Entrevista
Júlio de Almeida: “É falso que Angola tenha começado com o Reino do Kongo e as suas relações com Portugal”
Escritor bissexto, Júlio de Almeida “Jujú” acaba de publicar, aos 80 anos, o seu segundo romance, “O incesto real”, sob a chancela da editora Kacimbo. O primeiro, “VAICOMDEUS”, foi publicado há 15 anos. Na entrevista que a seguir se publica, o escritor fala do seu novo livro e das questões que o mesmo suscita. Defende que Angola “como entidade territorial, tal como a temos hoje, é muito recente” e que “é falso que tenha começado com o Reino do Kongo e as suas relações com Portugal”. E explica os motivos que o levaram, em 2003, a abandonar a condição de deputado pelo MPLA, partido que, segundo disse, “tem vindo a perder o charme político e filosófico” e a dar tiros nos pés com posicionamentos “a maior parte deles movidos pela táctica imediata e não baseados num ideário político consequente”
27/02/2021 Última atualização 22H50
© Fotografia por: DR
Fale-nos, por favor, da génese deste livro. Como é que tudo começou, que inquietações ou motivações o levaram a escrevê-lo?
A génese deste livro foi determinada por duas vertentes: a primeira foi motivada pelo apregoado slogan de África ser o "berço da Humanidade”. Se assim é, então somos todos primos uns dos outros e temos um antepassado comum, a Lucie (o mais antigo dos humanos conhecido) que, se fosse viva teria hoje 3,2 milhões de anos. A segunda vertente tem a ver com o demasiado desconhecimento que as actuais gerações têm da sua própria história. Fala-se (erradamente) em 500 anos de colonialismo, como se as relações entre os povos de Angola e Portugal fossem linearmente sempre iguais, tanto faz que se fale do ano 1500 ou do ano 2000.
O seu romance tem um grande suporte de pesquisa histórico-documental. Essa pesquisa foi feita em Angola e no exterior? Em quanto tempo?
As fontes para a escrita deste livro foram de duas ou três ordens: a primeira decorre de muitas leituras de fontes escritas existentes sobre as diferentes épocas que o texto cobre; a segunda sobre pesquisas feitas na Net; e a terceira sobre memórias e lembranças pessoais, que não são a mesma coisa, sendo que designo de memórias factos e situações por mim vividos, enquanto que lembranças são também factos e situações de que tive conhecimento, mas que aconteceram ou foram vividos por outros.
O Reino do Kongo continua a inspirar os escritores angolanos. No seu caso concreto, onde reside o poder de atracção do Reino do Kongo?
O Reino do Kongo, ou melhor o encontro deste Reino com parte dum mundo longínquo e tão diferente, representa um choque de civilizações, cujo estudo é sem dúvida aliciante. Se tivermos em conta a correspondência trocada pelo Rei do Kongo Mvemba a Nzinga com três sucessivos reis de Portugal, estaremos em presença, em primeira mão, da visão autóctone da história mútua daqueles dois reinos, história essa que habitualmente só é contada por uma das partes. Por essa razão é dado relevo especial ao conteúdo das cartas escritas pelo Reino do Kongo.
D. Pedro, o primo-irmão de D. Henrique, é uma figura que realmente existiu ou é fruto da imaginação do escritor?
O personagem D. Pedro faz parte da ficção do livro. O facto de ter sido pai de dois gémeos é pura invenção minha. Mas aconteceu mesmo que um primo-irmão de D. Henrique fez parte dos integrantes da comitiva do futuro bispo. Aproveito a oportunidade para declarar que, apesar das pesquisas por mim feitas, não encontrei relato algum em que se dissesse qual o nome original (kikongo) quer do primo, quer do próprio D. Henrique. E essa lacuna persegue-me desde que há 60 anos, pela primeira vez, tomei contacto com "histórias” sobre este Reino.
D. Henrique, o filho do Mani Kongo Mvemba a Nzinga (D. Afonso I), apesar de ordenado bispo, ao longo da sua vida não terá realizado actividades "em prol da organização eclesiástica” no Reino do Kongo. Terá sido então um prelado relutante?
A actividade eclesiástica de D. Henrique no Reino do Kongo, também não mereceu destaque na documentação histórica, salvo a que está ligada ao seu contacto com o Papa da altura e as condições em que foi ordenado padre e posteriormente nomeado como Bispo de Útica, mesmo sem bispado, como se refere no livro.
Ao ler o seu livro fiquei com a impressão de que, mais do que um romance, é na verdade um ensaio sobre as origens de Angola. É no Reino do Kongo, na dinâmica das suas relações com Portugal, que Angola começa?
