Cultura

Livro analisa estratégia militar sul-africana

Miguel Júnior é um General, um combatente das lutas pela independência e depois das guerras civis, tendo também vivenciado a luta contra o poder sul-africano.

24/01/2021  Última atualização 13H32
Historiador Miguel Júnior, General, um combatente das lutas pela independência © Fotografia por: Edições Novembro
Mas, apesar desta sua longa e rica experiência consegue dar-nos uma visão distanciada e isenta sobre as guerras que vivenciou. Visão a que nos foi habituando nos seus já muitos escritos anteriores, em que nos presenteou com uma das mais importantes e recentes interpretações da história de Angola, que recordamos conheceu uma longa guerra, muito diversa ao longo de 30 anos (1961-1991), onde os combates regulares e irregulares se misturaram e onde tivemos guerra de guerrilha ou o maior combate de blindados de toda a história da África Subsaariana.

Este interessante livro tem essencialmente duas grandes partes e começa por nos caracterizar o contexto estratégico em que a África do Sul começa a esboçar a sua estratégia total. O período da ordem dos Pactos Militares, da Destruição Mútua Assegurada e das guerras por procuração nas periferias de desempate bem como do importantíssimo período anticolonial no seio das Nações Unidas.
Nesta primeira parte Miguel Júnior procura os fundamentos políticos da estratégia total e remonta ao período da colonização Africander e britânica, nas lutas de ambos para a afirmação da soberania e pela posse da terra, bem como as lutas contra os reinos locais, como o Reino Zulu. Este era um período onde já se esboçavam as divisões raciais, que se foram incrementando com o crescimento económico.

Depois o autor aborda um pouco as guerras anglo-boers e a sequente incorporação forçada dos Africanders no Império britânico, mas que apesar de tudo viriam a governar regiões como o Transval e as colónias de Orange e do Cabo. Mas foi por negociação entre os colonos que acabaria por ser criada em 1909 a União Sul-Africana, tendo os autóctones sido excluídos da governação; estes, no entanto, em 1912 viriam a criar o Congresso Nacional Africano (ANC). Depois veio a I Guerra Mundial e as Forças de Defesa da União passaram a controlar o Sudoeste Africano alemão, dando início às suas intervenções além-fronteiras.

Miguel Júnior analisa sumariamente as evoluções económicas, sociais e políticas entre as duas Grandes Guerras, período onde se acentuaram a discriminação e a segregação racial, vindo a partir de 1948 a ser imposto o domínio do Poder Africander, que implantou um largo programa de engenharia social, o apartheid, empurrando para a clandestinidade as forças políticas da oposição. Esta situação força a uma mudança de atitude da oposição, que envereda em 1960 por uma, segundo Nelson Mandela, desejável luta armada. O autor mostra-nos de uma maneira magistral os antecedentes internos e externos, os factores condicionadores e potenciadores da definição da estratégia sul-africana, resultante da vontade do Partido Nacional, que a partir do famigerado ano anti-colonial das Nações Unidas, 1961, converteu a União Sul Africana numa República.

O regime não mais parou de ser contestado e condenado nos fóruns internacionais. No contexto regional destaca ainda os desafios estratégicos provocados pelas lutas armadas e posterior independência em Angola e em Moçambique, bem como o derrube dos regimes brancos na África Austral. Neste capítulo, Miguel Júnior, com base nos White Papers on Defence, analisa ainda as linhas de força da Estratégia Total Nacional sul-africana, dando ênfase à considerada necessária intervenção em Angola, onde soviéticos e cubanos intervinham na guerra civil.
Os preciosos documentos analisados identificam claramente as metas e os objectivos nacionais sul-africanos, onde são consideradas as estratégias gerais político-diplomática, sócio-económica, militar e psicológica.

Na segunda parte do seu livro, Miguel Júnior dedica-se à análise das duas estratégias fundamentais: Política Externa e Política de Defesa. Na primeira análise salienta a Diplomacia de Desafio ou coerciva e as suas diversas fases ao longo do período em análise no livro, que recordo vai de 1948 a 1994, do acto de equilíbrio de Malan, passando pela Política de retirada de Verwoerd, e pela árdua luta pelo compromisso de Vorster, salientando o novo compromisso externo musculado de Pick Botha, que veio a privilegiar as intervenções externas no contexto regional e impulsionar o programa nuclear, passando assim a Forças de Defesa a assumir papel preponderante na Política Externa, num contexto em que o isolamento internacional se acentuava, mantendo no entanto o apoio dos EUA, apoio que Miguel Júnior, com recurso a diversificadas fontes, analisa de forma transversal.

