro. O nosso nome também tinha grande simbolismo.
O Vicente subiu ao Coreto e falou. Falou ao lado de mim, improvisando também um discurso de glória. Naquele momento, tornámo-nos vedetas. Mas a grande vedeta era mesmo o Pedro Rolando, um filho da terra.
Eu e o Vicente éramos somente "netos da terra”, por parte do nosso Avô Vicente José Costa, natural de Santo Antão. No fundo, éramos todos irmãos, uns mais próximos, outros mais afastados. Éramos, sim, todos irmãos…
PELA CIDADE DA PRAIA
Depois, dispersámo-nos pela cidade. Penso que alguns dos restantes presos angolanos foram colocados em instalações apropriadas na cidade. A grande maioria, afinal, ficou na Vila do Tarrafal, acolhidos pelo povo do Tarrafal.
Ainda me lembro de ter entrado num bar mesmo junto ao Coreto. Pedi uma gasosa e serviram-me uma dizendo-me que era produzida em Angola. Acrescentaram que, no porto, estava acostado, saído de Angola, um navio que levava milho.
Para eles, Angola era rica, pois era de onde vinha comida para o povo do Arquipélago. A imagem que tinham de Angola era de um território cheio de riqueza, com muita gente boa e terra demasiado fértil.
Cabo Verde sofria ainda o efeito de uma seca profunda que começara em 1968. Terra seca, ressequida, encarquilhada, via-se apenas pedra e mais pedra… Era pedra até ao horizonte. O gado morrera ou fora enviado para a Guiné. Ficaram apenas as cabras que se alimentavam das raízes resistentes por debaixo das pedras. Ficaram também os corvos que conseguiam resistir a todas adversidades. Os corvos tornaram-se, enfim, as únicas "testemunhas” de todas as calamidades…
Os corvos resistem durante muitos anos, talvez centenas de anos... Por isso, nós dizíamos que aqueles corvos viram passar o Vasco da Gama, o Camões, o Padre António Vieira, e até os Corsários (como Francis Drake) que deambularam pelo Arquipélago… Os corvos deviam ter memória de tudo isso. Sim, os corvos, porque os homens foram sendo arrastados e afastados por todas as calamidades. O Arquipélago tornou-se uma plataforma de emigrantes, na narrativa dos poetas.
A SIMPATIA DO "NHÔ JULINHO MANCO”
Eu, Vicente, Alcino Borges, Katiquila e Coquita fomos acomodados em casa de um funcionário público, popularmente conhecido por "Nhô Julinho Manco” - a sua alcunha.
"Nhô Julinho Manco” e esposa acolheram-nos carinhosamente, criando espaço nos quartos, para nos sentirmos bem. Eu, Vicente e Alcino ficámos juntos num dos quartos, Katiquila e Coquita foram instalados num outro espaço. Estes dois companheiros não estavam a acreditar no que estava a suceder… Eram camponeses, um do sul de Angola (Teodoro Augusto Katiquila), o outro do norte (Domingos Coquita).
COQUITA E KATIQUILA – HOMENS PUROS
Os dois largaram os companheiros com quem tinham sido presos e caminharam connosco, sem nunca nos largarem, e beneficiaram do nosso estatuto. Conseguiram: acompanharam-nos para todo o sítio. Diziam-nos, insistentemente, que estavam a ser "grandes senhores”. E nós dizíamos que sim, que eles mereciam esse momento de glória.
O Domingos Coquita tinha sido preso com o Sr. Bento Kipaia, de quem era supostamente "serviçal”. De tal modo que, na cela, atendia, sempre serenamente, a todas as necessidades do Bento Kipaia: lavava-lhe o prato, servia-lhe a comida, fazia a cama ao seu antigo "patrão”. Assumia tudo isso sem qualquer reclamação. Sentia que, mesmo preso, deveria manter a relação hierárquica do "serviçal” para com o seu "senhor”. Ambos teriam pertencido à UPA/FNLA. Ironia da vida: Domingos Coquita apanhara 24 anos de prisão, e Bento Kipaia, seu "amo”, apenas 6 anos de cadeia. Como se o "serviçal” tivesse arrastado para a luta o seu "senhor”…
O Teodoro Augusto Katiquila foi preso por ligação à UNITA. Um camponês muito interessante, cheio de sentido de humor. Com ele, aprendemos a conhecer muitos dos meandros da cultura dos povos do Planalto Central de Angola. O meu bom amigo e companheiro do Tarrafal levara com "apenas” 22 anos de cadeia. Mesmo assim, nunca o vi triste.
O Katiquila e o Coquita com um sorriso permanente a ornamentar-lhes o rosto. Símbolo perfeitos do optimismo e da boa-disposição. Por tudo quanto representavam, eu dizia-lhes que gostaria que vivessem mais de mil anos, para emprestarem mais alegria à vida.
Nesse dia da saída do Campo, e nos dois dias que se seguiram percorremos a cidade da Praia, sempre acompanhados por gente simpática. Inclusive, foi organizado um jantar em nossa homenagem, de nós os cinco, os inseparáveis.