Não me parece correcto, ou melhor, é falso que Angola tenha começado com o Reino do Kongo e as suas relações com Portugal. Angola, como entidade territorial, tal como a temos hoje, é muito recente e, nas suas origens e contactos com os mundos exteriores, é composta por muitas parcelas. Mas que a dinâmica das relações entre os diferentes reinos que hoje integram Angola e o mundo exterior contribuíram para o que hoje é Angola, é facto incontestável. E merecem outros livros, de história ou de ficção, que sem dúvida irão aparecer.
O seu livro vem colocar-se no centro de discussões muito actuais sobre identidade e nacionalidade. Esse tipo de discussão 45 anos depois da nossa independência o inquieta?
Claro que me inquieta, como ao longo de minha vida a condicionou em parte, estas questões de identidade e nacionalidade. Não há como escapar ao facto de ainda não sermos "uma só Nação”, embora todos devemos ter idêntico Bilhete de Identidade. Pode-se contribuir positivamente na questão de termos a mesma identidade ou contribuir negativamente. A primeira Lei Constitucional que representava a ideologia de quem organizou e participou na luta armada de libertação nacional defendia identidade de angolano baseada em dois vectores de per si: jus soli (nascido(a) em Angola é angolano(a); e jus sanguini (filho(a) de angolano(a) é angolano(a).
Esta representa uma contribuição abrangente na questão da identidade, o que é contrariado na actual Constituição que exclui o jus soli. Houve mesmo uma lei que determinou que o BI não fosse idêntico para todos, mas onde se legislou a diferenciação rácica dos cidadãos. Felizmente que acabou por ser revogada esta manifestação de racismo. Somos ou não todos descendentes da Lucie? Quem é racista ou tem preconceitos rácicos ainda não percebeu que também, ele próprio, é simplesmente humano. Talvez, com o Tempo (o personagem e narrador do meu livro) ele venha a aprender a ser humano.
O Incesto Real existiu ou não?
Quando diz que pessoalmente as questões de identidade e nacionalidade condicionaram em parte a sua vida, pode ser mais concreto?
Embora o MPLA sempre tenha demonstrado uma opção política humanista e universal, portanto anti-racista, e eu próprio tenha feito a licenciatura em Engenharia com uma bolsa de estudos (1962 a 1968) da UGEAN – União Geral dos Estudantes da África Negra sob dominação colonial portuguesa – que era uma organização afecta ao Movimento, de facto só a partir de 1968, na Conferência da Frente Leste, foi instituído o princípio de indivíduos de "raça” branca poderem ser considerados angolanos e integrarem em plenitude o Movimento. Tal aconteceu pela primeira vez, com o médico Tó Zé Miranda, em 1969, e eu próprio aguardei em Argel, desde fins de 1968 até fins de 1971, que me chamassem e fosse integrar os quadros da Frente Leste. É só um exemplo.
O seu livro não se fica pelo Reino do Kongo. A infância de Nzadi em Moçâmedes nos anos 1950 confunde-se com a do autor? São as suas memórias de infância?
A espira de tempo dedicada a Moçâmedes é, de certo modo, uma homenagem àquela região do nosso País. E socorri-me, como fica evidente, de memórias e lembranças desses meus tempos de menino e adolescente.
Nos capítulos (espiras) finais o comandante Jujú parece emergir com as suas memórias. Isso é sinal de que já não vai escrever a sua auto-biografia?
As espiras finais deste Incesto Real ocorrem de facto num espaço de tempo por mim vivido. Não são "as minhas” memórias, mas – com base no que realmente aconteceu – representam a ficção do autor sobre os mais recentes factos históricos. Os percursos dos personagens são minha ficção. Os factos são históricos e são mais importantes do que a minha biografia.
Volto a colocar a questão: tem em agenda a escrita da sua biografia, dada a sua qualidade de partícipe e testemunha importante de processos históricos decisivos na consolidação da independência do país?
Não pretendo escrever a minha biografia para além do que já foi dito e escrito em diversas entrevistas e o que de autobiográfico ressalta dos dois romances por mim escritos.
Assumiu cargos públicos de relevância mas a dada altura retirou-se da vida política. O que o fez tomar essa decisão?
Eu retirei-me da vida política em 2003, quando perfiz 63 anos de idade. Na altura era deputado e, por escrito, expliquei à direcção do Grupo Parlamentar, sem fazer grande alarde, que já não me revia nas opções políticas que eram seguidas pelo Movimento. E, deste modo, não participei no banquete a bar aberto que se estendeu pelos seguintes 14 anos que, diga-se, foi só para convidados.