Também internamente a situação se deteriorava levando ao declarar do estado de emergência nacional em 1986, demonstrativo que alguma coisa teria de mudar nas políticas e no modelo social do regime vigente. No fundo, como conclui o General Júnior, na era do apartheid a política externa foi dominada pela geopolítica da guerra, uma virtual extensão e uma exportação da política interna.

Depois o autor analisa a estratégia da Política de Defesa e caracteriza os seus variados períodos desde a II Guerra Mundial e a criação das Forças de Defesa da União - as South African Defence Forces (SADF), bem como a transição das tácticas e estratégias convencionais para as de contra-insurreição, explicando a evolução da estratégia genética dos orçamentos e da mobilização, até à estratégia estrutural com vista a melhorar os níveis de prontidão, numa situação fluída em que era essencial para o Poder preparar-se para todas as contingências.

Curioso notar que as SADF passaram nos anos oitenta a integrar mulheres brancas e outros grupos étnicos, incluindo negros. Esta segunda parte do livro finda com um capítulo que descreve as doutrinas estratégicas adoptadas: a Postura de Defesa, a Dissuasão, a Contra-insurreição e a Assistência às autoridades civis.
Aqui nós destacamos um aspecto particular e original da estratégia total sul-africana: o desenvolvimento do programa nuclear limitado como parte da estratégia da dissuasão, procurando manter a ameaça externa longe das suas fronteiras.

Não sendo novidade que os sul-africanos tinham, desde o 25 Abril em Portugal, decidido por uma capacidade nuclear, aprendemos com a leitura deste livro que De Klerk confirmou a existência de seis ogivas nucleares, e que apesar da intenção do seu emprego nunca ter sido oficial, sendo apenas passada indirectamente e de forma subliminar, sabemos hoje que chegaram a analisar a modalidade de acção do emprego táctico deste tipo de armamento sobre uma capital africana, Luanda em 1987, pois a sua situação militar em Angola era já de grande desespero, sendo esta a primeira vez que em África se colocou ênfase na dissuasão nuclear.
No fundo a estratégia sul-africana procurava ganhar tempo para a manobra política e o alcançar de um acordo que também lhe permitiria uma evolução interna rumo ao fim do apartheid.
Com o fim da Guerra Fria o contexto estratégico altera-se substancialmente e a Paz chega a Angola, retirando-se os cubanos e concretizando-se a independência da Namíbia.

Por fim, o livro analisa a evolução da guerra e as mudanças que se operaram no interior da África do Sul, começando pela descrição da Modalidade de Acção Estratégica directa, interna e externa, em que a estratégia militar ofuscou as demais estratégias, e em que a postura de guerra estava intimamente associada ao seu objectivo político-estratégico - a defesa do sistema do apartheid, tendo as campanhas militares a finalidade de desarticular as forças militares oponentes da região, de modo a facilitar a sobrevivência do regime sul-africano que remava contra a corrente    internacional.
O Poder sul-africano cometera no entanto vários erros na análise, não só da evolução do contexto estratégico global, mas no contexto regional não perceberam que à sua estratégia total se opunha ao mesmo tempo outra estratégia total, não assumida, a do Poder em Luanda e que acabou por sair vitoriosa.

As mudanças viriam finalmente a ocorrer no seio de uma sociedade fracturada, onde era cada vez mais difícil, senão impossível, o Poder articular a sua estratégia total nacional. A alternativa era negociar o conflito regionalmente e encetar uma transição política interna, pondo fim ao Regime de apartheid.
Para concluir, considero que todos aqueles que apreciam os estudos da Estratégia, das Relações Internacionais e da História Militar devem ler este precioso livro em que o General Michel mostra toda a sua maturidade académica e científica afirmando-se como Historiador Militar de primeira linha.

*Doutor em História

Proença Garcia* 

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