"Nhô Julinho Manco” mostrou-nos alguns quadros pintados pelo Pedro Martins. Quadros guardados secretamente, para não caírem nas mãos da PIDE… Quadros do Pedro Martins, revolucionários, expressavam mensagens de luta… Lembro-me de um deles cheio de simbolismo: do ventre de uma grávida saía algo parecido com uma bandeira – era a bandeira da Independência.
No dia seguinte, o segundo dia depois da libertação, participámos num almoço dedicado a todos os presos, angolanos e cabo-verdianos. Não me lembro de quem partiu tal iniciativa, talvez de uma associação ou mesmo uma organização improvisada pela malta da Cidade da Praia. Foi ai que voltámos a encontrar os nossos companheiros que perdêramos de vista depois do comício do Coreto.
UM ANTÓNIO CARDOSO PERDIDO NA ILHA
O António Cardoso – o Poeta Anarquista - esfumou-se completamente. Perdeu-se nos labirintos da cidade. Penso que se foi juntar a velhos amigos ou em busca de fazer novos amigos. Vi-o passar sentado no banco traseiro de um Mini-Jeep descapotável, a perna direita virada para fora, seguramente a saborear o clima da liberdade finalmente alcançada.
O António Cardoso esteve preso cerca de 14 anos. Prenderam-lhe o corpo, mas não lhe agrilhoaram a alma. Nunca nenhuma parede teve força suficiente para prender a alma de um poeta… Dentro da cidade da Praia, o Cardoso virou um autêntico passarinho a saltitar de galho em galho… Deu vazão ao seu espírito libertário e à sua alma anarca.
Nesse dia, passou por nós o poeta que nunca se deixou prender, com o rosto a sorrir em toda a dimensão, coberto por uma espessa barba de muitos anos. Para o Cardoso, a Cidade da Praia era o espaço que lhe faltava para respirar ar puro. Era o Poeta desnudando a sua essência: prenderam-lhe o corpo, mas nunca lhe prenderam a alma…
Regressámos para Angola deixando para trás o Poeta Anarquista. Com ele ficou também o César Teixeira, um revolucionário contador de estórias, um homem de sete ofícios. E ficou também o que restou do corpo do Chipoia Magita – o Príncipe Quioco que morreu no Campo.
O Poeta António Cardoso queria voar… Talvez quisesse navegar… Voava e navegava na sua imaginação… Deixou-se ficar por lá, por algum tempo, mergulhado naquele recanto do Oceano…
OS PAIS DO POETA ANARQUISTA
Quando chegámos à Luanda, fomos colocados na "Casa da Reclusão”. E lá apareceram os Pais, já Velhos, do Poeta Anarquista…. Tinham ido receber o filho único que não voltou connosco. Disse-lhes que o deixáramos ficar na Cidade da Praia, preparando-se, talvez, psicologicamente, para a retoma a um ciclo de vida de que já estava desabituado. Talvez quisesse apenas o reencontro com a realidade que tinha perdido há 14 anos – É que já tinham decorrido cerca de 14 anos…
Eu disse aos Pais do nosso companheiro António Dias Cardoso que o vira passar, sentado no banco de trás de um Mini-Jeep descapotável, com a perna direita colocada na berma e a espessa barba varrida pelo vento que passava…. Mas que ele estava bem. Estava vivo. Com o sorriso de quem, finalmente, saíra de uma gaiola…. O Poeta Anarquista, meu companheiro de longos anos de cadeia, batia as suas asas sobre todo um Arquipélago…
Seja o primeiro a comentar esta notícia!
Faça login para introduzir o seu comentário.
LoginAs reformas económicas operadas pelo Executivo angolano despertam o interesse do sector privado francês, revelou, em Luanda, o conselheiro para os Assuntos Globais do Presidente de França, na antevisão à visita de Emmanuel Macron ao país, no âmbito de uma digressão africana, a partir de 5 de Março, que inclui, também, o Gabão, a RDC e a República do Congo.
O Banco Nacional de Angola (BNA) disse, esta terça-feira, em Luanda, que “ainda é muito cedo” para saber qual será o desfecho do Banco Económico, que se encontra actualmente numa “fase de intervenção correctiva”, sem descartar a possibilidade de encerrar.
O Interclube bateu o Atlético Sport Aviação (ASA), por 95-79, no Pavilhão da Cidadela e qualificou-se para a final da Taça de Angola, esta terça-feira, com Emanuel Quezada em grande plano, como homem do jogo, contribuindo com 23 pontos, nove assistências e seis ressaltos.
O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, criticou hoje Governos e outras autoridades que usam para fins políticos o racismo e a discriminação, advogando que "estão a brincar com o fogo".
O Comité de Política Monetária do Banco Nacional de Angola decidiu, esta terça-feira, reduzir a taxa básica de juros - Taxa BNA de 18 para 17 por cento, medida que deverá resultar num maior acesso ao crédito bancário pelos agentes económicos no mercado nacional.
O Quénia, onde cerca de 4,4 milhões de pessoas passam fome devido à seca, recebeu 25.000 toneladas de cereais da Ucrânia, o primeiro carregamento a chegar ao país desde a assinatura do acordo sobre os cereais, anunciou, esta terça-feira, a Organização das Nações Unidas (ONU), avança a Lusa.