O estado de coisas actual no seio do Movimento, estamos a falar do MPLA, em matéria de opções políticas, ainda não é convidativo para um eventual regresso como militante? Quais são as opções estratégicas do MPLA de hoje que lhe desagradam particularmente?
O MPLA tem vindo a perder o charme político e filosófico que já teve e eu, aos 80 anos, também os perdi, o charme, a energia e a atracção do antigamente. O que mais me desagrada são "os tiros nos pés” que conformam vários posicionamentos do Movimento, a maior parte deles movidos pela táctica imediata e não baseados num ideário político consequente, apesar das muitas críticas, sugestões e propostas que vários ex-militantes vêm fazendo publicamente.
Já está a escrever um outro livro ou está ainda a viver a ressaca d’O incesto real?
O Incesto Real aparece vinte anos depois do lançamento do VAICOMDEUS. E só começou a "viver” agora, isto é, a ser lido. Não tenho a certeza se haverá um terceiro romance. Deixemos o Tempo aconselhar.
PERFIL
Júlio de Almeida "Jujú” nasceu na província do Namibe em 1940. Licenciado em Engenharia Mecânica (1962/1968), trabalhou de 1968 a 1971 como engenheiro em Argel, onde integrou a delegação local do MPLA e o Centro de Estudos Angolanos. Foi comissário político na Frente Leste entre 1971 e 1974. É co-signatário da Proclamação das FAPLA.
Tornou-se bastante conhecido entre os angolanos entre 1975 e 1976, na qualidade de porta-voz do Estado-Maior das FAPLA, quando diariamente comunicava à imprensa sobre a situação político-militar. Foi vice-ministro dos Transportes (1976/1983) e trabalhou na qualidade de engenheiro entre 1983 e 1992 como director de Estudos e Projectos. Entre 1984 e 2014 foi professor na Faculdade de Engenharia da Universidade Agostinho Neto. Foi ainda deputado à Assembleia Nacional pela bancada do MPLA, de 1992 a 2003. É membro fundador da Associação Tchiweka de Documentação.
Ficção nos "silêncios” da História
Para a
escrita de "O incesto real” Júlio de Almeida pesquisou documentação
histórica sobre o Reino do Kongo, os primórdios da presença portuguesa
no território que seria Angola e a correspondência entre os soberanos do
Kongo e de Portugal, bem como sobre a presença secular e "silenciosa”
de negros naquele país europeu.
O pano de fundo sobre o qual
grande parte da trama do romance é construída é aquele período histórico
que se inicia no século XV, com as viagens marítimas protagonizadas
essencialmente por Portugal e Espanha e que alguns historiadores chamam
Descobrimentos, outros Encontro de Civilizações e outros ainda Primeira
Globalização. Mas é já no século XVI que os personagens iniciais do
romance entram em cena, já Diogo Cão fizera duas viagens de exploração à
costa ocidental de África em que entrara em contacto com o soberano do
Reino do Kongo. Precisamente no seu segundo regresso a Portugal o
navegante carregara num dos seus barcos uma comitiva enviada por Mvemba a
Nzinga, o Mani Kongo, que, baptizado em 1491, adoptara o nome Afonso I.
Faziam parte da comitiva membros da corte, incluindo D. Henrique, filho
de Afonso I, de 12 anos de idade, e outros familiares do soberano.
Já
em Portugal, o konguês D. Pedro, primo como irmão de D. Henrique,
envolve-se com a portuguesa Maria da Graça, que dá a luz os gémeos Vagá –
de "Vasco da Gama” – e Gavá – "Gama de Vasco”. É através das peripécias
de ambos, com trajectórias de vida diferentes, e da sua descendência,
que a trama do romance se adensa. Vagá, remetido ao extremo sul de
Portugal, torna-se pai de Gamahl, com a bailarina Leila. Gamahl é
descrito como "um dos mais originais homens do século XVI, o primeiro
luso-conguês-marroquino – espécie única do género humano – que nunca
estivera nos planos do Criador”... e que se tornaria membro da guarda
pessoal de D. Sebastião "O Desejado”, o rei de Portugal que
desapareceria na batalha de Alcácer-Kibir, no Marrocos em 1578.
Por
sua vez Gavá, pelas voltas que o destino dá, ou se assim o entendermos,
que só a ficção permite e concebe, em 1536 chega ao Reino do Kongo,
onde ainda reinava Mvemba a Nzinga, que então sobrevivera a "três reis
dos portugueses” e ao próprio D. Pedro, o pai dos gémeos falecido em S.
Tomé em "situação de evidente cativeiro”. Tanto o rei Mvemba a Nzinga,
seu tio-avô, como o próprio Gavá, desconheciam que eram parentes.
Em
resumo, o romance abarca séculos da história de uma família real
konguesa cujos descendentes kongueses-portugueses se espalham em dois
ramos pelo mundo, misturando-se biológica e culturalmente com as
populações que encontram, se aproximam e se reencontram, sem o saberem -
como durante a guerra civil em Angola - em campos opostos.
O
livro contém duas narrativas. Na primeira, que constitui o fio condutor
do romance, o autor trata de "preencher lacunas” e silêncios da
História. E faz isso insuflando vida a figuras que vão desfilando pelo
romance ao longo de mais de 400 anos. A "outra” narrativa, grafada em
itálico, que não chega a ser paralela porque converge permanentemente
para a primeira, é animada por dois personagens-leitores que comentam e
problematizam a primeira narrativa, em muitos casos clarificando-a ou
actualizando-a.
Manancial para imaginação
O
romance por vezes se evidencia mais como narrativa histórica,
explicitando a verdadeira natureza das relações entre os reinos do Kongo
e de Portugal. A citação de trechos de cartas trocadas entre os
respectivos soberanos e outros documentos é tão profusa que se fica com a
tentação de correr para as últimas páginas em busca das referências
bibliográficas que obviamente não existem.
A relação entre os
dois reinos era desigual. D. Afonso (Mvemba a Nzinga) "várias vezes
havia escrito ao monarca português D. Manuel, denunciando o trato havido
pelos súbditos com as suas gentes, mais interessadas no comércio e no
resgate de escravos do que no trabalho de construção de edifica-ções em
alvenaria, no cultivo e preparação do pão e no ensino de ofícios em que
eram mestres e de que carecia o seu reino.
D. Afonso clamava que
havia ‘necessidade de mais do que de padres de algumas poucas pessoas
para ensinarem nas escolas, nem mesmo de nenhumas mercadorias, somente
vinho e farinha, para o Santo Sacramento’” (pág. 47).
Há uma passagem
deste livro que mescla História e Ficção que ajuda a compreender o que
ocorreria muito depois e se consumaria com a decadência e posterior
conquista pelos portugueses dos estados africanos no território que é
hoje Angola: "... Mas, para meu pai está tudo certo. O seu processo
interno de alienação de si próprio foi realizado com êxito.
Tem à
sua volta uma corte de privilegiados, completamente subordinados aos
interesses dos portugueses que vão esvaziando o reino dos seus filhos,
enviando milhares e milhares de nossos irmãos para terras tão estranhas e
distantes, donde nunca houve regresso. Não sei o que o tempo ainda
trará a estas terras. Eu já não verei esses tempos...” (pág. 51,
monólogo de D. Henrique, "enfraquecido, deitado sobre a esteira, as
febres intermitentes toldando-lhe a alma e o pensamento”).
Mas
"O incesto real” vai muito além dos reinos do Kongo e de Portugal. Os
descendentes de D. Pedro e Maria da Graça movem-se no romance ao longo
de quase 500 anos, até aos tempos actuais, vivenciando os principais
marcos da História de Angola, incluindo a eclosão da luta armada de
libertação nacional, a independência, a invasão sul-africana, a guerra
civil e a conquista da paz. Os últimos capítulos ("espiras”), muito mais
descritivos, ganham um ritmo acelerado, como se o autor tivesse pressa
de chegar ao fim. É nesta parte que pare-cem emergir as memórias
biográficas do autor, que começam na sua infância em Moçâmedes e a ida a
Sá da Bandeira (Lubango) para estudar no liceu. Diante da narrativa do
recuo das FAPLA e dos cubanos das principais cidades do litoral e do
avanço das tropas sul-africanas até ao rio Keve, às portas de Luanda,
torna-se impossível não evocar a figura do comandante Jujú que se
notabilizou em 1975/76 como porta-voz do Estado-Maior das FAPLA. Essa
evocação é mesmo sugerida por um dos "narradores-comentadores” quando
exclama: "Até que enfim dás um ar da tua graça”.
"O incesto real”
é um romance cuja acção se desenrola nos interstícios da História,
naquelas zonas de silêncio e penumbra que não constam dos livros de
História e que constituem um manancial para a imaginação criadora dos
escritores. Efectivamente, se a História é a narrativa dos factos
ocorridos, o romance histórico é a narrativa dos factos que não tendo
ocorrido poderiam ter ocorrido.
Isaquiel Cori
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